Estudantes da USP que resistiram à ação policial pelo direito de fumar maconha não estão em busca de privilégios: a mobilização é pelo fim da militarização e do proibicionismo dentro e fora do campus
É inquestionável que 2011 tem sido um ano politicamente intenso. Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Espanha, Portugal, Grécia, Itália, Chile, Estados Unidos, são inúmeros os exemplos de populações se levantando contra ditaduras políticas e econômicas. Guardadas as devidas proporções, no caso do debate específico sobre as drogas também podemos considerar o atual ano como marcado pelo ascenso.
Se 2010 terminou com o gosto amargo do conservadorismo pautando as eleições presidenciais e da derrota da proposição 19 num plebiscito que poderia legalizar a maconha na Califórnia, 2011 viu amplificar-se como nunca o debate por uma nova política de drogas no Brasil e boa parte do mundo.
A Marcha da Maconha venceu o obscurantismo e as balas da polícia e fez com que o STF a julgasse legal, filmes como Cortina de Fumaça e Quebrando o Tabu abordaram a temática sob um viés antiproibicionista, Chile e Israel liberaram o cultivo de maconha para uso medicinal, o Supremo Tribunal canadense decidiu pela legalidade das salas de uso monitorado de drogas, uma pesquisa apontou que metade da população estadunidense defende a legalização da canábis, a Grécia despenalizou posse e consumo das substâncias antes ilícitas, medida que completou dez anos em Portugal com resultados positivos comprovados na saúde pública.
No entanto, paralelamente a estes inegáveis e animadores avanços em escala local e global, vemos no Brasil o crescimento de um conservadorismo organizado que tenta tolher, por todas as vias, o nascimento destas necessárias mudanças há tanto tempo em gestação. A consolidação dos projetos de internação compulsória de usuários (pobres, claro) de crack no Rio de Janeiro e em breve em São Paulo, o apoio majoritário a iniciativas militarizadoras e hipócritas como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), o Exército nas ruas do Rio, o aberto apoio do governo Dilma Rousseff às comunidades terapêuticas e até mesmo projetos de lei que propõem a volta da pena de privação de liberdade para usuários no Brasil são alguns dos indícios de que, se estamos vencendo, ainda temos inimigos poderosos pela frente.
E, por mais contraditório que possa parecer, alguns deles estão alojados nas direções de duas das principais universidades de São Paulo e do país: a PUC e a USP. Se na primeira a repressão ainda se dá de forma branda, digamos num estilo Lula de “vigiar e sorrir”, como os próprios estudantes de lá já definiram e como ficou claro no fechamento da universidade diante de um “festival canábico”, na segunda a coisa degringolou para a mais explícita militarização, que torna a comparação com FHC até branda: o estilo está mais para Felipe Calderón, o presidente mexicano responsável por escalada de violência estatal impensável e inaceitável após 2006.
Escorada na comoção após o assassinato de um estudante da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) dentro do campus, a Reitoria dirigida por João Grandino Rodas — o mesmo que já fechou a Faculdade de Direito para impedir manifestações de estudantes e hoje é considerado persona non grata nas mesmas arcadas onde se formou — realizou convênio com a Polícia Militar paulista (aquela que só não é a mais assassina do Brasil porque existe o Rio de Janeiro) para que esta realizasse a “segurança” do campus. Não é preciso muita imaginação para imaginar sob quais parâmetros racistas e autoritários se dá este trabalho.
Poucos meses depois de iniciada a intervenção, inúmeras reclamações de abusos já pipocavam aqui e ali até que no dia 27 de outubro centenas de estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) avançaram sobre estas fardas de tão tristes histórias após a prisão de três garotos que se preparavam pra fazer a cabeça antes de ir pra aula. A questão ia além do (legítimo) direito de decidir pelo próprio corpo: a revolta tinha como alvos a militarização do cotidiano universitário empreendida pelo governo estadual e pela Reitoria.
O argumento de que estão apenas cumprindo a lei inicialmente pode aparentar coerência. De fato, não cabe ao movimento demandar ordenamentos jurídicos diferentes do aplicado ao resto da sociedade, isso seria uma reivindicação por privilégio.
No entanto, lembremos em primeiro lugar que a lei nunca foi, e nem é possível que seja, aplicada de forma igualitária. Os aparelhos de repressão procedem de forma seletiva, e invariavelmente voltam-se para os setores pobres da população. Neste caso, aparentemente não estamos diante disso, afinal infelizmente o público estudantil da USP é cada vez mais elitizado. No entanto, a medida ainda é seletiva, e provavelmente visa incidir sobre os grupos politicamente organizados e contestadores do modelo de universidade implementado utilizando o combate às drogas como justificador. Ou a PM está fiscalizando todos os locais onde há consumo e comércio de drogas na cidade? Se sim, parece que eles nunca ouviram falar da Vila Olímpia, da Granja Vianna ou dos Jardins, por exemplo.
Além disso, entende-se perfeitamente que é impossível para gestores educacionais serem “coniventes” ou “permissivos” com condutas ilegais. Faz parte de sua função tomar medidas, ou fingir tomá-las, para responder aos anseios sociais de cumprimento das leis. Isso não é sinônimo de polícia. Estudei por quatro anos na Faculdade Cásper Líbero, e jamais vi alguém consumindo drogas ilícitas na faculdade, e para isso nunca foi necessária a presença policial. Os inspetores — lá chamados de bedéis — cumpriam a função de zelar pelo estatuto da faculdade sem necessitarem de gritos, fardas, bombas de gás ou cassetetes. A presença policial é absolutamente incongruente não só com um projeto pedagógico mas com o próprio uso do cérebro humano. Ela representa a vitória da força sobre o diálogo como forma de resolver os conflitos. Com o “pequeno” agravante de não resolver nada e só criar mais problemas.
Por isso, o que está em jogo na revolta estudantil da quarta-feira, 26 de outubro, é muito mais do que o interesse ferido de jovens que queriam fumar seu baseado — como a mídia finge estar acontecendo. A questão vai além, e configura-se num duplo aspecto de debate e mobilização: desmilitarização do campus e da cidade (não esqueçamos do império de pequenas leis que Kassabs, Serras e Alckmins têm aprovado tornando qualquer convivência coletiva nas ruas passível de punição) e fim da política proibicionista sobre drogas, novamente dentro e fora do campus.
As reivindicações estão longe de defender a USP como território de exceção ou livre das leis. Pelo contrário, o que elas buscam é, ao reagir sobre a ofensiva militarizada dentro da universidade, questionar também os marcos em que poder, repressão e controle social se conjugam num contexto mais amplo e extremamente injusto. A proibição das drogas é um elemento neste complexo quadro, pintado também com as tintas da exploração, do racismo, do autoritarismo, da corrupção, da violência estatal, do machismo, da homofobia e do fundamentalismo moral. É isso que os estudantes querem discutir, e é isso que deve ser discutido. Nas ruas, claro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário