domingo, 13 de novembro de 2011

DEVIR [devenir] - deleuze


"Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambian­tes. A pergunta 'o que você devém?' é particularmente es­túpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimi­lação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos." (D, 8)

* Devir é o conteúdo próprio do desejo (máquinas dese­jantes ou agenciamentos): desejar é passar por devires. Deleuze e Guattari enunciam isso no Anti-Edipo, mas só fazem disso um conceito específico a partir do Kafka. Aci­ma de tudo, devir não é uma generalidade, não há devir em geral: não se poderia reduzir esse conceito, instrumento de uma clínica fina da existência concreta e sempre singu­lar, à apreensão extática do mundo em seu universal es­coamento - maravilha filosoficamente oca. Em segundo lugar, devir é uma realidade: os devires, longe de se asse­melharem ao sonho ou ao imaginário, são a própria con­sistência do real (sobre este ponto, ver CRISTAL DE TEMPO). Convém, para compreendê-lo bem, considerar sua lógica: todo devir forma um "bloco", em outras palavras, o en­contro ou a relação de dois termos heterogêneos que se "desterritorializam" mutuamente. Não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitação, identificação), mas uma outra forma de viver e de sentir assombra ou se en­volve na nossa e a "faz fugir". A relação mobiliza, portan­to, quatro termos e não dois, divididos em séries hetero­gêneas entrelaçadas: x envolvendo y torna-se x', ao passo que y tomado nessa relação com x torna-se y'. Deleuze e Guattari insistem constantemente na recíproca do proces­so e em sua assimetria: x não "se torna" y (por exemplo, animal) sem que y, por sua vez, venha a ser outra coisa (por exemplo, escrita ou música). Misturam-se aqui duas coisas que não devem ser confundidas: a) (caso geral) o termo encontrado é arrastado num devir-expressivo, cor­relato das intensidades novas (conteúdo) pelas quais pas­sa o termo que encontra, em conformidade com as duas faces de todo agenciamento (cf. o tema "só se devém ani­mal molecular", MP, 337); b) (caso restrito) a possibilida­de de que o termo encontrado seja por sua vez aquele que encontra, como nos casos de co-evolução, de maneira que um duplo devir aconteça de cada lado (cf. o exemplo da vespa e da orquídea, MP,17). O devir e, em suma, um dos pólos do agenciamento, aquele em que conteúdo e expres­são tendem ao indiscernível na composição de uma "má­quina abstrata" (daí a possibilidade de considerar não­metafóricas formulações como: "escrever como um rato que agoniza", MP, 293).

** Kafka e Mil platôs apresentam uma hierarquia dos devires. Essa hierarquia, não menos que a lista por ela or­ganizada, só pode ser empírica, procedendo de uma ava­liação imanente: animalidade, infância, feminilidade etc. não têm privilégio algum a priori, mas a análise constata que o desejo tende a investi-Ias mais que qualquer outro domínio. Não bastaria observar que elas são alteridades em relação ao modelo de identificação majoritária (homem­adulto-macho etc.), pois não se propõem absolutamente como modelos alternativos, como formas ou códigos de substituição. Animalidade, infância, feminilidade valem por seu coeficiente de alteridade ou de desterritorialização absoluta, abrindo a um para-além da forma que não e o caos mas uma consistência dita "molecular": então a percepção capta variações intensivas (composições de veloci­dade entre elementos informais) e não um recorte de for­mas (conjuntos "molares"), ao passo que a afectividade se emancipa de seus bordões e impasses habituais (ver LINHA DE FUGA). Tomemos o exemplo do animal: como tal, ele não e esse indivíduo domesticado e tornado familiar que pode ser acrescentado aos membros da família; inseparável de uma matilha mesmo virtual (um lobo, uma aranha quais­quer), ele só vale pelas intensidades, pelas singularidades e pelos dinamismos que apresenta. A relação imediata que temos com ele não e a relação com uma pessoa, com suas coordenadas identifica tórias e seus papéis; ela suspende o recorte dicotomico dos possíveis, o reconhecimento de formas e de funções. Todavia, a própria possibilidade de travar uma relação familiar com o animal, ou de lhe atri­buir atributos mitológicos, indica um limite da relação com o animal do ponto de vista da desterritorialização (Kplm, 66-7; MP, 294). Entre os tipos de devires, o critério de sele­ção não pode ser senão um fim imanente: em que medida o devir, em cada caso, se quer a si mesmo? Devires-crian­ça e devires-mulher parecem assim levar a mais longe do que os devires-animais, pois tendem para um terceiro grau onde o termo devir não e nem mesmo atribuível, para uma "assignificância" que não se presta mais ao menor reco­nhecimento ou à menor interpretação, e onde as pergun­tas "o que se passa?" "como vai isso?" assumem uma as­cendência definitiva sobre "o que isso que dizer?": não a renúncia ao sentido, mas, ao contrário, sua produtivida­de, numa recusa da confusão sentido-significação e da dis­tribuição sedentária das propriedades. Esse terceiro grau, embora não haja aí nem progressão dialética nem série fe­chada, chama-se "devir-intenso", "devir-molecular", "devir-­imperceptível", "devir-todo-mundo" (cf. Kplm, cap. 2 e 4; MP, platô 10).

d'O VOCABULÁRIO DE DELEUZE, organizado por François Zourabichvili (Traduçao André Telles - Rio de Janeiro 2004).

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