terça-feira, 1 de novembro de 2011

A fenomenologia da infância e a criança mundocentrada


Habitantes do mesmo mundo, adultos e crianças o vivenciam e o apreendem de modos distintos. Nos seus Cursos da Sorbonne, Merleau-Ponty analisa a infância sob um prisma existencial, assinala Marina Marcondes Machado

Por: Márcia Junges

A criança não é egocentrada, mas mundocentrada. A ideia, tributária a Merleau-Ponty, concebe a infância de modo existencial a partir de um descentramento. O adulto é “destronado” do centro, assim como as teorias do desenvolvimento que criou. A ponderação é da psicóloga Marina Marcondes Machado, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. De acordo com a pesquisadora, o ego da criança “não se encontra formado, desenhado, é, antes, esboço a ser completado, banhado, vestido e acalantado. É na outridade, na relação eu/outro, que a corporalidade, isto é, a relação eu/corpo se desenha. E o corpo próprio, acompanhado pelo outro, encontra-se no mundo: adultos e crianças habitam o mesmo mundo, diferem apenas no modo de viver nele, de apreendê-lo”. Essas ideias são originárias dos Cursos na Sorbonne, ministrados por Merleau-Ponty entre os anos de 1949-1952, quando faz uma fenomenologia da psicanálise e propõe um outro olhar sobre a infância – o olhar culturalista. Conforme Marina, “o mote da fenomenologia da infância é deixar a criança ser o que ela é, sem nunca deixá-la à deriva”. E alerta, inspirando-se no termo “antiestruturas”, cunhado pelo antropólogo Victor Turner: é preciso que as “crianças vivam suas infâncias de maneira onírica, polimorfa, não representacional, a seu tempo, como é seu direito”.
Pesquisadora das relações entre infância e cena contemporânea, formadora de professores de teatro e docente na Escola Superior de Artes Célia Helena, Marina Marcondes Machado é graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, e mestre em Artes pela Universidade de São Paulo – USP com a dissertação Cacos de infância/nascimento, vida e morte da personagem criança em roteiros de improviso. Na PUC-SP cursou doutorado em Educação com a tese A flor da vida – sementeira para a fenomenologia da pequena infância, e é pós-doutora em Pedagogia do Teatro, pela USP, com a pesquisa Territórios do brincar. De sua produção bibliográfica, destacamos O brinquedo-sucata e a criança/A importância do brincar – Atividades e Materiais (5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1994); A poética do brincar (2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998); Cacos de infância/teatro da solidão compartilhada (São Paulo: Fapesp/ Annablume, 2004) e Merleau-Ponty & a Educação (Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010). Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em que consistem os Cursos na Sorbonne, oferecidos por Merleau-Ponty, e em que período ocorreram? Quais são as abordagens e relações que o pensador faz nesses cursos sobre a criança?

Marina Marcondes Machado – Os Cursos na Sorbonne aconteceram entre 1949 e 1952 e tematizaram a psicologia da criança e a pedagogia. Como publicação, não são textos de autoria de Merleau-Ponty, e sim a compilação dos apontamentos de seus alunos, reunidos em livro a partir de boletins publicados pelo Centro de Documentação Universitária da Sorbonne. No Brasil, foram editados em dois volumes pela Editora Papirus, com os seguintes títulos e subtítulos: Merleau-Ponty na Sorbonne – Resumo de Cursos; subtítulo para o volume 1: Filosofia e linguagem (1990a), e subtítulo para o volume 2: Psicossociologia e filosofia (1990b). Mais tarde os dois volumes viraram apenas um, na edição da Editora Martins Fontes (2006) sob o título Psicologia e pedagogia da criança. A compilação dos Cursos na Sorbonne foi revisada por Merleau-Ponty quando vivo.
Nos Cursos na Sorbonne Merleau-Ponty nos presenteia com uma espécie de desconstrução filosófica do raciocínio desenvolvimentista que desdobra a infância em fases, etapas e faixas etárias. Ele procura trabalhar a partir de uma fenomenologia da psicanálise. O filósofo não propõe “outra teoria”, mas “outro olhar” para as teorias; esse “outro olhar” para a infância pode ser nomeado, inicialmente, de culturalista.
Merleau-Ponty afirma que estaria por ser inventada uma psicanálise culturalista, em que as interpretações não mais irão se pautar, por exemplo, em fatos, teorias do trauma ou fases da libido, mas, antes, nos modos de vida das crianças inseridas em suas culturas; o caminho para esta mudança é relacional e observacional, e será papel do adulto perscrutar as relações da criança/corpo, criança/outro, criança/tempo, criança/espaço, criança/língua, criança/mundo. Isso levará à reflexão filosófica e existencial sobre o ser criança e seu ser no mundo.

