"Então não se perguntará qual o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido. O acontecimento pertence essencialmente à linguagem, mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas." (LS, 34)
"Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente porque está livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral nem particular, eventum tantum...; ou antes que não tem outro presente senão o do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado-futuro, formando o que convém chamar de contra-efetuação. Em um dos casos, é minha vida que me parece frágil demais para mim, que escapa num ponto tornado presente numa relação determinável comigo. No outro caso, sou eu que sou fraco demais para a vida, a vida é grande demais para mim, lançando por toda a parte suas singularidades, sem relação comigo nem com um momento determinável como presente, salvo com o instante impessoal que se desdobra em ainda-futuro e já-passado." (LS,177-8)
**O conceito de acontecimento nasce de uma distinção de origem estóica: "não confundir o acontecimento com sua efetuação espaço-temporal num estado de coisas" (LS, 34). Dizer que "o punhal corta a carne" é exprimir uma transformação incorporal que difere em natureza da mistura de corpos correspondente (quando o punhal corta efetivamente, materialmente a carne) (MP, 109). A efetuação nos corpos (encarnação ou atualização do acontecimento) gera apenas a sucessão de dois estados de coisas, antes-depois, segundo o princípio de disjunção exclusiva, ao passo que a linguagem recolhe a diferença desses estados de coisas, o puro instante de sua disjunção (ver AION): ocorre-lhe realizar a síntese disjuntiva do acontecimento, e é essa diferença que faz sentido.
Mas do fato de que o acontecimento encontre abrigo na linguagem não se deve concluir por sua natureza linguageira, como se ele não passasse do equivalente da mistura dos corpos num outro plano: a fronteira não passa entre a linguagem e o acontecimento de um lado e entre o mundo e seus estados de coisas do outro, mas entre duas interpretações da relação entre linguagem e mundo. De acordo com a primeira, pretendida pelos lógicos, a relação é estabelecida entre a forma proposicional à qual a linguagem é reduzida e a forma do estado de coisas à qual, conseqüentemente, o mundo é referido. Ora, a distinção por meio da qual Deleuze pretende remediar essa dupla desnaturação passa ao mesmo tempo pela linguagem e pelo mundo: o paradoxo do acontecimento é tal que, puramente "exprimível", nem por isso deixa de ser "atributo" do mundo e de seus estados de coisas, de modo que o. dualismo da proposição e do estado de coisas correspondente não se acha no plano do acontecimento, que só subsiste na linguagem ao pertencer ao mundo. O acontecimento está portanto dos dois lados ao mesmo tempo, como aquilo que, na linguagem, distingue-se da proposição, e aquilo que, no mundo, distingue-se dos estados de coisas. Melhor: de um lado, ele é o duplo diferenciante das significações; de outro, das coisas. Daí a aplicação do par virtual-atual (e, em menor medida, do par problema-solução) ao conceito de acontecimento. Daí também os dois caminhos aos quais leva o primado conferido ao acontecimento: teoria do signo e do sentido, teoria do devir. De um lado, Deleuze opõe-se à concepção da significação como entidade plena ou dado explícito, ainda pregnante na fenomenologia e em toda filosofia da "essência" (um mundo de coisas ou de essências não faria sentido por si mesmo, faltaria aí o sentido como diferença ou acontecimento, o único capaz de tornar sensíveis as significações e engendrá-las no pensamento). Daí o interesse dedicado ao estilo ou à criação de sintaxe, e a tese segundo a qual o conceito, que é propriamente o acontecimento destacado por si próprio na língua, não se compõe de proposições (QPh, 26-7; 36-7). De um outro lado, ele esboça uma ética da contra-efetuação ou do devirimperceptível (LS, 21' série; MP, platôs 8 e 10), fundada no destaque da parte "acontecimental", "inefetuável", de qualquer efetuação. Em suma, o acontecimento é inseparavelmente o sentido das frases e o devir do mundo; é o que, do mundo, deixa-se envolver na linguagem e permite que funcione. Assim, o conceito de acontecimento é exposto numa Lógica do sentido.
