domingo, 13 de novembro de 2011

políticas - gilles deleuze e claire parnet


estou postando o texto-base para o Seminário de quinta-feira. POLÍTICAS é o quarto texto do livro DIÁLOGOS, de Gilles Deleuze e Claire Parnet (ed. escuta).
I
 Indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e tais linhas são de natureza bem diversa. A primeira espécie de linha que nos compõe é segmentária, de segmentaridade dura (ou, antes, já há muitas linhas dessa espécie); a famí­lia-a profissão; o trabalho-as férias; a família-e depois a escola-e depois o exército-e depois a fábrica-e depois a apo­sentadoria. E a cada vez, de um segmento a outro, nos dizem: agora você já não é um bebê; e na escola, aqui você não é mais como em família; e no exército, lá já não é como na escola...Em suma, todas as espécies de segmentos bem determinados, em todas as espécies de direções, que nos recortam em todos os sentidos, pacotes de linhas segmenta­rizadas. Ao mesmo tempo, temos linhas de segmentaridade bem mais flexíveis, de certa maneira moleculares. Não que sejam mais íntimas ou pessoais, pois elas atravessam tan­to as sociedades, os grupos quanto os indivíduos. Elas traçam pequenas modificações, fazem desvios, delineiam quedas ou impulsos: não são, entretanto, menos precisas; elas dirigem até mesmo processos irreversíveis. Mais, porém, do que linhas molares a segmentos são fluxos moleculares a limiares ou quanta. Um limiar é ultrapassado, e não coincide, necessariamente, com um segmento das linhas mais visíveis. Mui­tas coisas se passam sobre essa segunda espécie de linhas, devires, micro-devires, que não têm o mesmo ritmo que nossa "história". Por isso são tão penosas as histórias de família, as referências, as rememorações, enquanto todas as nossas verdadeiras mudanças passam em outra parte, uma outra política, outro tempo, outra individuação. Uma profis­são é um segmento duro, mas o que é que se passe lá embaixo, que conexões, que atrações e repulsões que não co­incidem com os segmentos, que loucuras secretas e, no entanto, em relação com as potências públicas: por exemplo, ser professor, ou então juiz, advogado, contador, faxineira? Ao mesmo tempo ainda, há como que uma terceira espécie de linha, esta ainda mais estranha: como se alguma coisa nos levasse, através dos segmentos, mas também através de nossos limiares, em direção de uma destinação desconheci­da, não previsível, não preexistente. Essa linha é simples, abstrata, e, entretanto, é a mais complicada de todas, a mais tortuosa: é a linha de gravidade ou de celeridade, é a linha de fuga e de maior declive ("a linha que o centro de gravi­dade deve descrever é, certamente, bem simples, e, pelo que ele acreditava, reta na maioria dos casos...mas de outro pon­to de vista, tal linha tem algo de excessivamente misterioso, pois, segundo ele, ela não tem nada senão o caminho da alma do dançarino... "1 Essa linha parecesurgir depois, se desta­car das outras, se conseguir se destacar. Pois, talvez haja pes­soas que não têm essa linha, que têm apenas as duas outras, ou que têm apenas uma, que vivem apenas sobre uma. No entanto, de outra maneira, essa linha está aí desde sempre, embora seja o contrário de um destino: ela não tem que se destacar das outras; ela seria, antes, primeira, as outras derivariam dela. Em todo caso, as três linhas são imanentes, tomadas umas nas outras. Temos tantas linhas emaranhadas quanto a mão. Somos complicados de modo diferente da mão. O que chamamos por nomes diversos – esquizoanáli­se, micro-política, pragmática, diagramatismo, rizomática, cartografia – não tem outro objeto do que o estudo dessas li­nhas, em grupos ou indivíduos.

1. Kleist. o teatro de marionetes.
Em uma admirável novela, Fitzgerald explica que uma vida anda sempre em vários ritmos, em várias velocidades 2. Como Fitzgerald é um drama vivo, e define a vida por um processo de demolição, seu texto é negro, não menos exemplar por isso, inspirando o amor a cada frase. Ele nunca foi tão genial quando falou de sua perda de genialidade. Diz, portanto, que para ele há, a princípio, grandes segmentos: riqueza-pobreza, jovem-velho, sucesso-perda de sucesso, saúde-doença, amor-esgotamento, criatividade-esterilidade, em relação com acontecimentos sociais (crise econômica, quebra da bolsa, sucesso do cinema que substitui o romance, formação do fascismo, toda espécie de coisas heterogêneas que quiserem, mas cujos segmentos se respondem e se precipitam). Fitzgerald chama isso de cortes, cada segmento marca ou pode marcar um corte. É um tipo de linha, a linha segmentarizada, que nos concerne a todos, em determinada data, em determinado lugar. Que ela ande para a degradação ou para a promoção, não muda grande coisa (uma vida bem – sucedida sobre este modo não é melhor, o sonho americano é tanto começar varredor para se tornar milionário quanto o inverso, os mesmos segmentos). E Fitzgerald diz, ao mesmo tempo, outra coisa: há linhas de fissura, que não coincidem com as linhas de grandes cortes segmentários. Dessa vez, dir-se-ia que um prato racha. Mas é antes quando tudo vai bem, ou tudo vai melhor sobre a outra linha, que a fissura acontece sobre essa nova linha, secreta, imperceptível, marcando um limiar de diminuição de resistência ou aumento de um limiar de exigência: já não se suporta o que se suportava antes, ontem ainda; a repartição dos desejos mudou em nós, nossas relações de velocidade e de lentidão se modificaram, um novo tipo de angústia surge, mas também uma nova serenidade. Fluxos se moveram, é quando sua saúde está melhor, sua riqueza mais assegurada, seu talento mais afirmado, que se dá o pequeno estalo que vai fazer a linha ficar oblíqua. Ou então o inverso: você começa a ficar bem quando tudo se quebra sobre a outra linha, imenso alívio. Não suportar mais alguma coisa pode ser um progresso, mas pode também ser um medo de velho, ou o desenvolvimento de uma paranóia. Pode ser uma estimação política ou afetiva, perfeitamente justa. Não se muda, não se envelhece da mesma maneira, de uma linha a outra. A linha flexível não é, no entanto, mais pessoal, mais íntima. As micro-fissuras são coletivas também, não menos que os macro-cortes, pessoais. E então Fitzgerald fala ainda de uma terceira linha, que ele chama de ruptura. Dir-se-ia que nada mudou, e, no entanto, tudo mudou. Com certeza não são os grandes segmentos, mudanças ou até mesmo viagens, que fazem tal linha; mas tampouco são as mutações mais secretas, os limiares móveis e fluentes, embora estes se aproximem dela. Dir-se-la, antes, que um limiar "absoluto" foi atingido. Já não há segredo. Você se tornou como todo mundo, mas justamente você fez de "todo-o-mundo" um devir. Você se tornou imperceptível, clandestino. Fez uma curiosa viagem imóvel. Apesar dos tons diferentes, é um pouco como Kierkegaard descreve o cavaleiro da fé, EU OLHO APENAS OS MOVIMENTOS3: o cavaleiro já não tem os segmentos da resignação, mas tampouco tem a flexibilidade de um poeta ou de um dançarino, ele não se deixa ver, ele se pareceria, antes, com um burguês, um cobrador de impostos, um lojista; ele dança com tanta precisão que se diria que ele não faz outra coisa senão caminhar ou até mesmo ficar imóvel; ele se .confunde com o muro, mas o muro tornou-se vivo, ele se pintou de cinza sobre cinza, ou como a Pantera cor-de-rosa, ele pintou o mundo com sua cor, adquiriu alguma coisa de invulnerável, e sabe que amando, mesmo amando e para amar, deve-se bastar a si mesmo, abandonar o amor. e o eu...(é curioso como Lawrence escreveu páginas semelhantes). Ele não é senão uma linha
 3.    Kierkgaard. Crainte et tremblement. Paris, Aubier. (E a maneira pela qual Kierkgaard, em função do movimento, esboça uma série de roteiros que per­tencem ao cinema).
abstrata, um puro movimento difícil de descobrir, ele jamais começa, toma as coisas pelo meio, está sempre no meio – no meio das duas outras linhas? "Olho apenas os movimentos."
Deligny propõe hoje uma cartografia ao seguir o percurso das crianças autistas: as linhas costumeiras, e também as linhas flexíveis, onde a criança faz uma volta, encontra alguma coisa, bate palmas, cantarola um ritornelIo, volta sobre seus passos, e então as "linhas erráticas", emaranhadas nas duas outras.4 Todas essas linhas entrelaça das. Deligny faz uma geo-análise, uma análise de linhas que segue o caminho longe da psicanálise, e que não concerne apenas às crianças autistas, mas a todas as crianças, todos os adultos (vejam como alguém anda na rua, se ele não está tomado demais em sua segmentaridade dura, que pequenas invenções ele põe nisso), e não somente o andar, mas os gestos, os afetos, a linguagem, o estilo. Seria preciso, antes de tudo, dar um estatuto mais preciso às três linhas. Para as linhas molares de segmentaridade dura, pode-se indicar um certo número de caracteres que explicam seu agenciamento, ou, antes, seu funcionamento nos agenciamentos de que fazem parte (e não há agenciamento que não comporte tais linhas). Eis, portanto, mais ou menos, os caracteres da primeira espécie de linha.
1. Os segmentos dependem de máquinas binárias, bem diversas se quiserem. Máquinas binárias de classes sociais, de sexos, homem-mulher, de idades, criança-adulto, de raças, branco-negro, de setores, público-privado, de subjetivações, em nossa casa-fora de casa. Essas máquinas binárias são tanto mais complexas quanto se recortam, ou se chocam umas com as outras, afrontam-se, e cortam a nós mesmos em toda espécie de sentidos. E elas não são sumariamente dualistas, são, antes, dicotômicas: podem operar, diacronicamente (se você não é nem a nem b, então é c: o dualismo transportou-se, e já não concerne elementos simultâneos a serem escolhidos, e sim escolhas sucessivas;
4. Fernand Deligny. Cahiers de
se você não é nem branco nem negro, você é mestiço; se você não é nem homem nem mulher, você é travesti; a cada vez a máquina dos elementos binários produzirá escolhas binárias entre elementos que não entravam no primeiro recorte).
1.Os segmentos implicam também dispositivos de poc der, bem diversos entre si, cada um fixando o código e o ter­ritório do segmento correspondente. São dispositivos cuja análise Foucault levou longe, recusando ver neles simples emanações de um aparelho de Estado preexistente. Cada dis­positivo de poder é um complexo código-território (não se aproxime de meu território, sou eu quem manda aqui...). O Sr. Charlus desmorona na casa da Sra. Verdurin, porque ele se aventurou fora de seu território e que seu código já não funciona. Segmentaridade dos escritórios contíguos, em Kafka. Foi descobrindo a segmentaridade e a heterogeneida­de dos poderes modernos que Foucault pôde romper com as abstrações vazias do Estado e "da" Lei, e renovar todos os dados da análise política. Não que o aparelho de Estado não tenha sentido: ele próprio tem uma função muito particular, enquanto sobrecodifica todos os segmentos, a um só tempo os que ele toma sobre si em determinado momento e aque­les que ele deixa fora de si. Ou, antes, o aparelho de Estado é um agenciamento concreto que efetua a máquina de sobre­codificação de uma sociedade. Essa máquina, por sua vez, não é, portanto, o próprio Estado, é a máquina abstrata que organiza os enunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma sociedade, as línguas e os saberes dominantes, as ações e sentimentos conformes, os segmentos que prevale­cem sobre os outros. A máquina abstrata de sobrecodifica­ção assegura a homogeneização dos diferentes segmentos, sua convertibilidade, sua traduzibilidade, ela regula as pas­sagens de uns nos outros, e sob que prevalência. Ela não de­pende do Estado, mas sua eficácia depende do Estado como do agenciamento que a efetua em um campo social (por exemplo, os diferentes segmentos monetários, as diferentes espécies de moeda têm regras de conversibilidade, entre si e com os bens, que remetem a um banco central como aparelho de Estado). A geometria grega funcionou como uma má­quina abstrata que organizava o espaço social, sob as condi­ções do agenciamento concreto do poder da cidade. Pode-se perguntar hoje quais são as máquinas abstratas de sobreco­dificação que se exercem em função das formas de Estado moderno. Pode-se até mesmo conceber "saberes" que fazem ofertas de serviço ao Estado, propondo-se a sua efetuação, pretendendo fornecer as melhores máquinas em função das tarefas ou dos objetivos do Estado: hoje a informática? Mas também as ciências do homem? Não há ciências de Esta­do, mas há máquinas abstratas que têm relações de interde­pendência com o Estado. Por isso, sobre a linha de segmen­taridade dura, deve-se distinguir os dispositivos de poder que codificam os segmentos diversos, a máquina abstrata que os sobre codifica e regula suas relações, o aparelho de Estado que efetua essa máquina.
3. Enfim, toda a segmentaridade dura, todas as linhas de segmentaridade dura envolvem um certo plano que con­cerne, a um só tempo, às formas e seu desenvolvimento, os sujeitos e sua formação. Plano de organização que dispõe sem­pre de uma dimensão suplementar (sobrecodificação). A edu­cação do sujeito e a harmonização da forma não param de obcecar nossa cultura, de inspirar as segmentações, as pla­nificações, as máquinas binárias que as cortam e as máqui­nas abstratas que as recortam. Como diz Pierrete Fleutiaux, quando um contorno se põe a tremer, quando um segmento vacila, chama-se a terrível Luneta para cortar, o Laser, que repõe em ordem as formas, e os sujeitos em seu lugar.5
Para o outro tipo de linha, o estatuto parece totalmente diferente. Os segmentos não são os mesmos nesse caso, procedendo por limiares, constituindo devires, blocos de devir, marcando contínuos de intensidade, conjugações de fluxos. As máquinas abstratas também não são as mesmas, mutantes e não sobrecodificantes, marcando suas mutações a cada limiar e cada conjugação. O plano não é o mesmo,
plano de consistência ou de imanência que arranca das formas partículas entre as quais não há senão relações de velocidade ou de lentidão, e dos sujeitos afetos que já não operam senão por individuações por "hecceidade". As máquinas binárias já não têm poder algum sobre o real, não porque o segmento dominante (determinada classe social, determinado sexo...) mudasse, tampouco porque mistos do tipo bissexualidade, mistura de classes se impusessem: ao contrário, porque as linhas moleculares fazem correr, entre os segmentos, fluxos de desterritorialização que já não pertencem nem a um nem a outro, mas constituem o devir assimétrico de ambos, sexualidade molecular que já não é a de um homem ou de uma mulher, massas moleculares que já não têm o contorno de uma classe, raças moleculares como pequenas linhagens que já não respondem às grandes oposições molares. Não se trata, é claro, de uma síntese dos dois, de uma síntese de 1 e de 2, e sim de um terceiro que vem sempre de outra parte, e atrapalha a binaridade de ambos, não se inscrevendo nem em sua oposição nem em sua complementaridade. Não se trata de acrescentar sobre a linha um novo segmento aos segmentos precedentes (um terceiro sexo, uma terceira classe, uma terceira idade), mas de traçar outra linha no meio da linha segmentária, no meio dos segmentos, e que as carrega conforme velocidades e lentidões variáveis em um movimento de fuga ou de fluxo. Falar sempre como geógrafo: suponhamos que entre o oeste e o leste uma certa segmentaridade se instala, oposta em uma máquina binária, arranjada em aparelhos de Estado, sobrecodificada por uma máquina abstrata como esboço de uma Ordem mundial. É então de norte a sul que se faz a "desestabilização", como diz melancolicamente Giscard d'Estaing, e que um riacho, embora pouco profundo, se abre e põe novamente tudo em jogo, derrota o plano de organização. Um corsa aqui, noutra parte um palestino, um seqüestrador de avião, um levante tribal, um movimento feminista, um ecologista, um russo dissidente, haverá sempre alguém para surgir no sul. Imaginem os gregos e os troianos como dois segmentos opostos, frente a frente; mas eis que as amazonas chegam, elas começam vencendo os troianos, de modo que os gregos gritam "as amazonas estão conosco", mas elas se voltam contra os gregos, os pegam de surpresa com a violência de uma tormenta. Assim começa a Pentesiléia, de Kleist. As grandes rupturas, as grandes oposições são sempre negociáveis, mas não a pequena fissura, as rupturas imperceptíveis, que vêm do sul. Dizemos "sul" sem dar muita importância a isso. Falamos de sul, para marcar uma direção que não é mais aquela da linha de segmentos. Mas cada um tem seu sul. Godard: o que conta não são apenas os dois campos opostos sobre a grande linha onde eles se confrontam; o que conta é a fronteira, por onde tudo passa e corre sobre uma linha quebrada molecular orientada de modo diferente. Maio de 68 foi a explosão de uma linha molecular, irrupção das amazonas, fronteira que traçava sua linha inesperada, carregando os segmentos como blocos arrancados que já não se reconheciam.
Podem nos acusar de não sairmos do dualismo, com duas espécies de linhas, recortadas, planificadas, maquinadas diferentemente. Mas o que define o dualismo não é um nÚmero de termos, tampouco se escapa ao dualismo acrescentando outros termos (x > 2). Só se sai efetivamente dos dualismos deslocando-os à maneira de uma carga, e quando se encontra entre os termos, sejam eles dois ou mais, um desfiladeiro estreito como uma borda ou uma fronteira que vai fazer do conjunto uma multiplicidade, independentemente do nÚmero das partes. O que chamamos de agenciamento é precisamente uma multiplicidade. Ora, um agenciamento qualquer comporta, necessariamente, tanto linhas de segmentaridade dura e binária, quanto linhas moleculares, ou linhas de borda, de fuga ou de declive. Os dispositivos de poder não nos parece exatamente constitutivos dos agenciamentos, e sim que fazem parte deles em uma dimensão sobre a qual todo agenciamento pode cair ou se curvar. Mas justamente quando os dualismos pertencem a e não faz dualismo com esta. Não há dualismo entre as máquinas abstratas sobrecodificantes, e as máquinas abstratas de mutação: estas encontram-se segmentarizadas, organizadas, sobrecodificadas pelas outras ao mesmo tempo que as minam, todas as dÜas trabalham umas nas outras no seio do agenciamento. Do mesmo modo não há dualismo entre dois planos de organização transcendente e de consistência imanente: é das formas e dos sujeitos do primeiro plano que o segundo não pára de arrancar partículas entre as quais não há senão relações de velocidade e de lentidão, e é também sobre o plano de imanência que o outro se eleva, trabalhando nele para bloquear os movimentos, fixar os afetos, organizar formas e sujeitos. Os indicadores de velocidade supõem formas que eles dissolvem, como as organizações supõem o material em fusão que elas põem em ordem. Não falamos, portanto, de um dualismo entre duas espécies de "coisas", mas de uma multiplicidade de dimensões, de linhas e de direções no seio de um agenciamento. À questão, como o desejo pode desejar sua própria repressão, como ele pode desejar sua escravidão, respondemos que os poderes que esmagam o desejo, ou que o sujeitam, já fazem parte dos próprios agenciamentos de desejo: basta que o desejo siga aquela linha, para ser levado, como um barco, por aquele vento. Não há mais desejo de revolução do que desejo de poder, desejo de oprimir ou de ser oprimido; mas revolução, opressão, poder etc., são linhas componentes atuais de um agenciamento dado. Não que essas linhas preexistam; elas se traçam, se compõem, imanentes umas às outras, emaranhadas umas nas outras, ao mesmo tempo que o agenciamento de desejo se faz, com suas máquinas emaranhadas e seus planos entrecortados. Não se sabe de antemão o que vai funcionar como linha de declive, nem a forma do que virá barrá-la. É verdade de um agenciamento musicat por exemplo, com seus códigos e territorialidades, suas obrigações e seus aparelhos de poder, suas medidas dicotomizadas, suas formas melódicas e harmônicas que se desenvolvem, seu plano de organização transcendente, mas também com seus transformadores de velocidade entre moléculas sonoras, seu "tempo não pulsado", suas proliferações e dissoluções, seus devires­criança, devires-mulher, animat seu plano de consistência imanente. Papel do poder da Igreja, muito tempo nos agenciamentos musicais, e o que os músicos conseguiam fazer passar lá dentro, ou no meio. É verdade de todo agenciamento.
O que seria preciso comparar em cada caso são os movimentos de desterritorialização e os processos de reter­ritorialização que aparecem em um agenciamento. Mas o que querem dizer estas palavras que Félix inventa para fazer delas coeficientes variáveis? Poderíamos retomar os lugares comuns da evolução da humanidade: o homem, animal des­territorializado. Quando nos dizem que o hominien tira da terra suas patas anteriores, e que a mão é antes locomotora, de­pois preensiva, são limiares ou quanta de desterritorializa­ção, mas, a cada vez, com reterritorialização complementar: a mão locomotora como pata desterritorializada se reterrito­rializa sobre os ramos dos quais se serve para passar de árvore em árvore; a mão preensiva como locomoção dester­ritorializada se reterritorializa sobre elementos arrancados, emprestados, chamados ferramentas, que ela vai brandir ou propulsar. Mas a ferramenta "bastão" é, ela própria, um ramo desterritorializado, e as grandes invenções do homem impli­cam uma passagem à estepe como floresta desterritorializa­da; ao mesmo tempo, o homem se reterritorializa sobre a estepe. Diz-se do seio que é uma glândula mamária des­territorializada devido à estatura verticat e que a boca é uma goela desterritorializada, como conseqüência da dobra das mucos as no exterior (lábios) mas se opera uma reterritoria­lização correlativa dos lábios sobre o seio e inversamente, de modo que os corpos e os meios são percorridos de velocida­des de desterritorialização bem diferentes, de velocidades diferenciais, cujas complementaridades vão formar continuums de intensidade, mas também vão dar lugar a pro­cessos de reterritorialização. Em última instância, é a própria terra, a desterritorializada (“o deserto cresce...”), e é o nôma­de, o homem da terra, o homem da desterritorialização – em­bora ele seja também aquele que não se move – que perma­nece preso ao meio, deserto ou estepe. 
II
 É, porém, em campos sociais concretos, em determina­do momento, que é preciso estudar os movimentos compa­rados de desterritorialização, os continuums de intensidade e as conjugações de fluxos que eles formam. Tomamos como exemplos, em torno do século XI: o movimento de fuga das massas monetárias; a grande desterritorialização das massas camponesas, sob a pressão das últimas invasões, e das cres­centes exigências dos senhores; a desterritorialização das mas­sas mobiliárias, que toma formas tão diversas quanto a cru­zada, a instalação nas cidades, os novos tipos de exploração da terra (arrendamento ou assalariado); as novas figuras de cidades, cujos equipamentos são cada vez menos territoriais; a desterritorialização da igreja, com sua privação de bens ter­renos, sua "paz de Deus", sua organização de cruzadas; a des­territorialização da mulher com o amor cavalheiresco, depois o amor cortês. As cruzadas (inclusive as cruzadas de crian­ças) podem aparecer como um limiar de conjugação de to­dos esses movimentos. De certa maneira, pode-se dizer que em uma sociedade o que é primeiro são as linhas, os movi­mentos de fuga. Pois estes, longe de serem uma fuga fora do social, longe de serem utópicos ou até mesmo ideológicos, são constitutivos do campo social, cujo declive e fronteiras, todo o devir, eles traçam. Reconhece-se sumariamente um marxista quamdo ele diz que uma sociedade se conrtradiz, se define por suas contradições de classe. Nós dizemos, antes, que, em uma sociedade, tudo foge, e que uma sociedade se define por suas linhas de fuga que afetam massas de toda natureza (mais uma vez, "massa" é uma noção molecular). Uma sociedade, mas também um agenciamento coletivo, se definem, antes de tudo, por suas pontas de desterritorialização, seus fluxos de desterritorialização. As grandes aventuras geográficas da história são li­nhas de fuga, ou seja, longas caminhadas, a pé, a cavalo ou de barco: a dos hebreus no deserto, a de Genserico, o Vân­dalo, atravessando o Mediterrâneo, a dos nômades através da estepe, a longa caminhada dos chineses – é sempre sobre uma linha de fuga que se cria, não, é claro, porque se imagi­na ou se sonha, mas, ao contrário, porque se traça algo real, e compõe-se um plano de consistência. Fugir, mas fugindo, procurar uma arma.