Criança mundocentrada
Pensar a infância de modo existencial parte de um descentramento, ou seja, tiramos o adulto do centro – bem como as teorias do desenvolvimento que o adulto criou. Assim o filósofo formula, por meio de uma imagem feliz, que a criança não é egocentrada, ela é mundocentrada. Seu “ego” não se encontra formado, desenhado, é, antes, esboço a ser completado, banhado, vestido e acalantado. É na “outridade”, na relação eu/outro, que a corporalidade, isto é, a relação eu/corpo se desenha. E o corpo próprio, acompanhado pelo outro, encontra-se no mundo: adultos e crianças habitam o mesmo mundo, diferem apenas no modo de viver nele, de apreendê-lo. Esses modos inserem-se num dado tempo, num dado espaço, em uma dada cultura: temporalidade, espacialidade, mundaneidade. O uso dessas palavras, na perspectiva da fenomenologia, comunica a não existência de separação eu/tempo, eu/espaço, eu/mundo. Portanto, dizer mundaneidade não é sinônimo de dizer a relação da criança com o mundo, pois ela encontra-se no mundo, mergulhada nele, de tal forma que a criança está no mundo tanto quanto o mundo está nela.Ela é ser no mundo: não há, nessa leitura, divisões nem distinções de fronteiras entre “indivíduo” e “ambiente”.

IHU On-Line – Como se imbricam a fenomenologia e a infância? Nesse sentido, como podemos compreender a “fenomenologia do rabisco”?

Marina Marcondes Machado – É meu ponto de vista que a fenomenologia é uma ótima via para compreender a primeira infância, especialmente a criança muito pequena: trata-se de positivar o que a criança é, como ela está, como ela se apresenta a si mesma, a nós, ao mundo – em vez de tentar modelar seu “quem” por meio de uma teoria e defini-la pelo que ela ainda não tem, esperando que chegue em outro “patamar”. Nesse sentido a fenomenologia da criança é feita de um trabalho antropológico bastante cuidadoso, denso, significativo. É preciso focar na criança mesma, descentrando o olhar adulto e seus contextos teóricos. Podemos pensar que a fenomenologia é uma atitude frente ao outro, uma atitude pacienciosa, algo que não vemos nas disciplinas mais técnicas, imbuídas da “cura” e da “extinção do sintoma”.
Você faz menção a um artigo meu, Fenomenologia do rabisco (2002), que foi publicado em uma excelente revista de divulgação, vendida em bancas de jornal. No texto da “fenomenologia do rabisco” proponho que nunca se diga: “Carlinhos ainda não desenha” (pois “apenas” rabisca). Trata-se, noutra perspectiva, de positivar o ato de rabiscar de Carlinhos, da seguinte maneira: Como Carlinhos rabisca? Como escolhe as cores? Em que situação gosta de rabiscar? Conversa com seu rabisco? Como se mostra sua corporalidade e sua relação com os materiais durante o seu rabiscar? E assim por diante. Escrevi esse texto a partir do que Merleau-Ponty nos ensina, nos Cursos na Sorbonne, sobre o desenho: a criança, ela mesma, não é representacional. Ela não pretende, em absoluto, reproduzir o mundo – ela, ao desenhar, expressa, exprime e vive o momento de desenhar: uso dos materiais, prazer e desprazer, mergulho na experiência.
A leitura não representacional da infância é o aspecto mais original e contemporâneo dos Cursos na Sorbonne. Sessenta anos atrás Merleau-Ponty já afirmava que a criança não representa, mas presentifica; noutras palavras, a criança encontra-se no aqui-agora e está banhada e mergulhada em um caldo pré-reflexivo. Isso é algo extremamente próximo do que se quer chegar, em arte contemporânea, nas performances em dança-teatro, por exemplo. Daí meu trabalho atual nomear a criança como performer[1].

IHU On-Line – Essa abordagem foi uma novidade na filosofia e na pedagogia? Por quê?

Marina Marcondes Machado – Digamos que esta abordagem não seria “novidade”, mas antes, uma leitura possível – a fenomenológica – da psicanálise e da psicologia do desenvolvimento já existentes. Merleau-Ponty é muito elegante em suas críticas aos sistemas já estabelecidos, e deixa claro que as psicologias mais próximas ao pensamento ao qual se refere nos Cursos na Sorbonne são as de Henri Wallon[2] e dos gestaltistas. Ele, portanto, não “joga fora” as teorias, apenas as coloca entre parênteses, como requer o método fenomenológico, para procurar a criança tal qual ela se apresenta no mundo. Ele não trabalha com essencialismos, mas antes, com o modo de ser e estar da criança pequena. Merleau-Ponty destaca três principais modos de ser: o onirismo, o polimorfismo e a não representacionalidade. O polimorfismo nos faz compreender a inteligência da criança pequena, inteligência vivida no corpo cuja capacidade plástica lhe possibilita concentrar-se e encontrar-se simultaneamente em diferentes ações, algo que o adulto muitas vezes lê noutra chave, como desatenção e imaturidade; o modo onírico revela sua capacidade para mesclar realidade e fantasia, especialmente em desenhos, pensamentos e sentimentos, e no brincar de faz de conta; a não representacionalidade nos revela uma criança mergulhada na experiência de vida e incapaz de distanciar-se para “representar”. Se pensarmos em sintonia com o pensamento sobre a infância de Merleau-Ponty, diversas prerrogativas sólidas da psicologia clássica se desmancham, especialmente tudo que foi construído com base na noção projetiva e representacional de um “mundo interno”. Também “o mundo da criança” é questionado pelo filósofo: adultos e crianças convivem no mesmo mundo, o que difere são nossas apreensões dele.

