Novos estudos de Giorgio Agamben remetem a uma "arqueologia da glória", dedicada à história dos aspectos cerimoniais do poder e do direito. Para filósofo italiano, esfera da glória e da lituirgia não desaparece nas democracias modernas, mas desloca-se para novos terrenos como a mídia. "A democracia contemporânea é uma democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pela mídia além do que se possa imaginar", escreve Agamben.
Redação
Com O reino e a glória, a investigação sobre a genealogia do poder iniciada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben há treze anos com a obra Homo sacer chega a uma encruzilhada decisiva. Em seus novos estudos, Agamben desvenda qual é a relação que liga tão intimamente o poder à glória e a todo o aparato cerimonial e litúrgico que o acompanha desde o início. Revela que, nos primeiros séculos da história da Igreja, a doutrina da Trindade (o Pai, o Filho e o Espírito Santo) é introduzida sob a forma de uma "economia" da vida divina, como um problema de gestão e de governo da "casa" celeste e do mundo, aparecendo inesperadamente na origem de muitas categorias fundamentais da política moderna, desde a teoria democrática da divisão dos poderes até a doutrina estratégica dos "efeitos colaterais", desde a "mão invisível" do liberalismo smithiano até as ideias de ordem e segurança.
As investigações de O reino e a glória remetem a uma ciência dedicada à história dos aspectos cerimoniais do poder e do direito, uma espécie de arqueologia política da liturgia e do protocolo, que poderia ser chamada provisoriamente de "arqueologia da glória". Tais estudos situam-se no rastro das pesquisas de Michael Foucault sobre a genealogia da governabilidade e alcançam os primeiros séculos da teologia cristã, em que a doutrina trinitária serve como forma mais clara de revelar o funcionamento e a articulação da máquina governamental. Por meio de uma fascinante análise das aclamações litúrgicas e dos símbolos cerimoniais do poder, do trono à coroa, da púrpura ao feixe de varas carregado pelos litores (que se tornou símbolo do fascismo), Agamben constrói uma genealogia inédita que mostra como elementos considerados resíduos do passado continuam constituindo a base do poder ocidental.
É nesse percurso intelectual que o filósofo italiano identifica um importante paralelo entre as aclamações (gestos coletivos de louvor ou desaprovação) e a chamada "opinião pública", e vai além com a constatação de que a esfera da glória não desaparece nas democracias modernas, mas desloca-se para novos terrenos, como a mídia.
"A democracia contemporânea é uma democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pela mídia além do que se possa imaginar (que o termo grego para glória - doxa - seja o mesmo que designa hoje a opinião pública é, desse ponto de vista, mais que mera coincidência)."
E, como reforça o autor, é a partir disso que o problema hoje tão debatido da função política da mídia assume novos significados e nova urgência.
Com tradução de Selvino J. Assmann, O reino e a glória integra a coleção Estado de Sítio, da Boitempo, coordenada por Paulo Arantes.
Trecho do livro
Contudo, mais do que registrar tais correspondências, interessa-nos compreender sua função. De que maneira a liturgia "faz" o poder? E se a máquina governamental é dupla (Reino e Governo), que função a glória desempenha nela? Para os sociólogos e os antropólogos sempre é possível recorrer à magia, à esfera que, confinando com a racionalidade e precedendo-a imediatamente, permite explicar, em última análise, como um resquício mágico aquilo que não conseguimos compreender a respeito da sociedade em que vivemos.
Não acreditamos em um poder mágico das aclamações e da liturgia e estamos convencidos de que nem mesmo os teólogos e os imperadores tenham alguma vez acreditado nisso. Se a glória é tão importante na teologia, é porque permite manter juntas, na máquina governamental, trindade imanente e trindade econômica, o ser de Deus e sua práxis, o Reino e o Governo. Ao definir o Reino e a essência, ela determina também o sentido da economia e do Governo. Permite, portanto, soldar a fratura entre teologia e economia da qual a doutrina trinitária nunca conseguiu dar cabo completamente e que só na figura deslumbrante da glória parece encontrar uma possível conciliação.
Sobre o autor
Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie de Paris.
Mais recentemente ministrou aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra, influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre seus principais livros destacam-se Homo sacer (2005), Estado de exceção (2005), Profanações (2007) e O que resta de Auschwitz (2008), os três últimos pela Boitempo.
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