segunda-feira, 4 de abril de 2011

divulgação: hypomnemata 131

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 131, março de 2011
1. investimentos humanitários
Haiti, janeiro de 2010. Um terremoto de magnitude 7 abala o país destruindo a maioria de suas construções e deixando 300 mil mortos computados pela estatística.
Não houve um grande tsunami, mas a maioria das cidades do país, principalmente a capital, Porto Príncipe, transformou-se em um descampado repleto de escombros, feridos e restos de demolição. Hospitais, estradas, escolas e energia elétrica vieram abaixo. Não faltaram os interessados em investimentos humanitários e proselitismos para anunciar a construção de um Estado democrático regido por forças de paz, ONGs e composições político-diplomáticas.
A mídia internacional tentou comover o mundo fazendo da catástrofe um chamariz para promover o sonho de reerguimento de um país historicamente assolado por intervenções externas, pobreza e infindáveis ilegalidades.
A população do Haiti permanece em barracas de lona plástica em campos de abrigos improvisados, como refugiados em seu próprio território, convivendo com a cólera, os capacetes azuis das Nações Unidas e a violenta onda de extorsões imposta por milícias e especuladores imobiliários.
Japão, março de 2011. Terremotos e tsunamis avassaladores. Imagens do horror, intanstaneamente, circulam mundo afora. Nada se diz do Haiti, embora este permaneça como reserva de comoção a ser ativada, dependendo das circunstâncias. A alta tecnologia eletrônica de uma superpotência produz o arsenal de novas imagens com cobertura instantânea produzida pela própria população, compondo uma catástrofe rentável para forças humanitárias e o business de altos investimentos. A radiação se espalha pelo ar e o iodo 131 contamina os lençóis freáticos ,o mar e alimentos...
2. fantasmas
Em 30 de outubro de 1961, em Nova Zembla, uma ilha no oceano Ártico, a extinta URSS testou, sob pretexto de ausência de objetivo bélico, a maior bomba nuclear de que se tem notícia até hoje. Seus efeitos atingiram um raio de 1000 km. Durante a Guerra Fria, a disputa girava em torno da explicitação da potência destrutiva.
Em 1º de março de 1954, testou-se nos EUA umas das maiores bombas nucleares já produzidas até então. Os seus efeitos saíram do controle de seus programadores e contaminaram partes da Índia, Austrália, Europa, Japão, EUA e quase todas as ilhas da Oceania.
6 de agosto de 1945, final da II Guerra Mundial: o presidente estadunidense Harry S. Truman ordena o lançamento de uma bomba atômica sobre a província de Hiroshima, no Japão. Três dias depois é a vez do bombardeio na cidade de Nagasaki. Descobriu-se depois que a potência destrutiva de uma arma nuclear ultrapassava as expectativas das projeções simuladas pelos cálculos matemáticos. Os efeitos da bomba perduram até hoje nas memórias do corpo.
A destruição em Hiroshima e Nagasaki não marcou o fim desta tecnologia, mas o começo de uma série de testes nucleares em disputas político-econômicas e militares.
EUA, URSS, França, China, Reino Unido, Índia e Paquistão não se detiveram em mostrar ao mundo suas capacidades de aniquilamentos por meio da energia nuclear. É desconhecido, no entanto, quantos outros governos não fizeram, em segredo, uso de tal tecnologia, esperando, talvez, o momento oportuno para divulgá-lo.
A energia nuclear, publicamente, passou a ser utilizada de maneira ‘controlada’ e ‘pacífica’, ancorada na proliferação protocolar de convenções, tratados e acordos internacionais, para gerar energia, sob a lógica de menor gasto e maior potência.
Em 26 de abril de 1986, um acidente na usina nuclear em Chernobyl, na Ucrânia, deixou a cidade e seus arredores inabitáveis para os próximos séculos. O impacto do acidente teria sido 400 vezes maior do que a própria bomba de Hiroshima.
No Brasil, pequenos vazamentos são brevemente noticiados nas Usinas de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Entretanto, logo são dissipados.
O recente terremoto no Japão provocou um estupendo vazamento em suas usinas nucleares., que utilizam o chamado ‘sistema de segurança passivo’, à base de água, cuja função seria a de facilitar a contenção de acidentes como o de Chernobyl, à base de Grafite.
A questão não se restringe ao grau de segurança. A energia nuclear, desde que descobertas suas propriedades, foi desenvolvida como aparato militar, para destruição. O seu funcionamento , por conseguinte, não deve ser medido por uma simples lógica econômica utilitarista.
No Japão, os efeitos do tsunami, do terremoto e do acidente nuclear são avaliados quase que exclusivamente em seu âmbito econômico.
Alguns países estão em alerta sobre o acidente na usina porque sabem que a matéria no planeta, seja ela radioativa ou não, ignora a existência de fronteiras políticas. Mas por uma questão econômica estes mesmos países não descartam o uso desta energia nuclear, pois nela enxergam, acima de qualquer coisa, um negócio rentável.
