sexta-feira, 1 de abril de 2011

divulgação: DOSSIER DELEUZE - ALGUNS DOS MOTIVOS DELEUZIANOS

Por Carlos Henrique de Escobar*
Se em 1968 Deleuze pôde sintetizar seu esforço filosófico nos propósitos de pensar e sublimar uma «diferença livre», isto é, «contanto que ela não se deixe subordinar à identidade» ou uma «repetição complexa», na medida também em que esta última não se deixa reduzir a uma repetição mecânica ou material,(1) é porque se une hoje ao esgotamento do platonismo, à quase asfixia da vida que um «nada de vontade» testemunha, já em seu limiar (Nietzsche). E Deleuze nos lembra então da fartura destes sinais de falência e exaustão do platonismo e do hegelianismo, um e outro, espinhas dorsais da história do Ocidente: «Em toda parte a diferença aparece afetada de uma divergência e de um descentramento que lhe são essenciais, e a repetição, de um deslocamento e de um deslizamento inseparáveis» (ib.). Ora, o pensamento escapa fundamentalmente à «história social-» e se o tomarmos em sua força e em sua diversidade - na pulsação livre do eterno retorno - ele ocorre sobretudo em outra cena que nos registros deste ou daquele momento da «história da filosofia». Ora, não nos equivoquemos com a palavra pensamento. Com pensamento nos referimos à matéria não totalizável da vida que existe como intensidades e diferenças e que cabe resgatar contra as ficções da estrutura e da lei. Isso tudo é tanto mais significativo, visto que não se trata da substituição de uma filosofia por outra, ou de um conhecimento por outro, mais ágil e mais amplo; trata-se, isto sim, com Nietzsche - como já o fora com os pré-socráticos - de fundar o pensamento face à sua obstrução ou até mesmo exclusão. Logo não se trata mais de uma crise das ciências ou dos valores sociais, um e outro dificuldades mais do que «humanas» (Nietzsche) a serem melhor refletidas e geridas. Não se trata muito menos de viradas ou mudanças que as propostas aparentemente críticoradicais de Platão frente aos pré-socráticos, Aristóteles frente a Platão, Descartes frente à escolás-tica, ou as Críticas de Kant, ou a inversão pretendida do pensar do idealismo alemão (Fichte, Schelling e Hegel), senão Husserl e outros, encenaram mais do que a concretizaram. As filosofias na «história da filosofia» já não são testemunhas de mudanças e mais do que isso expressam hoje um intolerável continuísmo. O platonismo manteve-se preservado nos pressupostos morais da Verdade, senão da Verdade mesma como Razão transcendental, em todas estas filosofias, como métodos, como ascese, como cumplicidade com a produção dos corpos históricos e das leis. Assegurar a estrangeiridade do pensamento (o corpo impossível do pensamento) como qualquer coisa diferente e independente do conhecimento das cidades, como algo impróprio à representação e aos modelos, ao Ser, ao Homem e ao Estado, nos assegura critérios críticos capazes de investir contra as filosofias como discursos e práticas de sustentação da história do Ocidente. Nos permite enfim supreender a importância das questões não apenas concernentes à visão do Eterno Retorno em Nietzsche (ou das «diferenças livres» e das «repetições complexas») assim como do pensamento enquanto espessuração e corpo dionisíaco. Pensamento-espessuração, dobras ou corpo dionisíaco, que o pensamento sem imagem - eterno retorno - estabelece como intensidade e pensar. E que nos possibilita compreender o conhecimento, senão o imaginário como imagens-conteúdos das formas de poder-saber que perfazem os propósitos de assujeitamento e ilusões por onde se geraram os aparelhos da Humanidade e do Estado. A repetição como «repetição do mesmo» (ou a reiteração) é moral e portanto platônica, pois existe como fonte das leis e cena dos conceitos. A alternativa reativa (Nietzsche) às forças, destacando-as das potências, é inseparável desse conteúdo funcional-transcendental que as diferenças e as repetições como Lei - como dialética - asseguram moralmente e pretendem como Verdade. O eterno retorno no espírito das «diferenças livres» e da «repetição complexa» transfigura e subverte o espetáculo da seriedade senil das leis (a reiteração) na comédia do platonismo. Nesta comédia cujo limiar perdura como uma ameaça à vida e cuja duração tem o aspecto monótono, monocontrolado, de um ir e vir sintático da transcendência como restrição às afirmações e como experiência do horror. Romper com o plano, romper com «o nada de vontade», não é tão somente surpreender a linearidade das filosofias numa «história da filosofia» que preserva basicamente a fôrma platônica, é dar-se conta também de que o pensamento-espessuração existe em suas dobras como um «teatro da crueldade» (Artaud) em extemporânea afluência que cabe experimentar e apontar. É ver nos corpos malditos -para além da representação - as «diferenças livres» e a «repetição complexa» como anedotas ou teatros singulares da espessuração - pensamento. Rastrear este fluxo extemporâneo visceral e intelectual não apenas como singularidades malditas na filosofia mas como cenas deste outro registro que é o pensamento-espessuração significa atacar as «regularidades» em nós e existir como provocador das intensida-. des. É também e sobretudo produzir as misturas loucas - fora das medidas - cujas dobras escapam mas cuja ardência constitui um delírio sem vazios (de Heráclito a Strindberg passando pela legião dos al-quimistas). Refiro-me não só aos materiais malditos que enquanto posições trágicas se manifestam sobretudo em Heráclito, Empédo-cles, Lucrécio, Nietzsche e Artaud, ou em personagens trágico-literários como Clitemnestra, Kirílov, Karamazoff, Gregor, Ana etc. e em personagens mítico-políticos como Dionísio, Sileno, Mefistó-feles etc. ou em grupos «estigmatizados» como já o foram os leprosos, as massas com doenças venéreas, os grupos Aids, os animais, os loucos e as mulheres. Se por um lado evita-se compactar esta diversidade numa mesma qualidade da «vontade de potência» por outro lado se reconhecerá aqui - nas diferentes experiências da espessuração-pensamento - a movente afluência do coro trágico e das dobras enquanto transformações e devir. O real, ele mesmo, sempre como avaliações, pois não se trata de naturalizá-lo ou substancializá-lo mas de se abrir a sua reflexão-espessuração no impacto que o descostura como representações subvertendo nas musculaturas as direções, e nas filiações, impondo o desamparo e as misturas. Isto é, repondo-a como potência e diversidade e nos reinaugurando outra vez como dimensões da sua agilidade lá onde a vida - Heráclito, Nietzsche e Artaud - torna-se invenção intelectual-visceral - os loucos, lá onde ela aspira ser a velocidade -as mulheres e os elementos - fazendo os contágios e as pontas dessa afluência do coro trágico onde até então duravam o vazio e as demoras. Nestes corpos - contagiados de Dionísio - frente aos «corpos histórico-particulares» da divisão social do trabalho e da divisão sexual, frente, enfim, às representações e à cidade, pode se perpassar -«pesar» (Nietzsche) o limiar brilhante e quente - Artaud dizia-nos que suas mãos passeavammediam por aí - que um horizonte futuro, bárbaro e insuspeitado já esmera como transformação. No corpo dionisíaco - na música «antes da música» (Artaud) - as «diferenças livres» e as «repetições complexas» interrompem as fitas métricas produzidas-experimentadas da normalidade e da morbidez, dos ganhos e das perdas, da «morte» e da «vida» reativas. O corpo não-humano do pensamento na velocidade e na monstruosidade (esplêndida) de Heráclito e Empédocles, de Sade e de Nietzsche, dos céus, da terra, dos lobos, dos loucos e sobretudo de Zaratustra, cujos ritmos são singulares e fissuram os homens, as cidades e o conhecimento - este corpo não se deixa conter pelo abraço como as braçadas de flores e as águas. Corpos que respiram - que espessuram - o eterno retorno, que o respiram sem os pulmões, «corpos sem órgãos», sem organicidade, intensas feições (na espessura só feições, só exteriores) desse heraclitiano queimar. A liquidação de todas as legalidades (das leis na espessura) subverte as physis, as físicas, as filosofias e põe a nu as idéias. Desanda em desamparo o Homem e torna a cidade um desagradável girar sobre si mesma, das leis e das direções. O eterno retorno não disciplina nada, não é uma política, não é uma outra cidade, nem mesmo um outro Homem. E Deleuze nos diz: «A forma da repetição no eterno retorno é a forma brutal do imediato, do universal e do singular reunidos, que destrona toda lei geral, arrasa as mediações, liquida as particularidades submetidas à lei. Há um além da lei, e um esquema da lei, que se unem no eterno retorno como a ironia e o humor negros de Zaratustra»(Ib. p. 15). No eterno retorno está todo o futuro, todo o corpo (Dionísio) do futuro, e o futuro mesmo como o pensamento que se inaugura. A «diferença livre» e a «repetição complexa» são o futuro e o fogo voraz que incensa as memórias e as histórias como controles. O grande esquecimento do eterno retorno não é o esquecer como esquecimento mas ter conseguido o pensamento como potência contra a memória e a história como conhecimento (passado) ou controles. O platonismo instaurava a memória e a disciplina desde a teoria dos dois mundos e no eixo epistemológico da epistéme e da doxa pelos controles miméticos já instalados no mito da alma e das essências. O eterno retorno esfarela esta aritmética das submissões e dos medos, abre as portas de ferro dos conceitos e vigora o pathos em suas afirmações. Ele inaugura nos corpos seus ataques e suas danças, pondo a vida num inconsciente só futuro, só disparos e intensidades. Perseguir o eterno retorno como possível - como pensamento sem imagem - afirmar o esquecimento ativo é decifrar a história social inteira e a história do conhecimento como produções de dispositivos e controles. É sobretudo perceber nas Verdades propostas pelas filosofias, pelas medicinas e pelas ciências humanas um processo de naturalização e substancialização destas Verdades. Com o eterno retorno como intensidade - ele mesmo uma visão em Nietzsche - deparamo-nos de imediato com a afluência da espessuração-pensamento partindo-nos os ossos e impedindo-nos a representação. A velocidade não mais sob controle das leis ou das legalida-des, mas já de imediato nos pondo em multiplicidades e transformações nas experiências descentradas do coro trágico, do Gregor de Kafka, dos lobos (matilha) do Homem dos Lobos, do céu estrelado como um lance de dados lançados e afirmados (Zaratustrá). Experimentar diretamente a espessura-pensamento na velocidade sem as medicações da representação, da interpretação, das identificações e tutelas, amplia os jogos das forças como uma comunidade (univocidade) das farturas e intensidades que se atravessam. Um espetáculo à deriva da representação - ou do teatro e da música diverso daquele que conhecemos na história do Ocidente -onde as funções e as direções de um corpo totalizado e definido desaparecem nas danças imediatas e nos brilhos imediatos das matérias espessuradas. Expor as táticas ou os corpos abertos destas singularidades radicais - presença do eterno retorno - que foram Nietzsche e Artaud ao se pensarem e pensarem a vida como um teatro novo é um propósito assumido. Nietzsche com o Nascimento da Tragédia, onde a Grécia trágica, extemporânea nela mesma, é inseparável de um teatro (coro trágico) como alquimia e futuro. Artaud, esse incêndio do Homem e do Artista num corpo alquímico - mistura como metamorfoses, máscaras, como «obra impossível» (Foucault), como tóxicos, como nomadismo, como rostos e sexualidades diferenciadas e corpo espessuraçãopensamento. Estes terroristas enquanto espessurações-pensamentos mas sobretudo enquanto futuro que como Dionisio movem-se sem estranheza entre os animais, as bacantes, as paisagens e os céus - eis os «objetos», menos a serem esclarecidos que desdobrados, menos a serem delineados como ocorrências fora que o contágio e a experiência deste contágio da peste (espessurar-pensar). Artaud e as desproporções, as máscaras, os risos e os constrangimentos que provocam tal como Zaratustrá {Assim falou Zaratustrá) uma experiência de massa e júbilo e cujo corpo também foge às «medidas» humanas e cujo ciclo desorganiza as previsões médico-jurídicas. Nietzsche constrangendo e deprimindo Lou Salomé (como ela escreve), Zaratustrá vomitando ante a visão do Eterno Retorno, Anais Nin se enauseando frente a Artaud e se prometendo jamais beijar «aqueles lábios enegrecidos» de Artaud em razão da ingestão do láudano. Seria essa a razão? Ora, nas diferenças combatendo e no horror e no júbilo jamais se trata da ficção da razão - as causas emboscam o caráter. A desproporção (vide O Teatro e a Peste) como a espessura-ção e o inusitado dessa brutal imediatidade do eterno retomo no teatro para além da representação - e do bem e do mal - que eles foram e que eles permanecem e de onde o futuro é, tal qual, futuro e multiplicidade. Os deuses numerosos (multiplicidade e singularidade) na Grécia Antiga, ainda no mesmo propósito, desproporção e vontade, como um teatro da afirmação. Com a desproporção do corpo afirmativo frente ao corpo histórico particular (platônico-grego, platônico-cristão, platônico-burguês) na luminosidade descarnada da «matemática» qualitativa dos mármores, da agora etc., isto é, teatral antes do teatro (Artaud), trágico e extemporâneo. Matemática, mármores e ágoras não democráticos (no sentido burguês) mas «democráticos» no sentido aristocrático do teatro como exterioridade radical, como forças envolvidas, como plasticidade e individuação. Assim como os heróis homéricos, numerosos, multiplicidade e singularidade na Grécia Antiga, como um teatro (todo ele o realt não o universo reativo, disciplinador dos cidadãos e das representações) da afirmação e do risco. Pois bem, desproporcional e múltiplo como todos os corpos em Artaud, como os «corpos» das dobras do coro trágico (Nietzsche), da música antes da «música», na velocidade e nas metamorfoses. Os deuses do Olimpo grego e os heróis de Homero são como os toxicômanos, os loucos, os animais e as mulheres, o pensamento espessurando as linhas de fuga e o fogo heraclitiano. Eles são a peste, o devir, o «teatro antes do teatro», o dionisismo virótico da alegria-horror se implantando. As intensidades são, enfim, as desproporções, o múltiplo, as afirmações como ossaturas incendiadas do real que são ademais incomparáveis. As diversidades e o seu teatro não são mais as diferenças na dialética das personagens e das ascensões tal qual de Eurípedes ao teatro burguês. A «diferença livre» e a «repetição complexa», como movimento, lavam o real - como um gato se auto-lava - das sujida-des «conteudísticas do mesmo» que a sintaxe das representações nos impõe. Estas forças, estas qualidades das forças na plenitude de suas potências impõem a seletividade (Nietzsche) com que o eterno retorno se amplia. E ele se amplia (no seio relativo das vidas diminuídas e das forças agregadas e representadas) como máscaras ou signos-forças - neste teatro cruel - pondo um movimento real em meio do falso movimento do abstrato. Nestes propósitos cabe pensar-espessurar o corpo e este mesmo corpo que encontramos como algo sempre negado e pronto para inserir numa crise as grandes categorias ideológicas que o retiraram por todos estes séculos da nossa preocupação. Mas por que o corpo? Porque ele nos permite a uma só vez a crítica de categorias abstrato-ideais que aprioristicamente buscam situá-lo e explicá-lo e em seguida porque com o corpo precipitamos quase de imediato nos temas da força e da vontade. Com o corpo -como queria Espinoza e como suspeitou Schreber, isto é, o corpo como extensões-cenas, como derrame e sustentação, como algo a ser inventado e a ser perdido. Ele não é uma natureza, muito menos um espírito, tanto quanto não é - mesmo quando com o corpo se trata sempre de valores e como valores ele o tenha sido «natureza» e «espírito» - as ficções brutais, nelas mesmas, de sujeito e objeto. Ficções estas pertencentes ao platonismo e às formas sociais e históricas que foram e são a história do Ocidente. O corpo que como se sabe perdurou «ausente» nos pares ca-tegoriais (morais e disciplinares) das ficções do humano e da animalidade, da cultura e da barbárie, do real e do simbólico, e assim sucessivamente na história das filosofias e nas crenças humanas e sociais. Estas categorias foram a costura visceral -senão também a plasticidade, a exterioridade - dessa cena humilhada da vida que são os Homens, as filosofias e a história social. Contar a história das grandes categorias filosóficas é surpreender nelas esta oscilação entre os discursos e as práticas como dinâmicas de produção do corpo histórico particular, da moralidade e das disciplinas. Empreender esta articulação, assistir esta passagem, esta nutrição velada da materialidade histórica e circunstancial do corpo, da cidade e dos projetos (enfim, do mito cíclico da origem e do fim e da Razão que nele distingue e organiza) é muito mais que historici-zar idéias e «idealizar» realidades. Já porque com idéias não se trata de «idéias» nem com o corpo e a história se trata de um real fora, de uma natureza ou de uma necessidade. Colocar-se desta forma sem, inocentemente, reproduzir uma das versões da Verdade é também distanciar-se dos registros enquanto História. Isto é, as Histórias, tais quais, constituem dispositivos platônicos pois organizam-controlam sob um peso «mimético» no «passado» e nos modelos (como experiências e como essências) - e jamais dispuseram, nelas mesmas, de ímpetos críticos radicais onde o espírito do seu registro fosse denunciado. As Histórias são registros predispostos a totalizações e a dialética - que se pode datar na chamada História Ocidental- indicados já nos empenhos de divisões e classificações dos Diálogos (de Platão) mas tão só afluentes e delineadas nos processos diferenciados de produção dos corpos e das cidades como alternativa reativa às forças. Pensar o «pensamento» e os «corpos» é vencer o equívoco da História como suposta aferição objetiva do tempo e das formas e é até mesmo situá-la criticamente no espectro de propósitos do platonis-mo. E com isso, achamos, é aproximarse de Nietzsche, dos temas das forças, da vontade de potência e do eterno retomo por onde se aus-culta a alternativa reativa das forças sob as formas de corpo histórico particular, de efeito do sujeito, das linguagens, das cidades, das «histórias», das filosofias e das ciências. Não há nesta proposta nenhuma originalidade caso se suspenda aquilo que em Nietzsche organiza criticamente estas relações: isto é, as teses das forças ativas e reativas. Ora, Vernant não aspira esta radicalidade em sua captação do atravessamento da formação da Grécia Clássica e do conhecimento como invenção de uma Razão como transcendência, porém cabe citá-lo para ilustrar estes esforços. Na conclusão do seu livro Les origines de Ia pensee Grecque ele diz: «Advento da Polis, nascimento da filosofia: entre as duas ordens de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para que o pensamento racional apareça, em suas origens, solidário das estruturas sociais e mentais próprias da cidade grega. (...) A escola de Mi-leto não viu nascer a Razão; ela construiu uma Razão. (...) De fato, é no plano político que a Razão, na Grécia, primeiramente se exprimiu, constituiu-se e formou-se. (...) Para o grego, o homem não se separa do cidadão; a phrónesis, a reflexão, é o privilégio dos homens livres que exercem correlativamente sua razão e seus direitos cívicos. (...) Quando nasce em Mileto a filosofia está enraizada neste pensamento político cujas preocupações fundamentais traduz e do qual terá uma parte de seu vocabulário. É verdade que bem depressa se firma com maior independência». (2) Ao se dar conta da invenção da Razão na invenção da Política e da invenção da Filosofia na invenção mesmo dos discursos como Razão, Vernant pressente que o «conhecimento» tem pertinência estratégica numa alternativa reativa imposta à vida. Abandonar o discurso filosófico e o discurso político - o que significa subverter o social e o eixo médico-epistemológico que produz e reproduz o social - é inseparável do propósito de inserirse nos jogos da espessuração-pensamento. É algo, enfim, contraditório com o tornar-se fictício e brutalmente suposto. Sujeito destes jogos impondo medidas e representações (a fala, a escrita, as nomenclaturas filosóficas, a história e as instituições filosóficas e políticas). Senão, tal como se passa, impondo a representação e fazendo dela as medidas e as medicinas do devir e do pensamento. O pensamento é - no seu sendo - uma peste (Artaud) sempre mais afluente que ao mesmo tempo que desanda o corpo histórico particular, as cidades, o conhecimento, as identidades etc, ro-bustece com seu vigor a fúria toda de diferenças como espessura-pensamento. Ora, cabe pensar estes valores que as «imagens» - outra coisa que os conceitos - do eterno retorno, da univocidade, das «diferenças livres», da «repetição complexa» e, enfim, das forças e da potência, implicam e até mesmo retomam como alternativa à vida. A análise em termos de força, pelo menos subentendidamen-te, permite-nos um desdobramento - não propriamente metafórico, visto que não existe um objeto ou um contexto em si por onde as imagens, como representações, se fariam; desdobramento de imagens livres (todas elas produção) de uma espessura, ela mesma, enquanto imagem (espessuração-pensamento) - que nos situaria nas reflexões como experiências da intensidade ou da vontade. O objeto até então - na farsa platônica política e epistemo-lógica da relação sujeito e objeto - surgenos agora como força, como expressão de força e como relações de força. Forças estas - visto que plurais - adversas a toda e qualquer física (physis), isto é, enquanto multiplicidade louca, indiferente à ilusão da medida. Nas forças não cabe «objetivar», isto é, configurar uma totalidade, isto é, as forças que são relações têm na distância o «elemento diferencial». São, aliás, estas reflexões de Nietzsche que permitem determinados desenvolvimentos de Deleuze-Guattari, por exemplo, no capítulo inicial (Rizoma) do livro de 1980: Mille Plateaux. Capítulo, ele mesmo, na forma desta imagem que pulsa o livro inteiro pois é ele (o rizoma) enquanto intensidade compactada num só capítulo o desdobramento mais recente de princípios tais como a força, a vontade de potência e o eterno retorno. Com um outro texto deste mesmo autor (G.Deleuze) a filosofia da vontade em Nietzsche recebe o seguinte comentário: «O fato de toda força se relacionar com outra, seja para comandar, seja para obedecer, coloca-nos no caminho da origem: a origem é a diferença na origem, a diferença na origem é a hierarquia, isto é, a relação de uma força dominante com uma força dominada, de uma vontade obedecida com uma vontade obediente». (3) A hierarquia como inseparável da geneologia, eis o que Nietzsche chama de «nosso problema» (in Zaratustra III. «Os três males»). A hierarquia é o fato originário, a identidade da diferença e da origem. Diferença como intensidade (ou avaliação), isto é, as forças espessuram-pensam, afirmam-se, e na geneologia - esta captura à deriva da representação - estas cenas, nelas mesmas, constituem o presente das forças atuais envolvidas. O pensamento espessura daquilo que espessura-pensa como univocidade, mas uma univocidade que se diz pelas diferenças, ou que delas se atribui sem as pertinências de transcendentalidade religiosa ou ontológica. As forças se retomam como questão, tal como o sempre foram, quando a cena trágica do pensamento extemporaneamente se constituiu, desde um posicionamento crítico às ficções transcendentais da Razão exclusivista, do Ser, de Deus ou da Consciência. Neste sentido é sempre com o reaparecimento do corpo como questão (corpo anedótico pré-socrático, corpo espinozista, nietzschiano e artaudia-no) que o pensamento, porém não o conhecimento, chega à frente das preocupações e contagia as práticas. É em cima desta preocupação pelo corpo - na respiração trágica da