Não se deve entender essa primazia das linhas de fuga cronologicamente, mas tampouco no sentido de uma eterna generalidade. É, antes, o fato e o direito do intempestivo; um tempo não pulsado, uma hecceidade como um vento que se levanta, uma meia-noite, um meio-dia. Pois as reterritorializações se fazem ao mesmo tempo: monetária, sobre novos circuitos; rural, sobre novos modos de exploração; urbana, sobre novas funções etc. É quando se faz uma acumulação de todas essas reterritorializações, que se destaca, então, uma "classe" que dela se beneficia particularmente, capaz de homogeneizá-la e sobrecodificar todos seus segmentos. Em última instância, seria preciso distinguir os movimentos de massas, de toda natureza, com seus respectivos coeficientes de velocidade, e as estabilizações de classes, com seus segmentos distribuídos na reterritorialização de conjunto – a mesma coisa agindo como massa e como classe, mas sobre duas linhas diferentes emaranhadas, com contornos que não coincidem. Pode-se compreender melhor, então, por que ora dizemos que há ao menos três linhas diferentes, ora apenas duas, ora até mesmo apenas uma, muito complicada. Ora três linhas, com efeito, porque a linha de fuga ou de ruptura conjuga todos os movimentos de desterritorialização, precipita seus quanta, arranca suas partículas aceleradas que entram em vizinhança umas das outras, leva-as para um plano de consistência ou uma máquina mutante e depois, uma segunda linha, molecular, onde as desterritorializações são apenas relativas, sempre compensadas por reterritorializações que lhes impõe voltas, desvios, equilíbrio e estabilização; enfim, a linha molar a segmentos bem determinados, onde as reterritorializações se acumulam para constituir um plano de organização e passar para uma máquina de sobrecodificação. Três linhas, sendo uma linha nômade, a outra migrante, a outra sedentária (o migrante, de modo algum a mesma coisa que o nômade). Ou então haveria apenas duas linhas, porque a linha molecular apareceria apenas como oscilando entre os dois extremos, ora levada pela conjugação dos fluxos de desterritorialização, ora relacionada com a acumulação das reterritorializações (o migrante ora se alia ao nômade, ora ao mercenário ou federado de um império: os Ostrogotos e os Wisigotos). Ou então há apenas uma linha, a linha de fuga primeira, de borda ou de fronteira, que se relativiza na segunda linha, que se deixa parar ou cortar na terceira. Mas mesmo nesse caso pode ser cômodo apresentar A linha como nascendo da explosão das duas outras. Nada mais complicado do que a linha ou as linhas: é aquela de que fala Melville, unindo as canoas em sua segmentaridade organizada, o capitão Achab em seu devir-animal e molecular, a baleia branca em sua louca fuga. Voltemos aos regimes de signos do qual falávamos precedentemente: como a linha de fuga é barrada em um regime despótico, afetada por um sinal negativo; como ela encontra no regime dos hebreus um valor positivo, mas relativo, recortado em processos sucessivos...Eram apenas dois casos sumários, há muitos outros; é, a cada vez, o essencial da política. A política é uma experimentação ativa, porque não se sabe de antemão o que vai acontecer com uma linha. Fazer a linha passar, diz o contador, mas justamente pode-se fazê-la passar em qualquer lugar.
 Há tanto perigo, cada uma das três linhas tem seus perigos. O perigo da segmentaridade dura ou da linha de corte aparece em toda parte. Pois esta não concerne apenas às nossas relações com o Estado, mas a todos os dispositivos de poder que trabalham nossos corpos, todas as máquinas binárias que nos recortam, as máquinas abstratas que nos sobrecodificam; ela concerne à nossa maneira de perceber, de agir, de sentir, nossos regimes de signos. É bem verdade que os Estados nacionais oscilam entre dois pólos: liberal, o Estado não passa de um aparelho que orienta a efetuação da máquina abstrata; totalitário, ele toma para si a máquina abstrata e tende a se confundir com ela. Mas os segmentos que nos atravessam e pelos quais passamos, de toda maneira, são marcados por uma rigidez que nos assegura, fazendo de nós, ao mesmo tempo, as criaturas mais medrosas, mais impiedosas também, mais amargas. O perigo está tanto em toda parte, e é tão evidente, que seria preciso, antes, se perguntar até que ponto temos, apesar de tudo, necessidade de tal segmentaridade. Mesmo se tivéssemos o poder de fazê­-la explodir, poderíamos conseguir isso sem nos destruir, de tanto que ela faz parte das condições de vida, inclusive de nosso organismo e de nossa própria razão? A prudência com a qual devemos manejar essa linha, as precauções a serem tomadas para amolecê-la, suspendê-la, desviá-la, miná-la, testemunham um longo trabalho que não se faz apenas contra o Estado e os poderes, mas diretamente sobre si.
Ainda mais que a segunda linha tem, ela mesma, seus perigos. Certamente não basta atingir ou traçar uma linha molecular, ser levado para uma linha flexível. Nesse caso, também, tudo está concernido, nossa percepção, nossas ações e paixões, nossos regimes de signos. Mas não apenas podemos encontrar" sobre uma linha flexível os mesmos perigos que sobre a dura, simplesmente miniaturizados, disseminados ou, antes, molecularizados; pequenos édipos de comunidade tomaram o lugar do Édipo familiar, relações móveis de força substituíram dispositivos de poder, as fissuras substituíram as segregações. Há coisa ainda pior: são as próprias linhas flexíveis que produzem ou afrontam seus próprios perigos, um limiar transposto depressa demais, uma intensidade tornada perigosa porque não podia ser suportada. Você não tomou muitas precauções. É o fenômeno "buraco negro": uma linha flexível se precipita em um buraco negro de onde não poderá sair. Guattari fala dos micro­fascismos que existem em um campo social sem serem necessariamente centralizados em um aparelho de Estado particular. Deixou-se o campo da segmentaridade dura, mas se entrou em um regime não menos regulado, onde cada um se afunda em seu buraco negro e torna-se perigoso nesse buraco, dispondo de um seguro sobre seu caso, seu papel e sua missão, mais inquietante ainda que as certezas da primeira linha: os Stálins de pequenos grupos, os justiceiros de bairro, os micro-fascismos de bandos...Fizeram com que disséssemos que, para nós, o esquizofrênico era o verdadeiro revolucionário. Nós acreditamos, antes, que a esquizofrenia é a queda de um processo molecular em um buraco negro. Os marginais sempre nos causaram medo, e um pouco de horror. Eles não são o bastante clandestinos.
[Nota G. D. Em todo caso, eles me causam medo. Há uma palavra molecular da loucura "in vivo", ou do droga­do, ou do delinqüente, que não vale mais do que os grandes discursos de um psiquiatra in vitro. Tantos asseguramentos de um lado, quanto certezas do outro. Não são os marginais que criam as linhas; eles se instalam sobre essas linhas, fa­zem dela sua propriedade, e é perfeito quando eles têm a curiosa modéstia dos homens de linha, a prudência do ex­perimentador, mas é a catástrofe quando deslizam para um buraco negro, de onde não sai mais do que a palavra micro­fascista de sua dependência e de seu atordoamento: "Nós so­mos a vanguarda", "nós somos os marginais..."]
Acontece, até mesmo, de as duas linhas se nutrirem uma à outra, e de a organização de uma segmentaridade, cada vez mais dura, ao nível dos grandes conjuntos molares, entrar em circuito com a gestão dos pequenos terrores e dos buracos negros onde cada um mergulha em uma rede molecular. Paul Virilio faz o quadro do Estado mundial tal como ele se deli­neia hoje: Estado da paz absoluta ainda mais aterrorizante do que o da guerra total, tendo realizado sua plena identi­dade com a máquina abstrata, e onde o equilíbrio das esfe­ras de influência e dos grandes segmentos comunica com uma "capilaridade secreta" – onde a cidade luminosa e bem recortada só abriga trogloditas noturnos, cada um mergulha­do em seu buraco negro, "pântano social" que completa exa­tamente a "sociedade evidente e super-organizada".l
E seria um erro acreditar que basta tomar, enfim, a linha de fuga ou de ruptura. Antes de tudo, é preciso traçá-la, saber onde e como traçá-la. E depois ela própria tem seu perigo, que talvez seja o pior. Não apenas as linhas de fuga, de maior declive, correm o risco de serem barradas, segmentarizadas, precipitadas em buracos negros, mas elas têm um risco particular a mais: virar linhas de abolição, de destruição, dos outros e de si mesma. Paixão de abolição. Até mesmo a música, por que ela dá tanta vontade de morrer? O grito de morte de Maria, em comprimento, na superfície da água, e o grito de morte de Lulu, vertical e celeste. Toda a música entre esses dois gritos? Todos os exemplos que demos de linha de fuga, mesmo que apenas nos escritores que amamos, como acontece de eles acabarem tão mal? Eas linhas de fuga acabam mal não por serem imaginárias, mas justamente porque são reais e estão em sua realidade. Elas acabam mal, não apenas porque entram em curto-circuito com as duas outras linhas, mas em si mesmas, por causa de um perigo que elas secretam. Kleist e seu suicídio, Hölderlin e sua loucura, Fitzgerald e sua demolição, Virginia Woolf e seu desaparecimento. Pode-se imaginar alguns desses mortos apaziguados e até mesmo felizes, hecceidade de uma morte que já não é a de uma pessoa, mas a liberação de um acontecimento puro, em sua hora, sobre seu plano. Mas, justamente, será que o plano de imanência, o plano de consistência não pode nos dar senão uma morte
1. Paul Virilio. L'insécurité du territoire. Stock.
relativamente digna e não amarga? Ele não foi feito para isso. Mesmo se toda criação acaba em sua abolição, que a trabalha desde o início, mesmo se toda música é uma perseguição do silêncio, elas não podem ser julgadas segundo seu fim nem segundo seu suposto objetivo, pois os excedem por todos os lados. Quando acabam na morte, é em função de um perigo que lhes é próprio, e não de uma destinação que lhes seria própria. O que queremos dizer é o seguinte: por que, sobre as linhas de fuga enquanto reais, a "metáfora" da guerra aparece com tanta freqüência, mesmo ao nível mais pessoal, mais individual? Hólderlin e o campo de batalha, Hypérion. Kleist, e em toda parte em sua obra, a idéia de uma máquina de guerra contra os aparelhos de Estado, mas também em sua vida, a idéia de uma guerra a ser feita, que deve conduzi-lo ao suicídio. Fitzgerald: "Eu tinha o sentimento de estar em pé no crepúsculo em um campo de tiro abandonado..." Crítica e clínica: é a mesma coisa, a vida, a obra, quando elas encontraram a linha de fuga que faz delas as peças de uma máquina de guerra. Há muito tempo, nessas condições, que a vida deixou de ser pessoal, e que a obra deixou de ser literária, ou textual.
Certamente a guerra não é uma metáfora. Supomos, com Félix, que a máquina de guerra tem uma natureza e uma ori­gem bem diferente do aparelho de Estado. A máquina de guerra teria sua origem nos pastores nômades, contra os se­dentários imperiais; ela implica uma organização aritmética em um espaço aberto onde os homens e os bichos distri­buem, por oposição à organização geométrica de Estado que reparte um espaço fechado (mesmo quando a máquina de guerra se relaciona com uma geometria, é uma geometria muito diferente da do Estado, uma espécie de geometria ar­quimediana, uma geometria dos "problemas", e não dos "teoremas", como a de Euclides). Inversamente, o poder de Estado não repousa sobre uma máquina de guerra, mas so­bre o exercício das máquinas binárias que nos atravessam e da máquina abstrata que nos sobrecodifica: toda uma "polí­cia". A máquina de guerra, ao contrário, é atravessada pelos devires-animais, os devires-mulher, os devires-imperceptível do guerreiro (cf. o segredo como invenção da máquina de guerra, por oposição à "publicidade" do déspota ou do ho­mem de Estado). Dumezil insistiu com freqüência nessa posição excêntrica do guerreiro em relação ao Estado; Luc de Heusch mostra como a máquina de guerra vem de fora, precipitando-se sobre um Estado já desenvolvido que não a comportava.2 Pierre Clastres, em seu último texto, explica como a função da guerra, em grupos primitivos, era, preci­samente, conjurar a formação de um aparelho de Estado.3 Dir-se-ia que o aparelho de Estado e a máquina de guerra não pertencem às mesmas linhas, não se constróem sobre as mesmas linhas; enquanto o aparelho de Estado pertence às linhas de segmentaridade dura, e até mesmo as condiciona ao efetuar sua sobrecodificação, a máquina de guerra segue as linhas de fuga e de maior declive, vindas do fundo da es­tepe ou do deserto e penetrando no Império. Gengis Khan e o imperador da China. A organização militar é uma organi­zação de fuga, até mesmo a que Moisés dá a seu povo, não apenas porque ela consiste em fugir de alguma coisa, sequer em fazer o inimigo fugir, mas porque ela traça, em toda parte por onde passa, uma linha de fuga ou de desterrito­rialização que se confunde com sua própria política e sua própria estratégia. Nessas condições, um dos problemas mais consideráveis que será colocado aos Estados será o de inte­grar a máquina de guerra na forma de exército instituciona­lizado, o de fazer dela uma peça de sua polícia geral (Tamer­lan é, talvez, o exemplo mais evidente de tal conversão). O exército não passa de um compromisso. Pode acontecer de a máquina de guerra tornar-se mercenária, ou então de se deixar apropriar pelo Estado quando ela o conquista. Mas sempre haverá uma tel).são entre o aparelho de Estado, com
2.      Georges Dumèzil, notadamente Heur et malheur du guerder. Paris, PUF, e Mithe e epopée, t. II. Paris, Gallimard. Luc de Heusch. Le roi ivre ou l'origine de l'Etat. Paris, Gallimard.
3.    Pierre Clastres. "La guerre dans les sociétés primitives", in Libra, 1. Paris, Payot.
 sua exigência de conservação própria, e a máquina de guer· ra, em seu empreendimento de destruir o Estado, os súditm do Estado, e até mesmo de se destruir ou de se dissolver ac longo da linha de fuga. Se não há história do ponto de vista dos nômades, embora tudo passe por eles, a ponto de eles serem como os "números" ou o inconhecível da história, é porque são inseparáveis desse empreendimento de abolição que faz com que os impérios nômades se dissipem como que por si só, ao mesmo tempo em que a máquina de guerra ou se destrói, ou passa para o serviço do Estado. Em suma, a linha de fuga converte-se em linha de abolição, de destrui­ção das outras e de si mesma, a cada vez que ela é traçada por uma máquina de guerra. E é esse o perigo especial des­se tipo de linha, que se mistura mas não se confunde com os perigos precedentes. A ponto de, a cada vez que uma li­nha de fuga acaba em linha de morte, nós não invocarmos uma pulsão de interior do tipo "instinto de morte", invoca­mos ainda um agenciamento de desejo que põe em jogo uma máquina objetiva ou extrinsecamente definível. Não é, por­tanto, por metáfora que, a cada vez que alguém destrói os outros e destrói a si mesmo, ele inventou sobre sua linha de fuga sua própria máquina de guerra: a máquina de guerra conjugal de Strindberg, a máquina de guerra alcoólica de Fitzgerald...Toda a obra de Kleist repousa sobre a seguinte constatação: já não há máquina de guerra em grande escala como as amazonas, a máquina de guerra não passa de um sonho que se dissipa e dá lugar aos exércitos nacionais (Prín­cipe de Hamburgo); como reinventar uma máquina de guerra de um novo tipo (Michael Kohlhaas), como traçar a linha de fuga da qual bem se sabe que ela nos leva, portanto, à aboli­ção (suicídio a dois)? Fazer sua própria guerra?...Ou então como desarmar essa última armadilha?
As diferenças não passam entre individual e coletivo, pois não vemos qualquer dualidade entre os dois tipos de problemas; não há sujeito de enunciação, mas todo nome próprio é coletivo, todo agenciamento já é coletivo. As diferenças tampouco passam entre natural e artificial, os dois pertencem à máquina e nela se permutam. Nem entre espontâ­neo e organizado, pois a única questão concerne aos modos de organização. Nem entre segmentário e centralizado, a pró­pria centralização é uma organização que repousa sobre uma forma de segmentaridade dura. As diferenças efetivas pas­sam entre as linhas, embora sejam todas imanentes umas às outras, misturadas umas nas outras. Por isso a questão da esquizoanálise ou da pragmática, a própria micro-política, não consistem jamais em interpretar, mas apenas em pergun­tar: quais são suas linhas, indivíduo ou grupo, e quais os pe­rigos sobre cada uma delas?
1) Quais são os segmentos duros, suas máquinas biná­rias e de sobrecodificação? Pois até mesmo estas não são da­das prontas, não somos apenas recortados por máquinas binárias de classe, sexo ou idade: há outras que estamos sem­pre deslocando, inventado sem saber. E quais os perigos se fizermos explodir esses segmentos rápido demais? O próprio organismo não morrerá com isso, ele que possui também máquinas binárias, até em seus nervos e seu cérebro?
2) Quais são suas linhas flexíveis, quais fluxos e quais limiares? Que conjunto de desterritorializações relativas, e de reterritorializações correlativas? E a distribuição dos buracos negros: quais são os buracos negros de cada um, lá onde uma besta se aloja, onde um micro-fascismo se alimenta?
3) Quais são suas linhas de fuga, lá onde os fluxos se conjugam, lá onde os limiares atingem um ponto de adjacên­cia e de ruptura? São elas ainda toleráveis, ou já estão toma­das em uma máquina de destruição e de autodestruição que recomporia um fascismo molar? Pode acontecer de um agen­ciamento de desejo e de enunciação ser rebatido sobre suas linhas mais duras, sobre seus dispositivos de poder. Há agenciamentos que têm apenas essas linhas. Mas os outros perigos, mais flexíveis e mais viscosos, espreitam cada um, sendo cada um seu único juiz, se não for tarde demais. A questão "como o desejo pode desejar sua própria repressão?" não apresenta dificuldade teórica real, mas muitas dificul­dades práticas a cada vez. Há desejo desde que haja máquina ou "corpo sem órgãos". Há, porém, corpos sem órgãos como envelopes vazios endurecidos, porque fizeram seus componentes orgânicos explodir rápido demais, "overdose". Há corpos sem órgãos, cancerosos, fascistas, em buracos ne­gros ou máquinas de abolição. Como o desejo pode frustrar tudo isso, levando seu plano de imanência e de consistência que afronta a cada vez esses perigos.
