sábado, 30 de abril de 2011

para ernesto sabato

o escritor argentino ernesto sabato é um dos que alumiam meus mais sérios pensamentos (se é que se pode ter pensamentos sérios!). aos seus livros  está reservado o lugar mais precioso em minha biblioteca e em minhas leituras (é no lugar mais precioso que aqueço os autores que me alimentam a vida e ele é um deles). já tem algum tempo, eu passava por um período de descrença absoluta nas coisas do mundo e, num dia de garoa fina e de frio intenso, deparei-me com seu "A Resistência" (sobre o qual já postei alguma coisa aqui), no qual sabato (em cinco cartas ao leitor, mais o epílogo) faz "um balanço sombrio de nossa época". esse livro me reativou potências adormecidas pelo peso demasiado do amortecimento.
hoje sabato se despede do mundo e nos deixa tudo o que ele foi. e é do epílogo de "a resistência" que retiro suas próprias palavras para homenageá-lo.
"Como a luz da aurora que se pressente na escuridão, a morte já está perto de mim. É uma presença invisível.
Algumas vezes na vida senti que corria perigo e podia morrer. E, no entanto, aquele sentimento da morte em nada se parece com este que vivo agora. Então ela teria sido parte das minhas lutas ou de alguma outra circunstância: um fracasso dos meus projetos. Eu poderia ter morrido inesperadamente, e não teria sido como agora, quando a morte vai tomando conta de mim aos poucos, quando sou eu quem se inclina a ela.
Sua chegada não será uma grande tragédia como teria sido antes, pois a morte não me arrebatará a vida: já faz tempo que estou esperando por ela.
Há dias em que me invade a tristeza de morrer e, como se fosse possível enganar a morte, corro a me entrincheirar em meu estúdio e me ponho a pintar com frenesi, crente de que ela não me arrebatará a vida enquanto houver uma obra inacabada entre minhas mãos. Como se a morte pudesse entender as minhas razões, e eu bancar a Penélope para detê-la.
Quando as pessoas me param na rua pra me dar um beijo, para me abraçar, ou quando compareço a algum evento, como a Feira do Livro, onde uma multidão espera por mim durante horas e me cobre de afeto, uma invencível sensação de despedida nubla minha alma.
Cada vez dou menos importância aos exercícios racionais, como se não tivessem muito a me dar. Como bem disse Kierkegaard, 'a fé começa justamente onde termina a razão'. Há momentos em que navego mar adentro sem perguntas, sem reparar na chuva nem no frio. E outros em que me agarro a velhas sabedorias esotéricas, encontrando calor em suas antigas páginas como nas pessoas que me rodeiam e cuidam de mim. Sinto vergonha ao pensar nos velhos que estão sozinhos, abandonados ruminando seu triste inventário de perdas.
Antigamente a morte era para mim a prova da crueldade da existência. O fato que diminuía e até ridicularizava minhas prometéicas lutas cotidianas. O atroz. Então eu costumava dizer que, para me levarem até a morte, precisariam do auxílio da força pública. Era assim que eu exprimia minha decisão de lutar até o fim, de não me entregar jamais.
Mas agora que a morte se avizinha, sua proximidade me irradiou uma compreensão que nunca tive; neste entardecer de verão, a história do vivido está à minha frente como que posta em minhas mãos, e às vezes um tempo que eu julgava desperdiçado se mostra com mais luz que outro, que eu tinha por sublime.
Esqueci grande trechos da vida e, em compensação, ainda palpitam em minhas mãos os encontros, os momentos  de perigo e o nome daqueles que me resgataram das depressões e amarguras. Também o de vocês que acreditam em mim, que leram meus livros e me ajudarão a morrer" (em: Epílogo, As Resistência, 2008, p. 104-5).
E agora a morte lhe chegou. É tempo de fazê-lo viver.

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