segunda-feira, 5 de abril de 2010

Contos Desbotados

DE COPO EM COPO*
Sempre detestara aquelas receitas para viver melhor que são encontradas prontas na boca ou na ingenuidade de qualquer um. Outro dia mesmo, chegara na casa de uma amiga, para o almoço, e encontrou a coitada quase aos vômitos, tentando engolir a água que restara do cozimento de uma berinjela, que a cozinheira, a seu pedido, separara, pois afinal estava dito que aquilo fazia bem ao controle do colesterol. Essa amiga não era assim lá tão desinformada, mas daí a sair fazendo essas coisas, francamente! Duas semanas depois dessa visita, lera num semanário absolutamente confiável que aquela história de tomar-lhe berinjela pelas goelas estava desmoralizada, pois pesquisas recentes indicavam que não incidia em nada no colesterol. Quase ligou para a amiga para informar-lhe, mas deixou para uma próxima ocasião, pois poderia parecer afetação com os controles da saúde da amiga.
Havia outra pessoa que conhecera num trabalho que fizeram juntas no passado e que todos os dias tinha um ritual assombroso de ingerir muitas cápsulas, não lembrava quantas, mas eram muitas. E tinha, também, o ritual de relatar para as outras pessoas os motivos e benefícios de tomar todas aquelas cápsulas. Mas percebia-se que talvez aquelas cápsulas todas não fizessem efeito algum, pelo menos aparentemente. Nunca pode falar daquilo, pois lhe parecia que a outra se sustentava um pouco, imaginariamente, na ingestão daquelas cápsulas.
E havia uma outra senhora que conhecera numa viagem de ônibus e que tempos depois vieram a encontrar muitas vezes. Aquela senhora era fissurada em livros de auto-ajuda. Passava os dias a seguir os passos e as dicas que lhe eram indicados naqueles livros, mas nunca cuidou de entender e mudar mesmo a vida. Maquiava o tempo todo. Maquiava até os motivos dos fracassos e de comer tanto. Mas não conseguia esconder que comia até na cama, pois deixava os lençóis e o quarto tomados de farelos. E sempre que a angústia ameaçava bater em sua porta, munia-se de seus livros e já estava com a receita pronta.
E encontrara ainda, algumas outras pessoas que se sustentavam nas fantasias com relação àquilo que um dia tiveram financeiramente na vida, mas que não tinham mais. Havia uma que sempre recebera seu salário em moeda corrente no país, mas o enunciava em dólares, puxando um pouco a letra L quando pronunciava a palavra. E outra que sempre falava das coisas que tivera, principalmente dos carros que tivera na garagem.
Passara a vida toda sem colocar um gole de bebida alcoólica na boca. Mas um dia lera um artigo e ouvira um médico, daqueles que inspiram absoluta confiança, dizendo que pesquisas confiáveis indicavam os benefícios de se tomar um copo de vinho por dia, pois devido à sua composição fazia bem principalmente ao coração. Pensou muito e decidiu que chegava daquele seu radicalismo científico e de não acreditar naquelas receitas banais. Buscou uma daquelas garrafas que o “falecido” havia escondido durante anos. Abriu e tomou o primeiro gole, depois outro, depois mais outro e percebeu que a cabeça já estava um pouco melhor. Sentiu vontade de ouvir música, de cantar e de dançar. Foi aos CD's, que ela era uma velha muito das modernas, e pegou um daquela velhota, a Helena Meirelles, que passara a vida tranqüila, tocando na zonado meretrício, lá no meio do mato, até que um dia alguém a "descobriu" e se tornou, então, a "Grande Dama da Viola". Pensou que poderia, também, vir a ser a grande dama de alguma coisa. Enquanto ouvia aquela violeira, sentindo o dedilhar dos sentimentos nas cordas da viola, foi tomando muitos goles de vinho. Foi bebendo, cantando e dançando sozinha. Parou no segundo copo, pois não se poderia, assim, se fazer tanto bem ao coração numa vez só.
Depois daquela primeira vez, à tarde já ficava ansiosa esperando o momento de, à noite, ficar sozinha para cuidar do coração. Às vezes era um copo, mas quando o coração estava mais ruinzinho era dois ou mais copos. Às vezes uma garrafa não bastava para cuidar daquele coração desgovernado que era o seu.
De repente os filhos começaram a perceber e se preocupar, mas no começo deixaram, fazendo de conta que não estavam percebendo, mas depois passaram a ameaçar que a internariam para se livrar do alcoolismo. Isso lhe seria demais. Mandou que cada um fosse cuidar da sua vida e desde então vem tentando cuidar do coração sem tomar o vinho. E está conseguindo. Continua dançando e ouvindo muita música. Seu coração já não está mais tão desgovernado, mas não se arrepende de ter provocado aquele extravio todo em sua vida. Encontrou alguém que está lhe ajudando a mexer naquelas coisas todas que o seu coração guardou tão bem durante anos a fio. Está até pensando em escrever um livro daqueles que dizem como viver melhor. Sem receitas, é claro. Mas destilando da sua existência, o melhor da vida.
* Escrito publicado no Jornal Estilo - Cuz Alta/RS, em tempos idos.

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