** Estamos fundamentados para opor pensamento do acontecimento e pensamento do ser, ou, ao contrário, confundilos? O acontecimento sustenta-se em dois níveis no pensamento de Deleuze: condição sob a qual o pensamento pensa (encontro com um fora que força a pensar, corte do caos por um plano de imanência), objetidades especiais do pensamento (o plano é povoado apenas por acontecimentos ou devires, cada conceito é a construção de um acontecimento sobre o plano). E se não há maneira de pensar que não seja igualmente maneira de realizar uma experiência, de pensar o que há, a filosofia não assume sua condição acontecimental, de onde pretende receber a garantia de sua própria necessidade, sem propor ao mesmo tempo a descrição de um dado puro, ele próprio acontecimental. Chamemos a isso, se quisermos e provisoriamente, experiência do ser - embora, nem em seu estilo nem em seus motivos, a démarche deleuziana tenha algo em comum com a de Heidegger; e embora o ser seja aqui uma noção enganosa, se é verdade que não existe dado senão em devir (note-se que Deleuze evita a palavra "ser" o máximo possível). Falar de ontologia deleuziana deve portanto ser feito com grandes precauções, nem que seja por respeito a um pensador que não manejava de bom grado esse gênero de categoria. Essas precauções são de dois tipos. De um lado, devemos efetivamente observar o que permite em Deleuze a conversão da filosofia crítica em ontologia: o fato de que o dado puro não seja para um sujeito (a divisão do sujeito reflexivo e do objeto visado e reconhecido só se opera no dado, ao passo que o dado puro remete a uma subjetividade paradoxal "em adjacência", isto é, não transcendental mas situada em cada ponto do plano de imanência). De outro lado - e este é o aspecto que desenvolveremos aqui - trata-se de pensar uma heterogênese, segundo a esplêndida formulação de Félix Guattari, em que "gênese" não é mais entendida apenas em seu sentido tradicional de engendramento, de nascimento ou de constituição (a verdadeira relação entre direito e fato reivindicada por Deleuze, e que ele diz não encontrar nem em Kant nem em Husserl, pois ambos "decalcam" a condição sobre o condicionado, a forma do transcendental sobre a do empírico: forma recognitiva do objeto qualquer, relativa a um sujeito consciente). "Gênese" é também entendida em relação ao novo conceito de "devir", e é certamente o que mais afasta Deleuze da fenomenologia e de seus herdeiros mesmo ingratos. A fenomenologia "fracassa" ao pensar a heterogeneidade fundamentalmente em jogo no devir (em termos deleuzianos estritos: este não é seu problema, ela coloca um outro problema). Com efeito, ela só pensa senão um devirmesmo (a forma em vias de nascer, o aparecer da coisa) e não o que devia ser um pleonasmo - um devir-outro. Não seria isso o que exprime a desarticulação heideggeriana do termo Ereignis (acontecimento) em Ereignis (advento-como-próprio)? Daí o equívoco da fenomenologia que sobreviveu a Deleuze ao pretender retomar o tema do acontecimento e redescobri-lo como o próprio núcleo daquilo a que ela se dedicava desde sempre a pensar. Pois, em função de sua problemática fundamental, ela nunca consegue obter mais que adventos, de tipo nascimento ou vinda (mas aí também, seu problema sendo outro, certamente é o que ela almeja, ou o que seu "plano" lhe traz do "caos"). Seu tema é o começo do tempo, a gênese da historicidade; e não, como em Deleuze, a cesura ou ruptura cortando irrevogavelmente o tempo em dois e forçando-o a re-começar, numa apreensão sintética do irreversível e do iminente, o acontecimento dando-se no estranho local de um ainda-aqui-e-já-passado, ainda-por-vir-e-já-presente (ver AION). Com isso, a historicidade em Deleuze está ela própria em devir, afetada dentro de si por uma exterioridade que a mina e a faz divergir de si. Em definitivo, esse duelo de dois pensamentos do acontecimento, da gênese, do devir, um podendo reivindicar o "ser", o outro não vendo nisso senão uma tela ou uma palavra, não seria o duelo de uma' concepção cristã e uma concepção não-cristã do novo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário