"Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem." (Kplm, 112).* Esse conceito pode parecer à primeira vista de uso amplo e indeterminado: remete, segundo o caso, a instituições muito fortemente territorializadas (agenciamento judiciário, conjugal, familiar etc), a formações íntimas desterritorializantes (devir-animal etc), enfim ao campo de experiência em que se elaboram essas formações (o plano de imanência como "agenciamento maquinico das imagens-movimentos", IM, 87-8). Dir-se-á portanto, numa primeira aproximação, que se está em presença de uma agenciamento todas as vezes em que pudermos identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações materiais e de um regime de signos correspondente. Na realidade, a disparidade dos casos de agenciamento precisa ser ordenada do ponto de vista da imanência, a partir do qual a existência se mostra indissociável de agenciamentos variáveis e remanejáveis que não cessam de produzi-la. Mais do que a um uso equívoco, ela remete então a pólos do próprio conceito, o que interdita sobretudo qualquer dualismo do desejo e da instituição, do instável e do estável. Cada indivíduo deve lidar com esses grandes agenciamentos sociais definidos por códigos específicos, que se caracterizam por uma forma relativamente estável e por um funcionamento reprodutor: tendem a reduzir o campo de experimentação de seu desejo a uma divisão preestabelecida. Esse é o pólo estrato dos agenciamentos (que são então considerados "molares"). Mas, por outro lado, a maneira como o indivíduo investe e participa da reprodução desses agenciamentos sociais depende de agenciamentos locais, "moleculares", nos quais ele próprio é apanhado, seja porque, limitando-se a efetuar as formas socialmente disponíveis, a modelar sua existência segundo os códigos em vigor, ele aí introduz sua pequena irregularidade, seja porque procede à elaboração involuntária e tateante de agenciamentos próprios que "decodificam" ou "fazem fugir" o agenciamento estratificado: esse é o pólo máquina abstrata (entre os quais é preciso incluir os agenciamentos artísticos). Todo agenciamento, uma vez que remete em última instância ao campo de desejo sobre o qual se constitui, é afetado por um certo desequilíbrio. O resultado é que cada um de nós combina concretamente os dois tipos de agenciamentos em graus variáveis, o limite sendo a esquizofrenia como processo (decodificação ou desterritorialização absoluta), e a questão - a das relações de forças concretas entre os tipos (ver LINHA DE FUGA). Se a instituição é um agenciamento molar que repousa em agenciamentos moleculares (daí a importância do ponto de vista molecular em política: a soma dos gestos, atitudes, procedimentos, regras, disposições espaciais e temporais que fazem a consistência concreta ou a duração - no sentido bergsoniano - da instituição, burocracia estatal ou partido), o indivíduo por sua vez não é uma forma originária evoluindo no mundo como em um cenário exterior ou um conjunto de dados aos quais ele se contentaria em reagir: ele só se constitui ao se agenciar, ele só existe tomado de imediato em agenciamentos. Pois seu campo de experiência oscila entre sua projeção em formas de comportamento e de pensamento preconcebidas (por conseguinte, sociais) e sua exibição num plano de imanência onde seu devir não se separa mais das linhas de fuga ou transversais que ele traça em meio às "coisas", liberando seu poder de afecção e justamente com isso voltando à posse de sua potência de sentir e pensar (daí um modo de individuação por hecceidades, que se distingue do referenciamento de um indivíduo por meio de características identificantes - MP, 318s). Os dois pólos do conceito de agenciamento não são portanto o coletivo e o individual: são antes dois sentidos, dois modos do coletivo. Pois se é verdade que o agenciamento é individuante, fica claro que ele não se enuncia do ponto de vista de um sujeito preexistente que lhe poderia ser atribuído: logo, o próprio está na medida de seu anonimato, e é por esse motivo que o devir singular de alguém concerne de direito a todos (assim como o quadro clínico de uma doença pode receber o nome próprio do médico que soube reunir seus sintomas, embora ele seja em si mesmo anônimo; idem na arte - cf. PSM, 15; D, 153). Não nos iludiremos, portanto, quanto ao caráter coletivo do "agenciamento de enunciação" que corresponde a um "agenciamento maquínico": ele não é produzido por, mas por natureza é para uma coletividade (daí o apelo de Paul Klee, muito citado por Deleuze, por "um povo que falta"). É nisso que o desejo é o verdadeiro potencial revolucionário.
** O conceito de agenciamento substitui, a partir do Kafka, o de "máquinas desejantes": "Só há desejo agenciado ou maquinado. Vocês não podem apreender ou conceber um desejo fora de um agenciamento determinado, sobre um plano que não preexiste, mas que deve ser ele próprio construído." (D,115). Isso é insistir mais uma vez na exterioridade (e não na exteriorização) inerente ao desejo: todo desejo procede de um encontro. Tal enunciado é um truísmo apenas na aparência: "encontro" deve ser entendido num sentido rigoroso (muitos "encontros" não passam de chavões que nos remetem a Édipo...), ao passo que o desejo não espera o encontro como a ocasião para seu exercício, mas nele se agencia e se constrói. Todavia, o interesse principal do conceito de agenciamento é enriquecer a concepção do desejo com uma problemática do enunciado, retomando as coisas no ponto em que a Lógica do sentido as deixara: toda produção de sentido ali tinha como condição a articulação de duas séries heterogêneas mediante uma instância paradoxal, e supunha-se em geral que a linguagem não funcionasse senão em virtude do estatuto paradoxal do acontecimento, que ligava a série das misturas de corpos à série das proposições. Mil platós concerne ao plano em que se articulam as duas séries, atribuindo um alcance inédito à dualidade estóica das misturas de corpos e das transformações incorporais: uma relação complexa se tece entre "conteúdo" (ou "agenciamento maquínico") e "expressão" (ou "agenciamento coletivo de enunciação"), redefinidos como duas formas independentes, não obstante tomadas numa relação de pressuposição recíproca e relançando-se uma à outra; a gênese recíproca das duas formas remete à instância do "diagrama" ou da "máquina abstrata". Não é mais uma oscilação entre dois pólos, como ainda há pouco, mas a correlação de duas faces inseparáveis. Ao contrário da relação significante-significado, tida como derivada, a expressão refere-se ao conteúdo sem, com isso, descrevê-lo nem representa-lo: ela "intervém" nele (MP, 109-15, com o exemplo do agenciamento feudal). Decorre daí uma concepção da linguagem que se opõe à lingüística e à psicanálise, assinalando-se pelo primado do enunciado sobre a proposição (MP, platô 4). Acrescentemos que a forma de expressão não é necessariamente linguageira: há por exemplo, agenciamentos musicais (MP, 363-80). Se nos ativermos aqui à expressão linguageira, que lógicas regem o conteúdo e a expressão no plano de sua gênese e, por conseguinte, de sua insinuação recíproca ("máquina abstrata")? A da "hecceidade" (composições intensivas, de afectos e de velocidades - prolongamento significativo da concepção do Anti-Édipo, fundada na síntese disjuntiva e nos "objetos parciais"); e a de uma enunciação que privilegia o verbo no infinitivo, o nome próprio e o artigo indefinido. Ambas se comunicam na dimensão de Aion (MP, 318-24) - especialmente o exemplo do Pequeno Hans). Enfim, é em torno do conceito de agenciamento que se pode avaliar a relação de Deleuze com Foucault, os empréstimos desviados que lhe fez, o jogo de proximidade e de distância que liga os dois pensadores (MP, 86-7 e 174-6; todo o Foucault é construído em cima dos diferentes aspectos do conceito de agenciamento).
"Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem." (Kplm, 112).
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