"Há um laço profundo entre os signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. É a potência de uma vida não-orgânica, aquela que pode haver numa linha de desenho, de escrita ou de música. São os organismos que morrem, não a vida. Não existe obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho por entre as vias. Tudo o que escrevi era vitalista, pelo menos eu espero, e constituía uma teoria dos signos e do acontecimento." (P,196)
* É raro a palavra "vitalismo" ser empregada com o rigor de um conceito. Como todo o mundo, os filósofos têm seus momentos pouco gloriosos, quando descobrem, sem admiti-lo, o interesse de cultivar uma doxa que lhes é própria, manter o equívoco de certas palavras a fim de poder jogálas na cara do adversário como diploma de infâmia. Logo, por que não denunciar o vitalismo de Deleuze, uma vez que ele próprio incessantemente o reivindicava para si? É decisivo, nesse tipo de manobra infra-filosófica, não saber do que se fala. Invocar o vitalismo refere-se mais ou menos a duas coisas: a um certo extravio das ciências naturais no século XVIII numa espécie de mística que se esquiva a qualquer esforço verdadeiro de explicação (postulação de um "princípio vital" como razão última do vivente); e ao culto da vitalidade, que se propaga diversamente na Europa no fim do século XIX, reivindicado mais tarde por um certo número de movimentos políticos, entre os quais o fascismo (invocação de um gênio da raça, do povo ou do indivíduo, e dos direitos superiores da vida em sua luta com forças reputadas degeneradas). A recusa da idéia de espontaneidade, corolário da teoria do desejo-máquina, deveria bastar para afogar no ridículo qualquer exploração insinuante do uso deleuziano da palavra "vitalismo". É verdade que, para isso, é preciso alçar-se a um plano filosófico. Nunca encontraremos em Deleuze um conceito de vida em geral. Se ele se interessa pela noção nietzschiana de "vontade de poder", e se a identifica em última instância à duração-memória de Bergson, é em primeiro lugar por deduzir daí o caráter diferenciado-diferenciável, que exclui o recurso à vida como valor transcendente independente da experiencia, preexistente às formas concretas e trans-individuais nas quais é inventada (NPh, caps. II-III, sobretudo 56-9, 114-6; IT, 179-92). Logo, não há vida em geral, a vida não é um absoluto indiferenciado, mas uma multiplicidade de planos heterogêneos de existência, repertoriáveis segundo o tipo de avaliação que os comanda ou os anima (distribuição de valores positivos e negativos); e essa multiplicidade atravessa os indivíduos mais do que os distingue uns dos outros (ou ainda: os indivíduos só se distinguem em função do tipo de vida dominante em cada um deles). Em segundo lugar, Deleuze busca nesse conceito uma problemática que permita superar a alternativa da moral fundada em valores transcendentes e do amoralismo niilista ou relativista, que toma como pretexto a facticidade destes últimos para concluir que "tudo se equivale". Mais precisamente, devemos distinguir duas formas de relativismo, das quais apenas uma é niilista: "não é a variação dá verdade segundo o sujeito, mas a condição sob a qual desponta para o sujeito a verdade de uma variação" (Le pli, 27). Uma coisa e afirmar que a verdade depende do ponto de vista de cada um; outra é dizer que a verdade é muito relativa a um ponto de vista, mas que nem por isso todos os pontos de vista são equivalentes. Mas como um ponto de vista se arrogaria superioridade na ausência de qualquer critério objetivo que permitisse avaliar as pretensões de fora? Ao assumir precisamente essa condição, e, por conseguinte, ao colocar o problema de uma avaliação imanente dos pontos de vista ou das avaliações que condicionam cada modo de existência (SPE, 247-9; IT, 184-5; QPh, 72; CC, cap. XV). É superior o modo de existência que consiste na prova mútua dos modos de existência, ou que se empenhe em fazê-los ressoar uns nos outros. São verdadeiras a distância ou o conjunto das distâncias experimentadas e a seleção imanente que aí se opera. Isso significa dizer que a verdade é criação, não no sentido em que Deus poderia tê-la feito outra (Descartes), mas no sentido em que é relativa à perspectiva que um pensador ou um artista pôde adotar sobre a variedade dos modos de existência e dos sistemas de valores disponíveis (IT, 191). Mas a questão reverbera: em que sentido o ponto de vista que ordena os pontos de vista seria superior aos outros? Por que, além disso, podemos afirmar que os pontos de vista se organizam na experiência? Por que o modo de existência criador é o único aberto, o único a se problematizar a si próprio e a viver a existência como problema? Essa resposta correria o risco de reintroduzir a finalidade e de comprometer a condição de imanência. Perguntemos então por que vale mais definitivamente pensar do que não pensar. A resposta deleuziana é que pensar é mais intenso. Ponderemos aqui com prudência a objeção que ocorre ao espírito: decerto é na experiência que aprendemos a superioridade intensiva dos afectos - isto é: do encontro com o heterogêneo ou com o fora pelo qual toda a afectividade se vê abalada e redistribuída - sobre as afeições comuns -; mas isso ainda não seria, sob a aparência de um enunciado último, um critério exterior de juízo, a reintrodução disfarçada de um valor transcendente - a intensidade -, assinalando assim o fracasso do programa de avaliação imanente? Em última instância, a intensidade é um critério imanente porque a autoafirmação de nossas faculdades coincide com a afirmação do novo, da saída, do afecto, e com isso determina a intensidade - sejam quais forem os terrores que a acompanhem - como alegria.
