domingo, 13 de novembro de 2011

LINHA DE FUGA (E MENOR-MAIOR [ligne de filhe (et mineur-majeur)] - deleuze

" A linha de fuga é uma desterritorial ização. Os franceses não sabem bem do que se trata. Evidentemente, eles fogem como todo mundo, mas acham que fugir é sair do mundo, mística ou arte, ou então que é algo covarde, porque se escapa aos compromissos e às responsabilidades. Fugir não é absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia." (D, 47)


* Esse conceito define a orientação prática da filosofia de Deleuze. Observa-se em primeiro lugar uma dupla igual­dade: linha = fuga, fugir = fazer fugir. O que define uma situação é uma certa distribuição dos possíveis, o recorte espaço-temporal da existência (papéis, funções, atividades, desejos, gostos, tipos de alegrias e dores etc.). Não se trata tanto de ritual - de repetição morna, de alternância dema­siado regulada, de exigüidade excessiva do campo de op­ções -, mas da própria forma, dicotômica, da possibilidade: ou isso ou aquilo, disjunções exclusivas de todas as ordens (masculino-feminino, adulto-criança, humano-animal, inte­lectual-manual, trabalho-lazer, branco-preto, heterossexual­homossexual etc.) que estriam previamente a percepção, a afectividade, o pensamento, encerrando a experiência em formas totalmente prontas, inclusive de recusa e de' luta.
Existe opressão em virtude desse estriamento, como se vê nesses pares de opostos que, todos, englobam uma hie­rarquia: cada disjunção é no fundo a de um maior e um me nor. Se acrescentarmos que o esquadrinhamento dicotômico interrompe o desejo enquanto processo ou incessante auto­produção, pode-se evidentemente se perguntar se é o dese­jo que se refugia nos estados menores uma vez estabelecida a dominação, ou se a minorização não afeta antes as regiões de existência onde o desejo se furta a qualquer atribuição, a qualquer segmentação. A segunda opção equivaleria a do­tar o desejo de uma qualidade intrinsecamente feminina, infantil etc. Na realidade, se os devires passam por uma relação privilegiada com a feminilidade, com a infância etc., é porque essas relações fazem fugir uma situação constituí­da de dicotomias que se organizam a partir de um estado de maioridade (qualitativa) definido pelo macho adulto. Daí o caráter factível de uma emancipação que consistiria na afirmação de uma identidade de mulher, uma vez que esta não teria outro conteúdo senão os caracteres oriundos da distribuição dos papéis, das atitudes etc. instituída pela re­lação de dominação. Desse ponto de vista, mesmo "uma mulher tem que devir-mulher", isto é, reencontrar o ponto onde sua auto-afirmação, longe de ser a de uma identidade inevitavelmente definida por referência ao homem, é essa "feminilidade" intangível e sem essência que não se afirma sem comprometer a ordem estabelecida das afecções e dos costumes, uma vez que essa ordem implica sua repressão. E eis também por que o devir-mulher diz respeito tanto aos homens quanto às mulheres: estas últimas não cultivam a linha de fuga senão quando são na situação dada (e não na identidade que esta lhes impõe) sem fazer fugir o conjunto da situação e, assim, "contaminar os homens, arrebatá-los nesse devir" (MP, 337-40, 357 e 587s).
Para Deleuze e Guattari, o problema então está menos numa mudança de situação ou na abolição de qualquer si­tuação do que na vacilação, no susto, na desorganização de uma situação qualquer. O que não significa que todas as situações sejam equivalentes; mas seu valor respectivo deve­se ao grau de desorganização que elas suportam sem ex­plodir, não à qualidade intrínseca da ordem que atestam. Em todo caso, expressa nesses termos, a prática deleuzo-guattariana cairia na armadilha de outra dicotomia infaman­te: ordem/desordem. Ora, a desordem bem compreendida não significa o vazio ou o caos, mas antes um "corte" no caos, seu enfrentamento mais que sua negação em nome de presumidas formas naturais (ver PLANO DE IMANÊNCIA). Esses vetores de desorganização ou de "desterritorialização" são precisamente designados como linhas de fuga. Compreen­demos agora a dupla igualdade que constitui essa expres­são complexa. Fugir é entendido nos dois sentidos da pala­vra: perder sua estanquidade ou sua clausura; esquivar, escapar. Se fugir é fazer fugir, é porque a fuga não consiste em sair da situação para ir embora, mudar de vida, evadir­se pelo sonho ou ainda transformar a situação (este último caso é mais complexo, pois fazer a situação fugir implica obrigatoriamente uma redistribuição dos possíveis que de­semboca - salvo repressão obtusa - numa transformação ao menos parcial, perfeitamente improgramável, ligada à im­previsível criação de novos espaços-tempos, de agenciamen­tos institucionais inéditos; em todo caso, o problema está na fuga, no percurso de um processo desejante, não na trans­formação cujo resultado só valerá, por sua vez, por suas linhas de fuga, e assim por diante). Portanto, trata-se de fato de uma saída, mas esta é paradoxal. Deleuze analisa casos de toda natureza: família, sociedade, instituições; limitemo-nos ao caso da filosofia, que também tem sua si­tuação, não que tenha mais importância que os outros, mas porque nos instrui comparativamente sobre a démarche de­leuziana. "Sair da filosofia, mas pela filosofia" (Abécédaire, C como Cultura): tudo se passa como se a filosofia englo­basse seu próprio lado de fora, como se seu verdadeiro fora não estivesse fora de si mesma (sair da filosofia tornando­se sociólogo, antropólogo, psicanalista ou militante - o que deixa intacta a situação para pular para outras situações julgadas intrinsecamente melhores), mas devesse ser des­coberto em seu interior. Teríamos aqui a base de uma con­frontação possível com Derrida: ali onde este último define a situação pelo "fechamento da metafísica" e, longe de so­nhar com outro logos distinto do logos, todo fala e presença, propõe-se a "desconstruí-lo" a partir do excluído que o mi­nava desde sempre (a escritura e seus efeitos de "différance"), Deleuze procede por um método que poderia ser conside­rado de perversão, que consiste ora em discernir e cultivar uma linha de pensadores "que pareciam fazer parte da his­tória da filosofia, mas que escapavam dela a partir de um a lado ou de todas as partes: Lucrécio, Espinosa, Hume, Nietzsche, Bergson" (D, 21), ora por desviar restos de teo­rias de toda natureza para utilizá-los para outros fins (DR, LS, AŒ, MP, passim), ora ainda por relacionar um conceito às suas verdadeiras condições, isto é, às forças e aos dina­mismos intuitivos que o subtendem (ID, 137s - método de "dramatização"), ora enfim, mais que criticar de frente um tema ou uma noção, por abordá-la pelo viés de uma "con­cepção completamente distorcida" (o contrato jurídico a partir de Sacher-Masoch, P, 229 e PSM, 80s). Poder-se-ia quase decifrar a oposição dos dois procedimentos no texto "Pour en finir avec le jugement" (CC, cap. XV): um, levado por um sentido da análise interminável como única justiça possível; o outro, operando por uma série de "processos finitos" (pois é justamente dessa forma que Deleuze se ser­ve da história da filosofia - exemplos de processos finitos: suas interpretações do Cogito kantiano, da contemporanei­dade paradoxal do passado e do presente em Bergson etc como várias peças definitivas cujos efeitos de sentido não cessam, porém, de se renovar em função dos agenciamen­tos nas quais são tomadas).
Sempre fazer fugir, mais do que criticar (Kplm, 85)... Mas por que falar de perversão? Não pensamos apenas na defi­nição usual - desvio quanto ao objetivo ou quanto ao objeto - mas num texto sobre a atitude de que Freud fizera o traço distintivo da perversão: "Poderia parecer que uma denega­ção em geral é muito mais superficial que uma negação ou mesmo uma destruição parcial. Mas não é nada disso; trata-se de uma operação completamente diferente. Talvez seja preciso compreender a denegação como o ponto de partida de uma operação que consiste não em negar nem em des­truir, mas bem mais em contestar o caráter bem-fundado do que é, em afectar o que é de um tipo de suspensão, de neutralização próprias para nos abrir, para além do dado, um novo horizonte não dado" (PSM, 28). Pois se não se tra­ta de fugir para fora de, mas de fazer fugir, há decerto algo de que se foge e que se confunde com o fazer fugir: o reino absoluto do sim e do não, da alternativa como lei do possí­vel, da escolha como pseudo-liberdade do desejo sujeitado aos recortes preestabelecidos (LS, 372; CC, cap. X, não ape­nas subversão da alternativa por Bartleby, 89-98, mas a "per­versão metafísica" do capitão Acab, o homem que "foge de toda a parte", 99-102; enfim E, passim). Ao contrário da dia­lética que pretende superar a alternativa por uma reconci­liação sintética, admitindo e conservando com isso sua pre­missa (não se alcança o devir combinando o ser e o nada), a linha de fuga está colocada sob o signo do indiscernível e da disjunção inclusa. Perverso enfim, no sentido quase etimológico, é homem das superfícies ou do plano de ima­nência (LS, 158). Pois é efetivamente na diagonal que a li­nha é traçada - outro aspecto da dupla igualdade. É por um livre uso do órgão que ele é desterriorializado, que cessa­mos de vivê-lo como originariamente destinado à função a ele atribuída pelo organismo, para agenciá-lo diferentemen­te sobre o "corpo sem órgãos" ou sobre o plano de imanên­cia, em função de encontros com outros "objetos parciais" eles próprios retirados ou desviados. Isso significa que a linha de fuga é sempre transversal, que é quando ligadas transversalmente que as coisas perdem sua fisionomia, dei­xando de ser pré-identificadas por esquemas prontos, e adquirem a consistência de uma vida ou de uma obra, isto é, de uma "unidade não orgânica" (OS, 193-203). A transversal é como o corte da univocidade nas formas constituí­das, o plano de experiência pura sobre o qual tudo se co­munica com tudo (e se compõe ou não), para além das bar­reiras de forma, de função ou de espécie.*[1]

** Com isso, nossas duas igualdades são superadas em di­reção a uma terceira: traçar uma linha de fuga = pensar em termos de linhas. Não que, no plano de imanência, haja coi­sa diversa dessas linhas de fuga onde a "vida orgânica" é construída, transversalmente em relação às formas consti­tuídas. Mas traçar uma linha sobre um plano fornece um outro ponto de vista sobre o conjunto de uma situação, um critério imanente que permite analisar os agenciamentos seguindo seus dois pólos, desterritorialização e estratifica­ção (instituições). Imanente com efeito, uma vez que, em conformidade com o primado do plano de imanência do ponto de vista crítico (condições da experiência), toda for­ma ou organização deve se constituir a partir dele. Não há portanto um mundo das formas fixas e um mundo do devir, mas diferentes estados da linha, diferentes tipos de linhas, cuja intricação constitui o mapa remanejável de uma vida. Esse tema geográfico do mapa opõe-se ao procedimento ar­queológico da psicanálise (cf. MP, 20, 248; P, 50, CC, cap. IX).
O que é, no fundo, uma linha? É um signo que engloba o tempo, o elemento de base de uma semiótica da duração, de uma clínica da existência (Deleuze só chega a esse con ceito a partir de Diálogos, 141-69; Proust e os signos, 35, que descrevia o "mundo dos signos" desenvolvendo-se "segun­do linhas de tempo", buscando a síntese dos dois termos mas ainda os mantendo separados). Um agenciamento ou uma situação qualquer é portanto analisado mediante uma diferenciação do conceito de linha, oposto ao "sistema de pontos e posições" que caracteriza os pensamentos de tipo estruturalista (D, 48). Três tipos se distinguem, que defi­nem inúmeras relações com o espaço e o tempo: além das linhas de fuga, que remetem a Aion e ao espaço liso, li­nhas "de segmentaridade dura" (ciclos binários e espaço estriado) e, entre esses dois pólos, um tipo de linha de es­tatuto ambíguo, dita "de segmentaridade flexível" (retira­das fragmentárias, limiares de redistribuição afetiva) (MP, 238-52, 271-83).
Por que Deleuze afirma o primado das linhas de fuga (D, 152,163; MP, 250), já que estas parecem tão frágeis, tão incertas, ausentes às vezes, ou então esgotadas, ao passo que uma situação parece antes se definir por suas regulari­dades, seus movimentos periódicos de que se trata precisa­mente de sair? A ordem de fato não deve mascarar o direi­to: se é verdade que a transversal é primordial na experiên­cia, é sobre elas que se constroem as formas e os sujeitos, que devem ser constituídos no dado. Daí, inversamente, as linhas de fuga que os atravessam originariamente de den­tro, as múltiplas exterioridades internas que os trabalham ao mesmo tempo em que os constituem, e que justificam um "pessimismo alegre", uma fé imanente, a espera serena de melhores dias, embora as coisas necessariamente cami­nhem mal. Pois se nossas formas são construídas sobre desterritorializações primeiras, e se sofremos com sua du­reza, nem por isso precisamos menos delas parã reproduzir nossa existência. "Desfazer o organismo nunca foi se ma­tar, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agen­ciamento... É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se reforme a cada aurora" (MP,198) - uma vez que aí também o problema não é fugir (do organismo), mas fazer fugir.


[1] * É Félix Guattari quem forja um conceito de transversal idade, antes de sua colaboração com Deleuze. Cf. Psychanalyse et transversalité, que as edições La Découverte acabam de reeditar. Os dois pensadores não cessaram de trocar noções que cada um utilizava e compreendia à sua maneira, retrabalhando-as em conjunto no âmbito de um traba­lho comum.

d'O VOCABULÁRIO DE DELEUZE, organizado por François Zourabichvili (Traduçao André Telles - Rio de Janeiro 2004).

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