Não há nenhuma receita geral. Acabamos com todos esses conceitos globalizantes. Até mesmo os conceitos são hecceidades, acontecimentos. O que há de interessante em conceitos como desejo, ou máquina, ou agenciamento, é que eles só valem por suas variáveis, e, pelo máximo de variáveis que eles permitem. Não somos a favor dos conceitos tão enormes quanto vazios, A LEI, O MESTRE, O REBELDE. Não somos a favor de levar em conta mortos e vítimas da história, o martírio dos Gulags, e para concluir: "a revolução é impossível, mas é preciso que nós, pensadores, pensemos o impossível, já que esse impossível só existe em nosso pensamento!" Parece-nos que nunca teria havido o menor Gulag se as vítimas tivessem o discurso que têm, hoje, aqueles que choram por elas. Foi preciso que as vítimas pensassem e vivessem de modo bem diferente, para dar matéria aos que choram em seu nome, e que pensam em seu nome, e que dão lições em seu nome. Foi sua força de vida que os empurravam, e não sua amargura; sua sobriedade, e não sua ambição; sua anorexia, e não seu enorme apetite, como diria Zola. Nós gostaríamos de ter feito um livro de vida, e não de contabilidade, de tribunal, mesmo do povo ou do pensamento puro. A questão de uma revolução nunca foi espontaneidade utópica ou organização de Estado. Quando se recusa o modelo do aparelho de Estado, ou da organização de partido que se modela sobre a conquista desse aparelho, não se cai, por isso, na alternativa grotesca: ou apelar para um estado de natureza, para uma dinâmica espontânea ou então tornar-se o pensador, por assim dizer, lúcido de uma revolução impossível, da qual se tira tanto prazer no fato de ela ser impossível. A questão sempre foi organizacional, de modo algum ideológica; é possível uma organização que não se modela sobre o aparelho de Estado, mesmo para prefigurar o Estado por vir? Então, uma máquina de guerra, com suas linhas de fuga? Opor a máquina de guerra ao aparelho de Estado: em qualquer agenciamento, mesmo musical, literário, seria preciso avaliar o grau de vizinhança com determinado pólo. Mas como uma máquina de guerra, em qualquer domínio, se tornaria moderna, e como ela conjuraria seus próprios perigos fascistas, frente aos perigos totalitários do Estado, seus próprios perigos de destruição frente à conservação do Estado? De certa maneira, é bem simples, se faz sozinho, e todos os dias. O erro seria dizer: há um Estado globalizante, mestre de seus planos e que armam suas armadilhas; e então, uma força de resistência que ou vai adotar a forma do Estado, admitindo a possibilidade de nos trair, ou então vai cair em lutas locais parciais ou espontâneas, admitindo a possibilidade de serem, a cada vez, abafadas e derrotadas. O Estado mais centralizado não é de modo algum mestre de seus planos; também ele é experimentador, faz injeções, não consegue prever o que quer que seja: os economistas de Estado se declaram incapazes de prever o aumento de uma massa monetária. A política americana é forçada a proceder por injeções empíricas, e não por programas apodíticos. Que jogo triste e trapaçeado jogam aqueles que falam de um Mestre supremamente maligno, para apresentar de si mesmos a imagem de pensadores rigorosos, incorruptíveis e "pessimistas"? É sobre diferentes linhas de agenciamentos complexos que os poderes conduzem suas experimentações, mas onde surgem também experimentadores de uma outra espécie, frustrando as previsões, traçando linhas de fuga ativas, procurando a conjugação dessas linhas, precipitando sua velocidade ou sua lentidão, criando pedaço por pedaço o plano de consistência, com uma máquina de guerra que mediria, a cada passo, os perigos que ela encontra.
O que caracteriza nossa situação está, a um só tempo, para além e aquém do Estado. Para-além dos Estados. Para-além dos Estados nacionais, o desenvolvimento do mercado mundial, a potência das sociedades multinacionais, o esboço de uma organização "planetária", a extensão do capitalismo para todo o corpo social, formam uma grande máquina abstrata que sobrecodifica os fluxos monetários, industriais, tecnológicos. Ao mesmo tempo, os meios de exploração, de controle e de vigilância tornam-se cada vez mais sutis e difusos, moleculares, de certa forma (os operários dos países ricos participam necessariamente da pilhagem do terceiro­mundo, os homens, à super-exploração das mulheres etc.). Mas a máquina abstrata, com suas disfunções, não é mais infalível do que os Estados nacionais que não conseguem regulá-las sobre seu próprio território e de um território a outro. O Estado não dispõe mais de meios políticos, institucionai.s ou mesmo financeiros que lhe permitiriam fazer frente aos contra-golpes sociais da máquina: é duvidoso que ele possa se apoiar eternamente sobre as velhas formas como a polícia, os exércitos, as burocracias, até mesmo sindicais, os equipamentos coletivos, as escolas, as famílias. Enormes deslizamentos de terreno acontecem aquém do Estado, conforme linha de declive ou de fuga que afetam principalmente:
1)   o esquadrinhamento dos territórios;
2) os mecanismos de assujeitamento econômico (novos caracteres do desemprego, da inflação...);
3) os enquadramentos regulamentares de base (crise da escola, dos sindicatos, do exército, das mulheres...);
4) a natureza das reivindicações que se tornam qualitativas tanto quanto quantitativas ("qualidade de vida" mais do que "nível de vida") – tudo isso constituindo o que se pode chamar de um direito ao desejo. Não é surpreendente que todo tipo de questões minoritárias, lingüísticas, étnicas, regionais, sexistas, juventistas, ressurja não apenas a título de arcaísmo, mas nas formas revolucionárias atuais que colocam novamente em questão, de maneira inteiramente imanente, tanto a economia global da máquina quanto os agenciamentos dos Estados nacionais. Ao invés de apostar sobre a eterna impossibilidade da revolução e sobre o retorno fascista de uma máquina de guerra em geral, por que não pensar que um novo tipo de revolução está se tornando possível, que todo tipo de máquinas mutantes, viventes, fazem guerras, se conjugam e traçam um plano de consistência que mina o plano de organização do Mundo e dos Estados?4 Pois, mais uma vez, nem o mundo e seus Estados são mestres de seu plano, nem os revolucionários estão condenados à deformação do seu, Tudo acontece em partes incertas, "frente a frente, de costas, ...". A questão do futuro da revolução é uma questão ruim, porque, enquanto for colocada, há pessoas que não se tornam revolucionárias, e porque é feita, precisamente, para impedir a questão do devir­revolucionário das pessoas, em todo nível, em cada lugar.
4. Sobre todos esses pontos, cf. Félix Guattari, "La grande illusion", in Le monde. 
buscado em:cooperação.sem.mando

Nenhum comentário:

Postar um comentário