Portanto, Deleuze pode chamar mais especificamente vida ou vitalidade não a multiplicidade das formas de vida, mas aquela entre essas formas em que a vida - o próprio exercício de nossas faculdades - se quer a si mesma: forma paradoxal, a bem da verdade, mais próxima do informe. Aí também, reconhecemos uma inspiração nietzschiana, e devemos reafirmar, embora de outra forma, a ausência em Deleuze de um conceito de vida ou de vitalidade em geral: por um lado, porque a vida tal como ele a concebe é sempre e inseparavelmente vida não-orgânica (ou ainda não-pessoal - cf. LS, 177; D, 61; etc); por outro, porque sendo o próprio da vitalidade não-orgânica e sua criatividade e por conseguinte sua imprevisibilidade (certamente não um tesouro natural ou originário que bastaria exteriorizar), procuraríamos em vão sua forma padrão (ainda que nada impeça de conferir à vitalidade não-orgânica, imitando desoladamente, tristemente, a imagem que dela inevitavelmente Deleuze fornece, ela que não obstante é "sem imagem"; assim como é possível venerar o rizoma na sombra de uma inspiração rizomática). Vida não-orgânica: a expressão, que vem de Worringer (MP, 619-24; FB-LS, 34 e 82; IM, 75-82), é sobredeterminada pelo conceito de "corpo sem órgãos", oriundo de Artaud (FB-LS, 33-4. CC, 164) e pelo pensamento de Bergson (IT, 109). Detenhamo-nos aqui sobre o que advém de Bergson: "a vida como movimento se aliena na forma material por ela suscitada" (B,108), a vida é criação, mas o vivo é fechamento e reprodução, de modo que o elã vital - assim como a duração - dissocia-se a cada instante em dois movimentos: um de atualização-diferenciação numa espécie ou forma orgânica, o outro por meio do qual ele se recupera como totalidade virtual sempre aberta a cada uma de suas diferenciações; assim, "não é o todo que se fecha à maneira de um organismo, é o organismo que se abre sobre um todo, e à maneira desse todo virtual" (B, 110). É, por conseguinte, recusando-se a circunscrever a vida nos limites do vivo formado, e assim a definir a vida pela organização, que a tendência evolutiva ou criadora que atravessa o vivente pode ser pensada, para além da alternativa insatisfatória do mecanismo e do finalismo. Essa recusa leva, naturalmente, seja a se proporcionar a vida sob a forma de um princípio distinto da matéria, seja a conceber a matéria mesma como vida, não - como vimos - aí alojando almas diretrizes, o que apenas comprovaria a incapacidade de sair da imagem da vida como organização ou como subjetividade constituída, mas designando como vida a atividade criadora anônima da matéria que, a um dado momento de sua evolução, faz-se organização: essa segunda via desemboca na concepção de uma vitalidade fundamentalmente inorgânica. Não existe nisso capricho terminológico, menos ainda - salvo se nos esquivarmos ao raciocínio lógico e nos deixarmos preocupar pelas prevenções da doxa - de fantasmagoria mística; o que está em jogo nessa redefinição da vida, vamos repetir, é pensar em que o vivente formado está em excesso sobre sua própria organização, em que a evolução o atravessa e o transborda (sua lógica não pode senão contestar e competir com a do darwinismo - compreende-se por que Deleuze, em seu estudo do devir, tenha particularmente meditado sobre os casos de mutualismo ou de co-evolução, trevo e zangão, vespa e orquídea, para os quais a teoria da evolução não fornece explicação satisfatória: cf. MP, 17). Finalmente, se a vida deve ser concebida aquém da organização, como pura criação da natureza, não se deve suspeitar da mínima metáfora em sua invocação para além - vida psíquica e criação de pensamento. Com efeito, todo processo deriva da vida não-orgânica na medida em que não reconduz a uma forma constituída mas dela escapa, e só esboça uma nova para já escapulir para outra parte, para outros esboços: o que aqui é chamado "vida" não depende da natureza dos elementos (formação material, psíquica, artística etc.), mas da relação de desterritorialização mútua que os arrasta para limiares inéditos (a organização, por exemplo, é um limiar transposto pela matéria - seja dito para simplificar ao extremo; e na relação da vespa e da orquídea, deve-se considerar a vida não-orgânica do "bloco de devir" que carrega as duas formas de vida organizada, as entrelaça uma à outra até transpor um limiar de existência em que elas se pressupõem mutuamente). A vida não-orgânica é um exemplo típico de conceito deleuziano, irredutível à atribuição de um domínio próprio, suscetível por conseguinte de um uso literal, qualquer que seja o domínio abordado, e de um uso "transversal", que combine numa igual literalidade uma multiplicidade de domínios quaisquer, por mais heterogêneos que sejam. Com isso, aproximamo-nos: da concepção deleuzo-guattariana da natureza, que não reconhece mais a cisão entre natural e artificial; do conceito de plano de imanência; enfim, naturalmente, da experiência do corpo pensado sob a condição da referência a um corpo sem órgãos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário