quarta-feira, 9 de novembro de 2011

hypomnemata 138 - loucuras e transtornos


 Boletim eletrônico mensal
 do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária 
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 138, outubro de 2011
loucuras e transtornos
Em 1º outubro de 1970, próximo ao rio Paraná, em Rubinéia-São Paulo, o profeta e benzedor Aparecido Galdino orava com seu grupo de 12 homens e duas mulheres, esperando o Exército Nacional se juntar a eles contra a construção da barragem de Ilha Solteira que inundaria o município. O Exército veio, mas amarrou e espancou os “revoltosos”, desfilou com os detidos pela rua principal da cidadezinha para dar um exemplo, antes de levá-los para a prisão. A barragem e a hidrelétrica eram um dos projetos de ponta da ditadura civil-militar. Galdino foi enquadrado na lei de Segurança Nacional e encaminhado ao Manicômio Judiciário do Juqueri (SP), onde ficou até finalmente ser solto em 1979.
 “Pelo exposto, podemos verificar que o examinando apresenta distúrbios do conteúdo do pensamento - ideias delirantes de cunho místico, grandeza. [...] Podemos concluir que Galdino apresenta um quadro esquizofrênico-paranóide, necessitando de tratamento, devendo pois permanecer manicomiado, para sua própria segurança e da sociedade”. – laudo de 1972, sobre Aparecido Galdino.
 “Do exposto, somos de parecer que o examinado continua doente, todavia se beneficiou com o tratamento instituído. Porém, sua periculosidade se encontra a nível superior a de um doente mental, portanto, devendo permanecer frenocomiado - para segurança da coletividade”.- laudo de 1974, sobre Aparecido Galdino . 
Loucura: palavras exacerbadas,
ditas aquém ou além, mas nunca no ponto modelar;
gestos e ações para além ou aquém
  da formulação de uma razoável verdade.

 Frase encontrada em um prontuário do Manicômio Judiciário do Juqueri (SP), sobre o comportamento de um interno durante um “exame psíquico”: “Tem íntima atenção ao diálogo, mas repentinamente, tem o olhar lateralizado.”
Um olhar de fuga. Reflexo muscular de buscar uma fissura na parede por onde correr para nunca mais. A loucura autoriza o louco que a incorpora.
Olhar de um louco. Loucura como um nome para um impulso em direção à liberdade? Ou impulso para um simples outro lado do que insiste em ser verdade em uma sala onde transcorre um “exame psíquico”?
Ou ambos?
Os poetas Waly Salomão e Torquato Neto inventaram, em 1972, em plena barra pesada da ditadura civil-militar no Brasil, a revista Navilouca. Tempo da loucura solta! Loucura como reverso do internamento e da obsessão militar pela sua ordem para o progresso burguês.
A publicação foi um dos últimos projetos de Waly antes de ser encarcerado e torturado no Quarto Distrito de polícia do centro de São Paulo.
Contra todas as adversidades, Sailormoon, o marujeiro da lua, apelido de Waly, reuniu forças para finalmente lançar a revista em 1974. Torquato Neto já havia dado cabo da própria vida.
 Torquato Neto, poeta tropicalista, autor de canções como “Mamãe Coragem”, “Geleia Geral”, “Pra dizer Adeus”, ator de filmes em super-8 como Nosferato no Brasil, esteve inúmeras vezes internado em hospitais psiquiátricos. Houve um tempo em que ele acreditou na psiquiatria!
No rescaldo de suas temporadas internado em Teresina e no Rio de Janeiro, explicitou sua ojeriza à psiquiatria. Na coluna “Geleia Geral”, no jornal carioca Última Hora, escreveu para além de música, teatro e cinema, sobre Antonin Artaud e David Cooper.
Novembro de 1971: faz um ano que me dizia no hospício: isso aqui não pode ser um refúgio, e foi assim que eu saí por aí, foi por isso. Abaixo os meus refúgios, chega... Abaixo a psiquiatria dos salões e dos hospícios. A psiquiatria é repressiva...
Em outra edição do jornal soltou sua verve para contar certas histórias ubíquas como a que um médico pede a um poeta para que leia seus poemas.
Esse outro grande amigo meu levou os poemas para o médico julgar. O médico achou a linguagem ‘totalmente fragmentada’ e, para que ele voltasse a escrever como muito antigamente se fazia, mandou interná-lo e impregnou sua célula nervosa.
Depois de assistir ao ocaso de publicações como A flor do Mal, editada por sua mulher Ana, o desaparecimento de amigos próximos, o exílio de tantos outros, as dificuldades de realização das invenções diante da censura, Torquato Neto decidiu também encerrar sua coluna no jornal. Seguiu escrevendo, como resistência, para não dar de comer aos urubus.
Internado, novamente, no Hospital Engenho de Dentro, em 1971, escreveu: Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba.
Torquato Neto deu as costas aos que Augusto de Campos chamou de lite-ratos e à sua venda obcecada por um lugar ao sol. Deu as costas ao lugar, ao sol e aospsicanalhas de plantão. Suicídio!
 Trinta e seis anos após sua morte, próximo ao Engenho de Dentro, foi inaugurado um CAPS em homenagem a Torquato Neto, um tributo espúrio ofertado por amancebados da ordem.
Diante das maleabilidades atuais da Psiquiatria que fazem a medicina mental funcionar para além dos asilos é preciso retomar as palavras do poeta, resistindo com a vida, essa matéria fina.
— Onde estão as obras? Onde estão as obras?
— As obras, malandro, são a própria vida (que você sempre esquece de viver).
A loucura como doença mental cede a vez à loucura governada pela saúde mental por meio de programas governamentais e colaboração intensiva dos cidadãos.
(Afinal, quem não quer ser normal, não é mesmo?)
Loucura não mais como fase, estágio, confinamento da desrazão, imediato deslocamento das regras, inscrição corporal de ideias-fixas e repressões.
A loucura agora é parte da gestão, dos negócios, e tende a desaparecer... gradativamente, perdida em arquivos da memória histórica das instituições asilares e das mortes escancaradas de insuportáveis. A loucura a ser apagada do indivíduo anônimo que se metamorfoseia em personagem histórico para escapar do anonimato monstruoso das sociedades hierarquizadas e que se transforma em número de prontuário impessoal nos manicômios. A loucura imputada a subversivos que justifica a estupidez violenta do poder de Estado!
Novos tempos: o do indivíduo transtornado, todos nós.
A loucura como doença mental cede a vez aos transtornos governados.
Todos nós passíveis de medicações, atendimentos nos CAPS e no limite internados em manicômios, que permanecem e são defendidos por agentes da ordem, dentre os quais se inscreve o poeta de carreira.
Não mais loucura como doença mental de alguns sob o saber da internação para atestar uma possível cura. Agora, estamos todos arquivados em saúde mental como transtornados, passíveis às novas regras de normalização.
 Transtorno = loucura de normais.
loucura... ruído de linguagens. corpo recoberto de palavras, significantes e significados. gestos a serem traduzidos, classificados, identificados, decifrados.
sociedade de controle... as palavras navegam em fluxos velozes, curtas, monossilábicas, rápidas, instantâneas... palavras e imagens na mesma sintaxe.
todos falam. todos com direito à voz. livros e blogs e comentários sobre suas vidas e as vidas alheias. explicações, justificativas, etc. é o que se pede, o que se exige.
gramáticas completas, variadas, múltiplas, pipocadas. definindo os vários comos e porquês e seres... diversosflexíveis gramáticas na mesma sintaxe.
o corpo solto, liberado de palavras, intraduzível é insuportável... loucura perigosa.
loucura solta... corpo que escapa às palavras, à gramática. indecifrávelinsuportável.
Os mecanismos de controle rivalizam com os mais duros confinamentos.
Entre a Primavera dos povos (1848) e a Comuna de Paris (1871), construiu-se uma verdade formalizada na antropologia criminal de Cesare Lombroso: o anarquista é o monstro que reúne em um só corpo crime e loucura. Propenso à destruição e redimensionamento do povo sedicioso e antropofágico, ele expressa em atos e ideias essa anormalidade: nega a revolução como estágio evolutivo, o Estado como realização sublime da razão que organiza a sociedade e afirma suas propostas como revolta,insurreição e terrorismo.
A anarquia é a realização de práticas de liberdade que corroem o regime da propriedade, seja ela privada, estatal, mista ou imaterial; pequena ou grande. O anarquista participa do jogo da razão para solapar a própria razão. Não romantiza a loucura, nem a trancafia; não saúda a irracionalidade: esquiva-se e combate os seus efeitos como jogos de poderes e práticas de governos das condutas.
Anarquistas são loucos, birutas, malucos, libertários! Perturbam a ordem de transtornados ávidos de uma nova profilaxia social.

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