espessura - que Nietzsche abre taticamente na multiplicidade de forças que constitui um corpo a imagem de suas políticas alternativas. Forças ativas, diz ele, ou forças reativas como qualidades que exprimem as relações das forças entre si. Ou ainda as forças enquanto qualidade reativa como o distanciamento das forças com suas vontades de potência na figura externa (transcendente) de um controle abstrato, gregário e disciplinador. Contexto constante de nossos pressupostos como aparelho Humano (e humanidade), como Leis, como Verdades, como controles internalizados (a consciência) e controles externos (a divisão social do trabalho e a cidade) que até mesmo convertem uma política negativa de força em «natureza» e em necessidade. Da força enquanto qualidade ativa de forças o que pudermos dizer se transfere dos registros habituais e consentidos para um imaginário limiar aproximado - para a fluição e os jogos da espessuraçãopensamento onde as figuras da intensidade, sejam os aforismas, o corpo dionisíaco do pensamento présocrático, da tragédia grega e da loucura, apenas se atribuem dessa nova e antiga -pouco importa quando - postura trágica. Aproximar a força ativa das forças como «inconsciente» é equivocar estas forças em Nietzsche, pois o inconsciente neste pensador {Geneologia da Moral, 1887) não tem a acepção que ele tem no tópico freudiano {Interpretação dos Sonhos, 1900). Nietzsche bem antes de Freud (1887) se refere ao consciente, à censura e ao inconsciente como um filtro reativo, porém circunstancial e específico de uma das expressões das forças. O tópico Nietzschiano se refere ao corpo histórico particular produzido na alternativa reativa imposta à vida naquilo que experimentamos (o que muitos concebem como natureza e necessidade) como «humanidade», representação e sociedade. Daí que as eventuais aproximações da força ativa como «forças inconscientes» - já que a consciência é um dispositivo reativo - não significam em Nietzsche uma versão positiva das pulsões ou dos «representantes de pulsões» organizados no primeiro sistema (o inconsciente). Em Nietzsche o «inconsciente» tem várias acepções, tal como as expressões instintos, psicologia etc, pois este pensador não é conceituai e sistemático, mas um pensador de espessuras-intensidades nos seus aforismas e na sua vida. Forças ativas é a vida à deriva ou paralela aos constrangimentos abstratos da Razão, das musculaturas funcionais, dos efeitos de sujeito, do corpo «organizado» (corpo com órgãos) etc. Força ativa é a espessuração-pensamento como plenitude corporal-intelectual tal como o coro grego movendo-se no vazio (no «nada de vontade») das cidades. Neste contexto de questões observamos de imediato que não se trata de discutir esta ou aquela filosofia, de privilegiar este ou aquele discurso, ou de procurar uma razão ou uma lógica mais ágil e mais rigorosa. Ao que se trata - como voltaremos reiteradamente a mostrar - é que com forças reativas se existe no registro das representações, das abstrações funcionais, das razões, das disciplinas, dos gregaris-mos e das mediações reativas reguladoras tais como a consciência, o social, as linguagens. Ora, as filosofias, mas mais acintosamente as ciências, consideram, reescrevem, e desdobram esta infinidade abstrata de controles, de medidas, de medidas de medidas que configuram um universo imposto de forças reativas hegemônicas. Como discursos deste universo, como saber-poder deste projeto de exclusão das potências e nivelação das forças, as ciências são discursos táticos que se naturalizam na ficção da universalidade e da objetividade. O que nos leva então a saudar em Nietzsche a aspiração de uma «ciência alegre» ou a afirmação como qualidade ativa das forças na univocidade da espessuração-pensamento. Nesta direção se aprofunda e se radicaliza bem mais as questões que divisamos concernentes às «imagens» das forças ativas frente às forças reativas e suas formas na representação e na lei; pois aqui o pensamento - agora sem o conteúdo do mesmo - é a presença mesma do eterno retorno: «A ciência por vocação (diz Deleuze, comentando as críticas de Nietzsche às ciências) compreende os fenômenos a partir das forças reativas e as interpreta deste ponto de vista. A física é reativa pela mesma razão que a biologia: vendo sempre as coisas pelo lado menor, do lado das reações. O triunfo das forças reativas é o instrumento do pensamento niilista. E é também o princípio das manifestações do niilismo: a física reativa é uma física do ressentimento, como a biologia reativa é uma biologia do ressentimento» (P. 37). De onde decorre para nós a convicção de que as ciências são discursos e práticas - terapias e inculcações - contra o eterno retorno e tal como as religiões, as filosofias e os meios de comunicação, são produções e reproduções ampliadas do projeto reativo. O eterno retorno como «diferença livre» e «repetição complexa»(4) pulveriza toda e qualquer pulsação de forças - ou de forças deslocadas em mecanismos de controle - como produção de identidade e assujeitamento. Neste sentido o eterno retorno «não é o mesmo ou o um que retornam, mas o próprio retorno é o um que se diz somente do diverso e do que difere».(5) Se sob certo aspecto - pelo menos na leitura do jovem Nietzsche (6) - Heráclito é um pensador trágico e portanto um questionador em atravessado do eterno retorno e da univocidade, ele o é ainda antes da formulação da teoria dos dois mundos em Platão e no plato-nismo. Outra é a situação de Duns Scot no coração de uma escolásti-ca, onde o só pressentimento desta imagem filosófica poderia lhe valer a vida. O «Ser comum» que em Duns Scot escapa à representação e é muito menos aquela categoria central e transcendental por onde a multiplicidade e as diferenças se explicam e se redimem, se situa na direção e na valorização das questões da força, da potência, e do eterno retorno. Disso tudo, enfim, em que o pensamento «por analogia» se acha excluído, ou ainda como diz Deleuze «o essencial da univocidade não é que o Ser se diga em um só e mesmo sentido. É que ele se diga, em um só e mesmo sentido, de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas. (...) Não há dois , como se tinha acreditado no poema de Parmênides, mas uma só < voz > do Ser que se refere a todos os modos, os mais diversos, os mais variados, os mais diferenciados. O Ser se diz em um só e mesmo sentido de tudo do que ele se diz, mas isso de que ele se diz difere: ele se diz da diferença como tal». (7) Diferenças na univocidade, isto é, nelas mesmas por onde o que é não permite, como univocidade, a teoria dos dois mundos - a mecânica reativa e suas costuras - e onde as «diferenças livres» e a «repetição complexa», como lance de dados afirmado, insere a so-berbia do seu nomadismo. O Ser unívoco não é uma totalidade, uma identidade, um fechamento que administra distribuições, ele é o «corpo pleno sem órgãos» para as linhas de fuga das diferenças. Está assegurado nele o vigor das intensidades, o rigor livre das errâncias, a espessuração-pensamento. Mas a univocidade tem muitos outros testemunhos. Ar-taud, por exemplo, põe no ridículo a teoria platônica dos dois mundos tanto quanto teatro como representação e a Sorbonne; Artaud na univocidade da espessuração-pensamento é as metamorfoses (o devir), é a recusa do rebanho, do método analógico ou do compara-tivismo por onde Freud, se me permitem, funda a categoria de neurose e recusa a psicose (S. Freud: Inconsciente, 1915). Artaud, Herá-clito e Nietzsche recusam o método analógico porque este procedimento, como prática advinda da Teoria dos dois mundos, se depreende da solidariedade dos modelos e das cópias como uma transcendência das diferenças ou gêneros - porque ele é a fidelidade às manobras do Estrangeiro no «Diálogo» (Sofista) no sentido de impor sobre as intensidades e as diversidades - dos sofistas «encurralados» por Sócrates - partes cunhadas de uma dialética que transcende no vazio (ascese e conceito), humilhando a vida. A univocidade do ser (de Duns Scot, passando por Espinoza até Nietzsche) desossa a Razão, fragmenta a transcendência, inutiliza os métodos analógicos e repõe contra os deslocamentos reativos das forças, as forças, onde elas estão, isto é, como potências e afirmações. A univocidade é «um princípio nômade e plástico»(Ib. p. 56) «contemporâneo do processo de individuação, e que por isso mesmo não é menos capaz de dissolver e de destruir os indivíduos como de os constituir temporariamente» (Ib.). Mas não se trata aqui, com a univocidade, de diferenças específicas ou gêneros, ou de individualidades reativamente constituídas. E Deleuze explicita claramente: «A univocidade do ser, na medida que ela se refere imediatamente à diferença, exige que se mostre como a diferença individuante precede no ser as diferenças genéricas, específicas e mesmo individuais - como um campo já dado de individuação no ser condiciona a especificação das formas, a determinação das partes e suas variações individuais. Se a individuação não se faz nem pela forma nem pela matéria, nem qualitativamente nem extensivamente, é porque ela é já suposta pelas formas, as matérias e as partes extensivas (não unicamente porque ela difere como natureza)» (Ib.. p. 56-7). O que significa dizer que a univocidade do ser «se diz imediatamente das diferenças individuantes, ou que o universal se diz do mais singular independentemente de toda mediação» (Ib.). O ser unívoco não é o Ser das diferenças mas as diferenças que são num ser sem negação, no devir; isto é, «o ser que é diferença no sentido onde ele se diz da diferença» (Ib.) mas que não é fundan-te ou sintaxe (dialética) das diferenças, que é, enfim, equívoco, junto à individuação que é. Vê-se pois que com alguns dos pré-socráticos, com Duns Scot, com Espinoza e Nietzsche está se pensando fora do platonismo e cursando os jogos de uma experiência que potencializa a vida. O Ser se diz da potência, das diferenças afirmadas na multiplicidade das forças, ele não é primeiro, não é a identidade primeira, mas o que devem, a velocidade e as dobras. Daí que a «diferença livre» (não dialética) e a «repetição complexa» (não mecânica) concernem a esta «identidade» do devir como eterno retorno e se abrem a uma qualidade do pensamento que não lembra os filósofos muito menos os professores e não menos ao «pensamento» sob sua forma violentada no projeto do conhecimento. Isto que nos situa no nosso tema, isto é, tudo que concerne ao eterno retorno subentende, como pensamento-espessuração, uma diferença de natureza com a tradição da filosofia, do conhecimento, do Homem e da cidade. Enfim, como diz Nietzsche com o princípio seletivo do eterno retorno: o que retorna é radical pois diferente e limpo, sem os conteúdos da identidade no mesmo, no Ser ou em Deus. O Homem não retorna, o conceito não retorna, Deus não retorna, o que retorna é o horror em sua lisura como máscara das metamorfoses, como valores da força, como espessuração e riscos. O eterno retorno se assinala tão somente nas intensidades, nas espessurações loucas, nos acasos afirmados, ele é o ser não fundante, nem transcendental do devir. Ele é a nobreza das diferenças, a plasticidade da intensidade da águia sobre os abismos. O que as propostas platônicas e ocidentais atribuem a Deus - a unicidade e a substância - são a garantia do Ego como um e idêntico. São os atributos ficcionais de um movimento de ascese religiosa e epistemológica. A troca, o atravessamento e a distância disciplinar, do Homem e de Deus, fundam o corpo histórico particular, enraízam a ilusão de alma e prendem nas promessas uma identidade permanentemente intercambiável entre estas duas fantasias (o Ego e Deus).
No mito da luz (e a inteligibilidade ao nível do eixo episte-mológico é um dos seus aspectos) instaurou-se tanto a ascensão (as filosofias das «alturas») quanto as classificações, as diferenças dialéticas senão também as funções e os órgãos das funções, e enfim as disciplinas por onde as identidades se produzem e se fixam. A luz é a escuridão bêbada - a escuridão que «sonha» e que faz sonhar. E esta escuridão opaca e translúcida da luz cria como seu oposto o fantasma da escuridão, da ausência total de corpo e de identidade. Aliás, com esse universo dualista se faz não apenas uma artimanha genérica de princípios mas o corpo e a terra - nos elementos e na vida - pela sintaxe dos sentidos, das regiões, das funções nobres e das funções ignóbeis (medicadas). Lacera-se, marca-se, produz-se com o mito da luz (que escurece) os corpos históricos, seus sentidos, as disciplinas do trabalho, do sexo e da cultura, o erro e a verdade. Para além da luz e da ficção da escuridão (ou de escuridão «real» da luz que se borra) o que existe é a espessuração-pensamento onde a inteligência e a sensualidade não passam pela rede dos sentidos, dos orifícios, das musculaturas e das representações. O corpo impossível (dionisíaco) do pensamento sem imagem ou o eterno retorno não se situam nos eixos da Luz e das sombras, do modelo e da cópia, da verdade e do erro.
O eterno retorno exclui o sujeito e Deus, expulsa as mediações (e as representações) que aprisionam a vida e o pensamento neste vidro em destaque para o vazio e o nada. A terra e em seguida o espaço se tornam hospitais de vidro onde a vida é medicada pelo Pai, e onde o que importa precisa de Dionísio para se testemunhar. O eterno retorno surpreende o «Rei nu» na série histórica, nas sintaxes e asceses, produz o riso naqueles que se desandam (em horror e festa) com a espessuração-pensamento quando estes se dispõem - genealogicamente - a desconstruir os corpos e os totens do social reativo. Em Michel Foucault, por exemplo (neste seu impulso nietzs-chiano),se nos oferece o espetáculo da desconstrução da história social pelo eterno retorno. Essa sua caçada genealógica nos Fortes das Verdades é que alisa e lesa (e mostra) os corpos históricos particulares, os grupos, os edifícios, as cidades, seus subsolos planejados, os serviços básicos, as fábricas e as direções. Caça que arma e permite que assistamos à cena cômica do Homem e da história social. Desmonta as representações, distingue as forças que as inauguram, que se recalcam nelas, investiga os corpos nas musculaturas funcionais, nas organicidades burguesas, nas psicologizações, nas higienes e nas medicinas. «A modernidade»,diz ele,«principia quando o ser humano começa a existir no interior de seu organismo, na concha de sua cabeça, na armadura dos seus membros e através da rede da sua fisio-logia, quando ele começa a existir no cerne de um trabalho que o domina em seu princípio e cujo produto lhe escapa quando aloja o pensamento nos recessos de uma língua...» (8) Michel Foucault repõe crítica e politicamente a reflexão nietzschiana da história social na sociedade burguesa concedendo-nos de livro a livro a cena revelada de produção de um corpo histórico particular, de suas instituições, de sua cidade e de suas representações. As análises de Foucault se esmeram em não se figurarem especulativas, o que não aponta apenas para um temor de se falsearem no esqueleto nomenclatural-filosófico (cerradamente platônico), mas sobretudo por se consistirem também neste esforço de encontrar um pensamento que seja de imediato sua posição. Isto é, espessuração-pensamento como posição e como avaliação nas táticas teóricas diferenciadas e abandonadas por onde ele se aproxima e se renova. Foucault é um «intelectual» maldito, isto é, ele é o seu corpo, suas ações, e seu pensamento são linhas de fuga - espessurações - que subvertem e mostram, e neste sentido ele se vigora deste silo trágico de extemporaneidade que nos esforçamos em fazer valer pelas posições que aqui sustentamos no fulcro de reflexões apontadas por Deleuze. Se o eterno retorno é sempre o novo e o futuro, ele é também o escândalo do passado - pois as histórias não são senão passados mesmo quando são políticas, isto é, desdobramento dos pressupostos do platonismo. Ou mais precisamente, as políticas concernem ao passado na mesma medida em que este último é um pressuposto metafísico.
Foucault, no rigor e nas linhas de fuga, em torno da Geneo-logia da Moral recolhe do desaviso um a um dos pressupostos da alternativa reativa à vida. Neste sentido ele nos faz rir dos Homens e ele mesmo, nas espessuras anedóticas do seu corpo e do seu trabalho, é risível - à maneira então de uma espessuração-pensamento (ane-dótica) não comparável à seriedade das distâncias da representação e da verdade dos filósofos da razão. Nietzsche não se exaure a criticar os filósofos antepondo-lhes uma outra verdade, ele os lê perseguindo-os como ações anônimas que testemunham uma disposição reativa das forças. Nietzsche ri ou se exalta, se condói ou se comove com os filósofos. E Sarah Kofman diz: «Ler um filósofo, como Nietzsche, é assistir um espetáculo cômico. É compreender que o talento próprio ao < gênio > filosófico, seu talento mais dissimulado é um talento cômico. A universidade não lhe perdoará jamais: ele retira dos filósofos sua seriedade e sua senilidade, os desembaraça de seus vestuários de conceitos cinzas, ele nos faz rir»(9). Sensíveis muitas vezes, como certos comediantes ao trágico, eles mascaram este sofrimento e esta fartura sensual do pensamento na figura e no discurso de uma Verdade que os «salvaria» do devir e da dor. «Sua < filosofia> é sempre um remédio destinado a tornar tolerável o intolerável, a as contradições e os equívocos do devir» (Ib.).
Nietzsche é também a revelação da filosofia como forças (e como engodo), é uma reflexão que nos permite caminhar das formas artificiais do «método da divisão»(10) até as formas de «filósofos e imperialismo macedônico», «filósofos e Império romano», «filósofos e Igreja», «filósofos e Corte», «filósofos e Escola» etc. É com ele também que implode a farsa da «história da filosofia» (de Aristóteles até hoje) e ressurge como valor (valor trágico) a extemporaneidade do pensamento à deriva das invenções da Razão transcendente e da polis. Na Filosofia na época trágica dos gregos Nietzsche lamenta: «E uma verdadeira desgraça que nos tenha ficado quase nada destes antigos mestres da filosofia (...). Em razão desta perda nós lhes aplicamos, involuntariamente, falsas medidas». Nietzsche lembra em seguida o que para isso significou a preferência por Platão e Aristóteles já que são eles os responsáveis por uma versão diminuidora do pensamento pré-socrático. Versão hostil a estes pensadores, os pré-socráticos, que como experiências viscerais-intelectuais do pensamento (por onde a espessuração-pensamento se tenta - como no coro trágico - e por onde a vida se procura) estariam desde então estigmatizados tal como depois, sob matérias e cenas diferenciadas, performances como as de Lucrécio, Espinoza, Sade, Nietzsche e Artaud. E Nietzsche conclui: «Desde muito tempo, os governos, as Igrejas, os costumes, as modas e a covardia dos homens estão de acordo a usar meios políticos e policiais para confinar a atividade filosófica numa vã aparência de erudição (...). A filosofia perdeu sua razão de ser; desta forma o homem moderno, por pouco corajoso e honesto que ele fosse, deveria também repudiar e banir por meio de fórmulas iguais àquelas de que Platão se servia para banir da República os poetas trágicos»(Ib.). O pensamento que Nietzsche designou eventualmente como filosofia - no sentido da potência e afirmação como se lê na Ge-neologia da Moral - mereceu do Ocidente um combate sistemático e seus corpos (dionisíacos) foram obrigados à morte, ao exílio, ao suicídio, ao confinamento etc. Tal como os pré-socráticos que são remetidos a uma inventada barbárie, os malditos - os corpos da espessuração-pensamento - têm no seu encalço a medicina, a polícia e a Escola. Mas se estas instituições e suas operações curativas e repressivas são constantemente mortais para o pensamento, não são elas as formas exclusivas nem mais insidiosas da recusa e da hostilidade para com as práticas inspiradas na radicalidade do eterno retorno. Ao nosso ver são os dispositivos de «histórias», de história da filosofia, de história das artes etc, que se apropriam, para negarem, desses monumentos da espessuração-pensamento como individua-ção (mas não como individualidades constituídas). A história social com seu tronco-platônico se ramifica organizadamente em micro-cuidados - eles mesmos produtores - para o cerco diferenciado e permanente ao pensamento e ao corpo trágico. Seja «encurralando os sofistas» como pretende Platão, seja barbarizando o pensamento e o corpo trágico ao inserir os primeiros filósofos na imagem de «présocráticos » (Platão e Aristóteles). Seja reescrevendo a tragédia grega nas formas e valores do teatro ocidental onde o coro é esquecido nos personagens e nos dramas enquanto constitutivos do corpo histórico e dos valores da cidade; seja por uma constante e continuada perseguição do Estado ao pensamento - Pitágoras, Empédocles, Estói-cos, Epicuro, Lucrécio, Sade, Nietzsche, Schopenhauer, Artaud etc. - ou sua apropriação perversa pelos aparelhos do saber como meio de amparo e de ampliação do poder estabelecido. O salto-mortal não se retirará jamais, como extemporanei-dade e como tendência, como forma de se passar ao outro registro, porque ele é aquilo que espessurando e pensando em nós, converte tudo em trânsito, em passagem, em máscaras. As forças, a vontade de potência e o eterno retorno são nervos em nós, são espessuras que fazem uma inteligência sem sujeito, uma multiplicação sem plano, um disparo plural e devorador por onde nos tornamos o coro trágico. O coro trágico não se projeta no espelho, não tem imagem, não é pensamento com imagem, não é identidade e não se deixará domesticar pela Filosofia (o múltiplo e o Um, o Ser e o Nada) ou pe-la.pólis médica (as leis, o corpo particular, o trabalho, os controles, as asceses). O horror e o júbilo é o que tornamos cenas desse factum -não doadas e jamais poder ou generosidade de um Sujeito - de se ser espessuração-pensamento, de se ser na ausência de todo ser esta intensidade e seu perfil como máscara e como velocidade.
Desvencilhar-se de Deus e da Ordem, surpreender à deriva do quase «cadáver» que somos estes sinais soberbos da vida como turbulência alquímica do pensamento-espessuração é a loucura, essas quase feições, unhas do brilho das afirmações. A loucura, então, como um «trabalho» (ou o trabalho, aliás o único trabalho como pensamentoespessuração) que expõe sem reservas seu estoque de intensidades, já na devastação sem piedade das leis, da «normalidade», das identidades e das propriedades como também pelas invenções, criações, generosidade mortal da vontade de potências. Os loucos - estas usinas severas da única coisa que importa: o espessar-pensar - comem a História Ocidental, sem se deixarem atravessar pelas escoltas médico-psicológicas (e numa pré-socrática soberbia). Eles recusam as representações, as tutelas, eles são eles mesmos a dor, o horror, isto é, os meios e aquilo de que se trata - eles são as dobras do fogo. Os loucos (que não são os animais) e os animais (que não são as mulheres) e as mulheres, e estes grandes terroristas afirmativos que são os chamados «loucos geniais» (que não são os céus, os solos, as flores) e os céus, os solos e as flores, todos eles espessuram-pensam. Se configuram neste trabalho louco diferenciado - sem uma «medida» onde compará-los - onde o que importa são disparos-máscaras, lance de dados afirmados, ou «inúteis necessidades» que espessam em caules o corpo delicioso e rápido da vida. Rápido e constante da univocidade do ser, existindo da música plural, toda ela perplexa e de agenciamentos inesperados. Cabe então a argúcia da loucura para se antepor ao constrangimento da lei e à ilusão de inteligibilidade platônica. Cabe ao torso louco, todo ele um fruto aberto com o néctar seco das diferenças livres que é o eterno retorno - cabe respirar esta asfixia toda ela fartura, onde o Homem é vencido e o guerreiro inseparável da vida, por extenso, tenha esta ou aquela máscara, esta ou aquela lisura. Não mais a verdade e o erro, o normal e o mórbido, a direção e o descaminho mas as diferenças, os diferentes tipos e a experiência de um real que como tal é espessuração-pensamento. É multiplicidade e «rizoma» (Deleuze), é distâncias e diferenças, é máscaras e potências, é para além do interior-exterior o absoluto exterior do coro e suas dobras. Não mais o «social», a cidade, o Estado, ou opoder-saber como um centro onde o Poder se instaura e submete à maneira de um centro (ou de múltiplos centros) onde a forma reativa das forças desloca as potências roubadas ou separadas das forças em seu proveito. Ou então nem isso - pois o que pode fazer um poder-saber central é tão somente fazer das forças uma massa igualizada e usá-las (e neutralizá-las) pois as suas potências só existiriam nas suas forças correspondentes. Pois bem, cabe no projeto reativo confinar, perverter ou até extinguir a potência das forças - suas diferenças, suas nobrezas. Mas seja como for não passa pelas forças como vontade de potência (afirmações) o poder-saber como poder exercido sobre as forças separadas de sua potência. As forças com potência, afirmativa então, não se extinguem como vontade de potência para constituírem um poder central, nem aspiram fazer das outras forças forças separadas da sua afirmação. As forças que se afirmam (ativas) precisam das outras forças como afirmação - elas todas espessuram-pensam na univoci-dade sem transcendência do ser, como multiplicidade e pensamento. Mas como então suprimir esta metafísica e esta política já ativas nas forças separadas de sua potência se elas são o aparelho Homem? Como vencer o social - trama das práticas gregárias, dos assu-jeitamentos e da perversão do pensamento na forma conhecimento - como escapar das ilusões de carência, da falta, da prematuração e das necessidades como ficções e farsas para instalarse na fartura do pensamento-espessuração? Matar o Homem! Mas como? Emboscá-lo ou «encurralá-lo» como queria Platão como forma de luta contra os sofistas? Que terrorismo romperá, como pensamento-espessuração, com a farsa do conhecimento, do trabalho como divisão social do trabalho - isto que é extorsão e medicina - com a naturalização sexual, e com os dispositivos internalizados da consciência? Que terrorismo é a «linha de fuga» da afirmação da vida e disparo de arma de fogo sobre o «aparelho humanidade»? Matar o Homem não apenas direta e eficazmente com os as-sassínios afirmativos e os suicídios afirmativos - e cabe não confundi-los com os crimes e suicídios reativos - mas também, e sobretudo, pelas misturas livres como inserção do eterno retorno (esse despertar) no comedimento e na sedação coletiva. Matar por um contágio, por linhas de fuga, pelas misturas, pela peste. Invadir a paz torpe -este leque que vai das identificações, das direções e obediências até as guerras - pela peste (Artaud) que é a vontade de potência como força plástica. A peste - esta «ciência alegre» - no lugar do conhecimento e do automatismo inseparável do aparelho da cotidianeidade. A peste como o combate do leão e a leveza da criança frente ao pesado do camelo, como nos diz Nietzsche no Zaratustra (Prólogo). E a peste como eterno retorno se atribui da imagem das in-tensidades puras que escapam aos mitos cíclicos onde as afirmações não conseguem impedir os caules da negação entre elas e então, fatalmente, da totalização e da direção. Intensidades puras que não lembram e não devem lembrar proximidade ou distância (providencial) com o ser. Pois as intensidades puras ou as máscaras como forças plásticas, ou então a peste, não são menos ou mais Ser (Heidegger) pois que são diferenças afirmadas e até mesmo a «univocidade do ser» se atribuindo das diferenças sem se constituir em Ser e sem ser Sujeito. «Levar a peste» (e nisso Freud equivocou-se, pois pretendia este poder a partir da psicanálise) é aspirar que as vontades de potência se liberem e se intensifiquem, é trazer o brilho das estrelas do céu para a cidade e os materiais. É matar Deus, isto é, matar o Ego, dissolver esta cumplicidade, pois o eterno retorno - e aqui se explica o enigma da peste - «adoece» e «cura». E como diz Deleuze no VII Colóquio Internacional de Royaumont: o eterno retorno «é a lei de um mundo sem ser, sem unidade, sem identidade». O eterno retorno autentifica no sentido seletivo(11). Porém, «lei» aqui é a festa que não totaliza e que se atribui da potência. O que é completamente diferente de identificar, de sagrar uma cópia num modelo, um objeto no Ser transcendente. Tudo isso que permite afirmar que o eterno retorno é hoje e sempre toda radicalidade possível e Nietzsche sabia disso quando dizia: «Eu não sou um homem, sou dinamite». Ou ainda, «a verdade fala em mim. Mas a minha verdade é terrível: pois até agora chamou-se à mentira verdade. Transvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema autognose da humanidade que em mim se fez gênio e carne. Minha sina quer que eu seja o primeiro homem decente»(12). O eterno retorno exige de tudo a plenitude, transforma as falsas diferenças (como cartas marcadas da dialética) em extempora-neidade trágica. Subverte as ordens, aniquila as transcendências, retoma as intensidades, faz cinza das ficções do corpo orgânico, das estruturas, das leis, das ciências, das biografias, dos processos, das as-ceses, das filiações e das direções. O pensamento é esta emoção-espessuração - este esquecimento absolutamente atento que é o eterno retorno por onde o que é se age (no oceano) com suas vagas, vagas-nervos em mim, vagas-pânicos e festas em mim. O que é me move, se move, me escapa, escapa, me fere, se fere e se produz. O que se exalta e é potência nesta visão toda convulsão e entranhas não é senão o que é: algo absolutamente à deriva, sem sentido e sem explicações. E Klossowski pode então dizer, aproximadamente,(13) que as descontinuidades como fisionomias fabulosas - os guerreiros - são um perpétuo fugir do Mesmo (dos conteúdos) pelas afirmações. Isto é, os deuses como as crianças viris de Heráclito descosturando o mundo. O eterno retorno como aquilo «que um dia pode chegar» -o pensamento-espessuração nele mesmo. Esta é a «grande política» nietzschiana, a trama sem par do novo nas aspirações dos trágicos. Os trágicos, esta última e inequívoca gentileza dos combates. Aqueles que habitam os Diálogos de Platão -como os cães de caça que são treinados em embrulhos de pano com bofe - para conhecer os inimigos. Aqueles que retomam os termos das críticas de Nietzsche à «seleção das espécies» em Darwin (como seleção dos medíocres) e que o fazem no «espírito seletivo do eterno retorno» propondo um corpo dionisíaco e descortinando suas velocidades na peste afirmativa sabem que Klossowski não se equivoca. E Nietzsche quem estabelece o «tema do terror exterminador» nos fundamentos que lhe faltaram sempre. Ele é o exercício do pensamento como corpo a ação, como eterno retorno, como o limiar que se pensa (Zaratustra). O eterno retorno exterminador que não são os políticos ou os soldados, que não pode tomar jamais estas formas e não apenas porque a política e a guerra são dispositivos greco-ocidentais - como mais tarde na burguesia o indivíduo constituído, as individualidades, as massas, a consciência, o efeito de sujeito, a criança infantili-zada, a mulher-mãe etc. O eterno retorno exterminador não é um pensamento de conteúdos, e estes aparelhos e dispositivos reativos que perfazem, continua-descontinuadamente, o corpo histórico particular se nutrem somente do mesmo, dos conteúdos, das poções e Deus, do Estado e do conhecimento. E Klossowski arremata (Ib): «Por seu próprio este pensamento deixaria a massa dos indivíduos indiferentes. Ele só poderia ser tomado a sério se o terror que lhe é implícito se traduzisse por atos consecutivos (...). Nenhum regime político saberia jamais adotá-los,e os indivíduos e as massas que não suportam viver e não se compara com o crime fundado na medida - no rigor da medida - como êxito sobre a vida e desavença na partilha. Tampouco o suicídio é, quando suicido ativo, quando ataque e vitória sobre o Homem, quando indiferença ao fantasma da morte nos termos da economia política dos corpos históricos particulares, qualquer dos numerosos indícios do niilismo denunciado por Nietzsche. No livro primeiro de Zaratustra (Dospregadores da Morte) Nietzsche escreve: «Eis os tísicos de alma. Mal nasceram e já começam a fenecer, e sonham com as doutrinas do cansaço e da renúncia» ou «A vida não é mais do que sofrimento (...) e não se enganam. Tratai, pois, de abreviar a vossa. Cessai a vida que não passa além de sofrimento!» e «Por toda parte ressoa a voz dos que apregoam a morte...». A geneologia é na verdade esta análise exaustiva da vida como intensidade baixa, análise da história social e das formas de transcendência (as Verdades) que asseguram este quase «nada de vontade» que produz as massas e os indivíduos. Se o horror afirmado é a vida como sofrimento afirmada (Sileno-Nietzsche-Artaud) o horror não é algo a ser vencido mas ele mesmo, o ser unívoco e o espírito nas dobras do coro afluente, o júbilo por onde o factum se dispersa e se contrai como um encontro. Os crimes afirmativos e os suicídios ativos na incidência combativa desta afluência e destas dobras frente aos corpos e culturas reativas são «rizomas» fazendo contra todo o fazer, enquanto fazer coisas e sujeitos, o corpo dionisíaco impossível. No 1° livro do Zaratustra (Da Guerra e dos Guerreiros), Nietzsche diz: « Não pretendemos que os nossos inimigos nos tratem com indulgência, nem tampouco aqueles a quem amamos de coração. Deixai-me, portanto, dizer-vos a verdade», ou «Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas a vitória», e «eu vos digo: a guerra justa é a que santifica todas as coisas» e, enfim: «o vosso mais elevado pensamento deveis ouvi-lo de mim, e é este: o homem deve ser suplantado». Pois bem, é nesta combatividade cerrada - mesmo se diferenciada - do eterno retorno como espessuração-pensamento que Nietzsche comenta a morte afirmativa: «Morra o tempo: eis o que ensina Zaratustra. Claro que aquele que nunca viveu, como há de morrer a tempo? O melhor é não nascer». Nesta mesma parte do Assim falou Zaratustra (Da morte livre, 1 ? livro) Nietzsche precisa melhor sua concepção afirmativa da morte dizendo: «Todos atribuem suma importância à morte; porém a morte ainda não é uma festa! Os homens ainda não sabem como se consagrar às mais belas festas. Eu vos apregoo a morte necessária, a morte que, para os vivos, vem a ser um incentivo e uma promessa», ou: «Assim, seria necessário aprender a morrer..» e, enfim: «Faço-vos o panegírico da minha morte, da morte livre, que vem porque eu quero». Nietzsche persegue as determinações não reativas e se vê atribuído dessa ação em aberto da afirmação como eterno retorno. Ele quer essa trama por alma, ele quer o ataque por meio dia intelectual dos seus ossos e dos seus nervos. «Vosso espírito e vossa virtude devem inflamar até a vossa agonia, como o arrebol do poente inflama a terra; senão a vossa morte será um malogro.» (Ib.) A morte fantasmal da República de Platão ou do Estado-Nação do capitalismo, nas oficinas da equivocação das medicinas e das filosofias - morte em vida e morte como trampolim para a transcendência - aliada à preservação da «vida» como «um nada de vontade de potência», ou como constituição e duração das classes sociais, se choca com a «morte livre» de Nietzsche. A positividade do horror e da morte na implantação do eterno retorno recobre também a significação do afirmativo da dor e do sofrimento. A dor afirmativa pertenceu já aos gregos trágicos e ela foi-lhes seu pendor para o pensamento, insiste Nietzsche no Nascimento da Tragédia. A dor de Dionísio, de Clitemnestra, dos heróis ho-méricos, dos pré-socráticos (tal como Heráclito), de Sade, de Höl-derlin, de Nietzsche, de Strindberg, de Nijinsky, de Kirilov e de Ar-taud, jamais os levou a dizer não à vida. O eterno retorno é potencialmente o tamanho inteiro dessa dor (como pensamento-espessuração) e o tamanho inteiro do júbilo que diz sim à vida. O sofrimento no horror afirmado é o pensamento do eterno retorno. Porém, como mostrar nos corpos que espessuram e que tentam no corpo de Dionísio, dos loucos, dos animais, dos «loucos geniais», o sofrimento afirmativo da afluência do eterno retorno e que portanto não se parece com a dor reativa dos Homens e dos Homens como dificuldades nas sintaxes concernentes às disciplinas e às ilusórias ascensões? Como combater os discursos dos pais, dos médicos, dos filantropos e dos filósofos sobre um sofrimento dos malditos, dos animais e dos loucos que cabe medicar, curar e sedar? A dor como alegria são os trabalhos do pensamento que se figuram arredios para os olhos dos Homens pois eles são estrangeiros e bárbaros, levezas impostas ao mais pesado (Nietzsche). A dor é, enfim, esta esmeralda comum - cultivada nos pátios dos manicômios, das prisões, nos animais cativos e livres etc. - nesta sua existência diversa e introcável que a comunidade como horror significa como pensamento que se pensa. A experiência do pensamento como espessura que desanda - este encantamento - faz a estrangeiridade onde nos inauguramos (a barata de Kafka) e onde o limiar se delira e nada possui de ego, de próprio, de mundo. A comunidade trágica, enfim, essa fartura que nos retira da forma, dos orifícios funcionais, das trocas reguladas, que mata Deus já na origem, são intensidades sem sujeito numa mostração livre e sem público, que não se totaliza.
E o eterno retorno é então a invenção de Dionísio como extermínio da «seleção pela mediocridade» (Platão, Hegel, Darwin-Freud) e a insolência de uma espessuração-pensamento que cria a exaltada gratuidade como paixão e combates.Criações sem propósitos de meios e de fins, e é Klossowski (Ib.) que nos lembra que Nietzsche gritou: «Quem quer fins quer meios». O eterno retorno é então outra coisa que ações no eixo do êxito e do fracasso pois um e outro são para ele indiferentes já que ele é a paixão (a afirmação) e a paixão existe por si mesma e não por estas medidas. A paixão (esta experiência ética do horror) que «envenena» com céus o factum. Como disse Nietzsche, ainda jovem, no Nascimento da Tragédia e que retomo aqui aproximadamente e por memória: Só há um real, o coro trágico, uma só vocação de real, e no palco do que se trata é de visões (visões do coro). Dionísio é o coro (o corpo despedaçado) e o coro é o corpo do devir. Este mesmo coro afluente e futuro que se mergulha de cometas-flores, de cometas-águas, de disparos-mulheres, de linhas-crianças, de pensamentos-espessurações animais e loucos; este coro de sátiros com sua alegria bárbara - resplendente de sabedoria como Sileno e Dionísio, que em nada lembram as assembléias da lei e a «sabedoria» da polis.
Rio de Janeiro, 1986.
* Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escritor, poeta e dramaturgo.
NOTAS
1. Deleuze, G. Différence et Répêtition. P.U.F., 1986, Paris. Avant-Propos
2. VernantJrP. Les origines de lapensêe grecque. P.U.F. Paris.
3. Deleuze, G. Nietzsche et Ia philosophie. P.U.F. 1973, Paris
4. Deleuze, G. Différence et Répêtition.
5. Deleuze, G. Nietzsche e a Filosofia. Rio, p. 38. 1976, Rio de Janeiro.
6. Nietzsche, F. A filosofia na Época Trágica dos Gregos
7. Deleuze, G. Différence et Répêtition, p. 53.
8. Foucault, M. Les Mots et les Choses. Gallimard, 1966. Paris.
9. Kofman, Sarah: Nietzsche et Ia Scène Philosophique. 10/18, p. 9- Paris.
10. Deleuze, G. Platão e o Simulacro in Lógica do Sentido. São Paulo, Perspectiva.
11. Escobar, Carlos H., org. Porque Nietzsche?. Achiamé. Rio.
12. Nietzsche, F. Porque sou um destino, in: Ecce Homo.
13. VII Colóquio Internacional de Royamont Nietzsche) in: Escobar, Carlos H., org, Por que Nietzsche?, Achiamé, Rio.
capturado em: cooperação.sem.mando

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