domingo, 13 de novembro de 2011

A época da norma


Qual seria a forma e quais seriam os perigos para o funcionamento do direito nas sociedades modernas?
por Márcio Alves da Fonseca
Os últimos escritos de Michel Foucault, notadamente os volumes finais de sua História da sexualidade, bem como os cursos ministrados no Collège de France entre os anos 1981-1984, revelam sua incursão na cultura e no pensamento antigos. Nesses escritos, o filósofo, que no mesmo período viria a definir a sua filosofia como uma “ontologia do presente”, volta-se para o problema da constituição do sujeito moral na antiguidade clássica. O estudo da moral sexual na antiguidade, assim como a pesquisa sobre a formação e os desdobramentos da “cultura de si” no pensamento greco-romano, sugerem que a direção para a qual o olhar do pensador se lança em seus últimos trabalhos é o passado.
Porém, uma consideração atenta do conjunto de seus escritos, capaz de colocar em evidência os principais deslocamentos que tais escritos realizaram relativamente à história das ciências e à filosofia política e moral de sua época, permite afirmar que a filosofia de Foucault – mesmo aquela presente em seus trabalhos finais – se configura como busca insistente de compreensão do nosso presente histórico. A esse respeito, as observações de caráter metodológico realizadas no início da aula de 5 de janeiro do curso de 1983 no Collège de France (Le gouvernement de soi et des autres) são esclarecedoras. Com o fim de distinguir seu trabalho dos métodos que entende ser próprios a uma história das mentalidades ou a uma história das representações, Foucault dirá que seu projeto geral foi realizar uma “história do pensamento”. Compreendida em um sentido amplo, essa história do pensamento se configuraria como uma história dos “lugares de experiência” que teriam sido importantes para a nossa cultura e que, de algum modo, constituíram o presente tal como o conhecemos.

Assim, a experiência da loucura, a experiência da doença, a experiência da criminalidade ou da sexualidade foram alguns desses lugares de experiência cuja história procurou fazer. Em cada um deles se articulavam três âmbitos aos quais cabia interrogar: o âmbito das formas de um saber historicamente constituído, o âmbito das matrizes normativas de comportamentos dos indivíduos e, por fim, o âmbito dos modos de existência virtuais para sujeitos possíveis. Aparecem aí os três eixos – o saber, o poder, a subjetivação – privilegiados diferentemente por Foucault em seus principais trabalhos. Nas primeiras obras enfatiza-se o estudo do eixo da formação dos saberes. Na medida em que ali se desejava efetivamente estudar a experiência como matriz para a formação de saberes, cabia notar, não o desenvolvimento ou o progresso dos conhecimentos, mas as “práticas discursivas” que podiam constituir matrizes para conhecimentos possíveis.
Em seguida, nos cursos do Collège de France entre os anos 1971-1980 e em obras como Vigiar e punirA vontade de saber, tratava-se de analisar as matrizes normativas de comportamento. Cabia, então, analisar o poder não como categoria, instância ou propriedade, não também analisar as instituições de poder ou ainda as formas gerais de dominação, mas sim as técnicas e procedimentos pelos quais se conduziu historicamente a conduta dos indivíduos. Por fim, nos escritos e cursos da década de 1980, a ênfase recai sobre o eixo da subjetivação. Ali, no lugar de referir-se a uma teoria do sujeito ou a uma história da subjetividade, cabia analisar diferentes formas pelas quais o indivíduo foi levado historicamente a constituir-se como sujeito.
Mecanismos de normalização
Em Foucault, o estudo dos lugares de experiência nos quais se articulam esses âmbitos (o saber, o poder, a subjetivação) tem como destino final uma interrogação sobre o presente. E no interior desse quadro geral, suas análises sobre o poder, orientadas por esta inquietação maior acerca do presente histórico, bem permitiriam caracterizá-lo (o presente) como a época da norma.
O conjunto das análises de Foucault acerca do poder ancora-se na percepção da insuficiência dos estudos sobre o poder apoiados em um modelo jurídico, que privilegiam o problema da legitimidade, ou daqueles apoiados em um modelo institucional, cuja referência principal seria o papel do Estado e de suas instituições. A ampliação dos recursos para a inteligibilidade acerca do poder conduz Foucault a privilegiar uma interrogação sobre as formas pelas quais se organizam e atuam as diversas modalidades de seu exercício, em outros termos, privilegiar a descrição dos mecanismos de poder que permitem explicitar o funcionamento de formas históricas pelas quais se governou as condutas dos indivíduos em uma época determinada. Relativamente à época moderna, tais mecanismos serão descritos pelo filósofo como mecanismos de normalização.
Foucault estuda, em primeiro lugar, os mecanismos de normalização que têm como ponto fixação imediato os corpos dos indivíduos localizados no interior de espaços institucionais precisos, como o asilo psiquiátrico, o hospital, a fábrica, a prisão. Denomina tais mecanismos de “disciplinas” e, ao fazer sua genealogia, acompanha seu desenvolvimento e generalização no correr dos séculos 17, 18 e 19. Para o filósofo, a normalização disciplinar demarca espaços a serem ocupados, controla o tempo em que os indivíduos realizam suas atividades, estabelece sequências e ordenações dessas atividades em função de objetivos precisos, conduzindo ao adestramento e ao controle permanentes. Como resultado dessa sequência de procedimentos, torna-se possível uma separação objetiva entre a atitude, o comportamento, o indivíduo “normais” e a atitude, o comportamento, o indivíduo “anormais”. A referência para essa distinção entre o normal e o anormal é um “modelo ótimo” (a norma), construído em função dos resultados pretendidos pela própria estratégia disciplinar.
Tais estudos permitem a Foucault referir-se ao homem da época moderna como o produto de processos de objetivação e de sujeição. O indivíduo moderno pode ser compreendido como um “objeto dócil e útil”, concluirá ao final da obra Vigiar e punir. Porém, em um segundo momento de sua analítica do poder, a caracterização da forma de constituição normalizada do indivíduo moderno se complementará pelo estudo dos mecanismos de normalização que terão, agora, como ponto de fixação privilegiado a vida biológica, naquilo que ela comporta de regularidades e variáveis, perceptíveis no corpo coletivo das populações.
A formulação da noção de “biopolítica” possibilitará a Foucault justapor à análise da disciplina dos corpos o estudo dos mecanismos de regulação da vida, entendidos como uma segunda forma de acomodação dos mecanismos de poder à realidade histórica que constitui o presente. A normalização operada pelos dispositivos de seguranças da biopolítica consistirá no ajuste entre diferentes distribuições de normalidade, relativas a cada um dos aspectos que compõem a vida dos grupos humanos, de tal modo a fazer valer as distribuições “mais favoráveis” em relação àquelas que seriam “mais desfavoráveis”.
Aqui, a norma surge como um jogo no interior de normalidades diferenciais inerentes aos fenômenos da vida biológica e, nesse sentido, será o critério para as diferentes racionalidades políticas e os diversos procedimentos técnicos pelos quais se dará o seu governo. Foucault denomina “artes de governar” ou “governamentalidades” o conjunto das racionalidades políticas e dos procedimentos técnicos pelos quais se dá o governo da vida. Na maior parte das aulas dos cursos Segurança, Território, População e Nascimento da biopolítica, o filósofo irá reconstituir alguns momentos daquilo que entende ser a história das artes de governar que o Ocidente conheceu. Analisará em detalhe três formas históricas dessas governamentalidades políticas: a razão de Estado (séculos 16 e 17), o liberalismo (séculos 18 e 19) e os neoliberalismos alemão e norte-americano (século 20). Na perspectiva desse estudo sobre os mecanismos de regulação, o indivíduo moderno, membro do corpo biopolítico das populações, é igualmente normalizado, uma vez que é constituído a partir da arte de governar – regida pela normalização biopolítica – no interior da qual se dá a condução de suas condutas. É nesse sentido que o estudo do tema do poder realizado por Foucault permite a caracterização do presente histórico como sendo a época da norma.
Da lei à norma
Desde logo, fica claro que a norma aqui não se confunde com a lei ou com a norma em um sentido exclusivamente jurídico. Nas análises de Foucault acerca do poder, a norma, que define o modo de constituição do sujeito moderno, deve ser compreendida em um sentido bem mais amplo. Ela se configura como um princípio de exclusão ou de integração relativamente às práticas dos indivíduos, como observa Pierre Macherey (em Rencontre internationale. Michel Foucault philosophe), e se revela na implicação de duas formas simultâneas: a forma de “norma de saber”, na medida em que enuncia critérios de verdade cujo valor pode ser restritivo ou constitutivo e a forma de “norma de poder”, na medida em que fixa para o sujeito as condições de sua ação segundo regras externas ou leis internas.
A norma em Foucault define-se por seu caráter produtivo e, nesse sentido, não se confunde com um princípio de separação entre o lícito e o ilícito nem com um dispositivo de mera repressão ou restrição. Cabem, na abrangência de seu significado, as normas de comportamento, as normas sociais, as normas de conduta, as normas que regulam os saberes, as normas que prescrevem ações e que, relativamente à época moderna, funcionam segundo as formas da disciplina dos corpos e da regulação da vida biológica das populações. Nesse sentido, no campo de interrogação constituído pela analítica do poder em Foucault, trata-se também de buscar compreender as formas de implicação entre a norma (disciplinar e biopolítica) e as estruturas formais do direito. De tal forma que o filósofo poderá afirmar, no capítulo final de A vontade de saber, que na época moderna a “lei funciona cada vez mais como norma”.
Daí fazer sentido a tentativa de superação – ou ampliação – dos modelos exclusivamente jurídico e institucional para o estudo do poder. Se ao realizar tal estudo, os escritos de Foucault permitem a caracterização do presente como a época da norma, eles nos convidam a um duplo questionamento. Como afirma François Ewald, em seu texto Foucault, a norma e o direito, o primeiro questionamento possui um caráter ontológico e concerne à modernidade. Ele consiste em perguntar o que é a modernidade de que fazemos parte, uma vez que ela é de tipo normativo? O que aprendemos acerca da modernidade, ao abordá-la pelo lado das práticas de poder e de saber que se ordenam em torno da norma?
O segundo questionamento concerne ao próprio estatuto e ao funcionamento do direito nas sociedades modernas. Que lugar há para o direito na época da norma? Qual poderá ser a sua forma e quais são os seus perigos? A tentativa de responder a essas questões corresponde, então, ao projeto geral visado pela filosofia de Michel Foucault, ou seja, o esforço por compreender o presente a partir dos lugares de experiência que, pela articulação entre os campos do saber, do poder e da subjetivação, esclarecem acerca daquilo que somos, mas, ao mesmo tempo, nos desafiam a perguntar por aquilo que podemos fazer e nos tornar.

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