IHU On-Line – Como se dá atualmente a apropriação e atualidade desse filósofo nas práticas pedagógicas?
Marina Marcondes Machado – Hoje, é bastante evidente a aproximação das noções fenomenológicas propostas por Merleau-Ponty e os grupos de pesquisa em Estudos Sociais da Infância, proponentes do que se está usualmente chamando de Culturas da Infância, o que reafirma o arejamento e pioneirismo de Merleau-Ponty no início da década de 1950. No entanto, minha percepção é de que ainda há pouco interesse pela fenomenologia da infância; esse modo de fazer filosofia inserido na psicologia e na pedagogia muitas vezes é associado ao ato de “apenas” descrever; Foucault[3], por exemplo, afirmou que a fenomenologia sofre de um “sono antropológico”. Todavia, esta é uma compreensão de um dos aspectos da propositiva fenomenológica, o aspecto descritivo, e adormecer a avidez adulta para intervir na vida da criança, modelá-la, curá-la, etc. parece uma boa atitude para o século XXI, que apenas começou e que certamente revelará uma enorme indústria da infância, como já acontece: o melhor brinquedo, amelhor papinha e a melhor colher para não deixar cair a papinha, o melhor sapato, a melhor pasta de dente e assim por diante. Num mundo em que os objetos tecnicamente desenvolvidos para o consumo infantil imperam, encontramos também a melhor teoria sobre a infância e faz-se necessária uma contracultura, uma cultura da infância que propicie o surgimento de antiestruturas – termo cunhado pelo antropólogo Victor Turner – para que as crianças vivam suas infâncias de maneira onírica, polimorfa, não representacional, a seu tempo, como é seu direito. Mas para chegarmos lá a comunidade adulta de intelectuais que pensam a infância precisaria desapegar-se de seus referenciais mais arraigados, especialmente aqueles que fazem foco na cognição e nas formas de inteligência, bem como na metodologia baseada nos conceitos de projeção e na representacionalidade, para que o estudo da obra de Merleau-Ponty ganhe seu espaço nas disciplinas da educação infantil, psicologia e psicopedagogia.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Marina Marcondes Machado – Sim. Gostaria de terminar dizendo que a fenomenologia nos leva a uma via longa do conhecimento acerca das crianças. Ou seja, é um tipo de pensamento e ação que não nos leva rapidamente a nenhum lugar; não promove saúde nem tampouco cura; não quer gerar, de jeito nenhum, pedagogias eficientes ou edificantes. A via longa se recusa a responder “por quê?”, em nome de compreender o “como?”. Isso, somado à noção merleau-pontiana do ser em situação, desbanca muitas das promessas de resultados de transformação de comportamento, saltos, giros desenvolvimentistas e outras formas de psicologia e pedagogia centrados no adulto e que não levam em conta processos existenciais, nem tampouco “a dor e a delícia” de sermos o que somos. A infância é uma temporalidade deste tipo – de dores e delícias – e as crianças têm o direito de experienciá-la em seu ritmo e em seu estilo próprio. O mote da fenomenologia da infância é deixar a criança ser o que ela é, sem nunca deixá-la à deriva. Trata-se de uma espécie de arte zen a ser praticada em cada gesto e palavra, a cada acontecimento entreadultos e crianças, cotidiana e ordinariamente.

2 comentários:

  1. Boa noite, com licença.
    É interessante pensar as "hecceidades" que passam de modo horizontal e vertical. Toda via estamos vivendo uma ditadura do "mundocentrismo", aonde uma moral infantil, esta douravantemente sufocando o culturalismo lúdico da infância. Vejam os absurdos desta nova ordem moral: especializar precocemente a criança e o jovem a ter uma pseudo formação técnica para suprir as necessidade de mercado, decapitando a possibilidade da criança poder se descobrir de modo polimorfico. Ela já é encaixotada dentro das escolas para serem entregues ao mercado capitalistico, com o viés de atender uma demanda de mercado, exigido pelo mundocentrismo. Será que vamos novamente copiar esse modelo de infancia fabril?, em que a criança nada mais é que uma caixa registradora de informações para competir ferozmente nesse mercado sangue suga?.

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  2. é só chegar, gustavo... a casa é de todos!
    essa questão que vc sublinha, gustavo, talvez seja uma das mais importantes do contemporâneo... veja-se que o capitalismo já mostrou sua incapacidade de lidar com o humano e com a vida, visto que necessita de ambos para azeitar suas engrenagens... assim, produz cada vez mais, o enferrujamento e descarte daqueles que não servem para azeitar a máquina... não resta outra forma, a não ser essa de moldar subjetividades, desde o útero, para a vida de azeitonas que alimentam o sistema!
    ah! não podemos esquecer que vida de azeitona é destinada basicamente aos pobres... pq os ricos, continuam regulando a máquina e selecionando azeitonas para manter suas engrenagens funcionando!

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