Após participar do encontro da Associação das Mulheres Brasileiras, Lílian Celiberti dispara: “apoiamos a esquerda no poder, mas nossos sonhos vão bem além”. Por Aline Baima, Adital
Em entrevista concedida durante o Encontro Nacional da Articulação de Mulheres Brasileiras, Lílian Celiberti, da articulação feminista Marcosur, fala sobre as lutas feministas na América Latina, a crise gerada por esse modelo de desenvolvimento predatório e os caminhos do feminismo na atualidade.
Gostaria que você falasse um pouco sobre a atual conjuntura da luta feminista na América Latina.
É um momento desafiante e contraditório. As feministas, os movimentos formam parte de um campo mais amplo que coloca a luta popular como pauta da agenda pública. E hoje temos governos que têm como premissa o combate à desigualdade. Governos de esquerda que são parte do campo popular, mas que nem sempre assumem as questões que são defendidas pelo movimento feminista ou que, às vezes, são resistentes com mudanças que tocam a fundo questões como a divisão sexual do trabalho, o etnocentrismo, a heteronormatividade. Vivemos em Estados-Nações que surgiram do colonialismo, que foram formados com um conceito de democracia que deixou de fora uma população imensa, colocada numa posição de cidadãos e cidadãs de segunda [categoria]. Para nós [feministas], é um desafio muito grande, porque nosso pensamento feminista tem todas essas dimensões, então estamos sempre impulsionando por mais democratização, para que se toque os eixos do capitalismo, do patriarcado e do racismo. Por isso, a situação é paradoxal. Estamos a favor, mas fazemos a crítica, queremos mais. Essa vontade de querer mais é substancial num mundo que cada vez mais se vive só o presente. Uma das maiores batalhas culturais que os movimentos sociais enfrentam é essa cultura suicida. Do mundo do espetáculo televisionado. No qual o drama, a dor, o tsunami etc. são tratados como espetáculos. Espetáculos que escondem as raízes que os originam. Quando tocamos mais no fundo, não estamos sendo desconformes, estamos convocando as pessoas a viverem outra vida e a construírem parâmetros de desenvolvimento diferentes. Podemos convidar (as pessoas) a sonharem, a pensarem que a utopia é também possível para nós.
Durante a plenária sobre as lutas da AMB, durante o Encontro Nacional da Articulação de Mulheres Brasileiras, você falou sobre a crise civilizatória, ambiental e alimentícia na qual vivemos. Quais são as raízes dessa crise e o que fazermos diante dela?
Hoje precisamos falar que não estamos somente na crise do petróleo, numa crise climática, financeira… Todas essas crises tocam um ponto central de como o capitalismo, como sistema, gera, na incessante busca pela riqueza, um choque com os limites da natureza. E a natureza, de alguma forma, está estabelecendo os limites das formas de produção que vulnerabilizam o habitat, o equilíbrio entre o que se pode retirar da natureza e o que ela pode produzir. Temos uma crise da água, uma apropriação privada dos recursos aquáticos. Podemos pensar que o que acontece, os terremotos, os maremotos são todos problemas naturais. Ou podemos pensar que existe uma aceleração dessas emergências pela utilização predatória dos recursos naturais pelo capitalismo. Quando falamos de crise civilizatória, é que essa mercantilização dos recursos naturais supõe um modelo de civilização predatório, que pensa a natureza como um recurso do qual eu posso me apropriar, vender, com o qual eu posso gerar lucros. Em contraponto a esse modelo, há uma forma de pensar que a água, a terra são bens comuns da civilização e que não podem ser mercantilizados. Isso é parte de uma agenda comum que surge na América Latina, que afirma que é preciso ter cuidado que há uma crise civilizatória. Estamos transformando os países em grandes desertos verdes, substituindo a produção diversificada de alimentos pela plantação de soja para vender para china ou de ração de animais para os Estados Unidos. Há uma lógica de insustentabilidade no modo de produção capitalista.
E diante disso, quais as alternativas?
Temos que mudar nossa forma de fazer política. A luta pelo poder no sentido personalista, de alguns, é contraproducente para sustentar a vida humana. E hoje temos juventudes que sentem um vazio frente à política, pois não se sentem convidados/as a opinar, discutir. O caminho é simultaneamente ético e político. O diálogo é o caminho ético, pois ele pressupõe o reconhecimento do outro. A política tem que ser o caminho para que mais pessoas assumam a construção de prioridades comuns.
Você também falou a respeito de uma ética do cuidado…
Quando falo de uma ética do cuidado, não se trata do cuidado no sentido da divisão sexual do trabalho, mas de uma ética que todos os seres humanos precisam ter uns com os outros e que essa não é uma tarefa das mulheres, é de todos. É preciso colocar o cuidado como parte da identidade masculina. O cuidado como dimensão humana, que coloca a vulnerabilidade de todos como seres humanos e que precisam uns dos outros. É preciso desenvolver isso como fator cultural, o cuidado como responsabilidade humana. Pensar na cultura da solidariedade como parte da sociedade.
Qual a importância de espaços como este, de articulação dos movimentos tanto nacional quanto internacionalmente?
São fundamentais as articulações. Tudo que falamos pressupõe lutas, pressupõe fortalecer nossa organização, mas também fortalecer nossas múltiplas rebeldias. Essas articulações são espaços de construção política. Também são momentos de fortalecimento das subjetividades, das vontades, das energias. Necessitamos revitalizar nossas energias, necessitamos nos sentir parte neste mundo global que é excludente.
Quais são os caminhos apontados para o feminismo?
Não creio que há um caminho só. Nossas lutas cotidianas dependem dos espaços. Onde vivo, tenho uma luta no meu espaço privado, no espaço comunitário, no laboral e no político. Se eu transformo meu cotidiano, se sou capaz de enfrentar a discriminação quando vejo, se sou capaz de trazer as questões que pautamos, estou construindo uma subversão da cultura tradicional. Em cada momento, temos as nossas prioridades. Qual é a nossa prioridade hoje? A luta pela legalização do aborto, que significa a luta pela autonomia do corpo das mulheres e pelo direito de decidir, a luta contra o feminicídio, contra a violência sexual. Lutas não nos faltam. Os caminhos são prioridades que, segundo o lugar onde estamos, vamos organizando.
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