O próprio Japão, tendo sentido na pele os efeitos de uma bomba nuclear, não dispensou o uso de tal recurso. Agora, o mundo se compadece dos silenciosos japoneses que se submetem a tal situação, sabendo que serão principalmente os pobres, os miseráveis e as crianças que sentirão mais cruelmente suas implicações.
Restos de pessoas perambulam mudos e obedientes, aguardando, talvez, um milagre redentor, enquanto são anunciados os gastos para a contenção do vazamento e da reconstrução do país...
3. césio 137. lixo, catadores e o brilho azul
1987, Goiânia, Brasil. Nos escombros de lixo do Instituto Goiano de Radioterapia, situado na região central da cidade — desde sua criação em 1971, durante a ditadura militar, até sua mudança de endereço, em 1985 —, salta aos olhos de dois catadores de lixo uma peça de chumbo.
Eles a desmontam em um ferro-velho próximo, localizado na Rua 57.
Descobrem dentro dela um pó de incrível brilho azul, esverdeado. Quase furta-cor. Apanham o pó e, encantados com o achado, levam-no para casa. Presenteiam parentes e o distribuem pela vizinhança maravilhada com o brilho nunca visto antes.
Em meio à miséria de suas vidas, acreditavam estar diante de uma pedra preciosa. Muitos a esfregavam na pele e no escuro admiravam o incrível brilho azul.
Era o pó do Césio 137...
Entre as quatro mortes imediatas, a de uma menina de 6 anos que, após brincar com o pó, o comeu.
Até hoje, ninguém consegue precisar o número de mortes decorrentes da exposição ao Césio 137 em Goiânia, ao levar em consideração seus efeitos cumulativos e alterações genéticas.
Apenas se sabe que, entre as pessoas envolvidas diretamente na época, 84 morreram.
Até hoje, ninguém consegue precisar os números de contaminados. Mas se sabe que a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEM) diz ter monitorado 12.800 pessoas.
Na época elas foram levadas ao Estádio Olímpico Pedro Ludovico para passarem por um processo de triagem e seleção. O estádio foi demolido 20 anos depois, e, em seu lugar, foi construído o Centro de Excelência do Esporte, ainda inacabado.
Hoje. Do lixo atômico aos lixeiros radioativos, da população selecionada num estádio esportivo e monitorada por uma agência nuclear, e das conexões com a vigilância sanitária ao centro de excelência, tudo permanece inacabado.
A limpeza “estatal” dos escombros do terreno do Instituto Radioterapia, do ferro velho e imediações produziu 13,4 toneladas de lixo radioativo. Para contê-lo foi criado um parque ecológico, seguindo protocolos prescritos pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) por meio do Centro de Monitoramento Ambiental (CEMAM) e do CNEM. O Parque Estadual Telma Ortega fica situado no município de Abadia de Goiás, onde se construiu uma montanha artificial sobre os containers em que foi depositado o lixo do césio 137.
Hoje. Do brilho do lixo atômico à montanha radioativa na reserva ecológica, tudo quase concluído.
Diante da desvalorização imobiliária da região central de Goiânia, investiu-se em um projeto de revitalização sobre o rastro do pó de césio 137. No terreno dos escombros do Instituto Radiológico foi erguido um Centro de Cultura e Convenções. Na rua 57 foi reinaugurado, em 2006, o Mercado Popular e, no ano seguinte, ele abrigou uma das edições da Casa Cor, para grã-finos e madames.
Em 2010, voltou à baila o debate processual sobre a restituição das vítimas, intermediadas por ONGs, num novo e interminável tribunal das compensações e restaurações inócuas.
Hoje. O pó atômico está no brilho revitalizado e ecológico do lixo radioativo.
4. no brasil
No Brasil, em 1972, o governo do general Garrastazu Médici — reconhecido como o período no qual mais se torturou homens e mulheres que resistiam à ditadura —, foi o responsável pela implementação das usinas nucleares.
Simultâneo ao incessante número de torturas, assassinatos e “desaparecimentos”, Médici fortalecia a propaganda dos militares diante da população ajustada e da resignada, anunciando não apenas a construção da usina nuclear de Angra do Reis, mas também de outras obras como a Ponte Rio-Niterói e a Transamazônica.
Três anos depois, outro general, Ernesto Geisel, selaria um acordo com a Alemanha para a importação de tecnologia visando erguer mais duas novas usinas.
Em 1980, um ano após o acidente ocorrido na usina de “Three Miles Island”, na Pensilvânia, Estados Unidos, os libertários do jornal O Inimigo do Rei manifestaram-se contra o investimento do governo ditatorial brasileiro e divulgaram o ato antienergia nuclear ocorrido na Praça da Sé, em São Paulo.
No final dos anos 1970, os militares brasileiros iniciaram um projeto nuclear sigiloso, o Projeto Aramar. Em 1987, em Iperó, Sorocaba, como parte desse Projeto da Marinha, implantou-se uma usina de enriquecimento do urânio com a finalidade de se pesquisar e produzir combustível para atividades de defesa.
Agora, mais de duas décadas de ocaso da ditadura, ao que tudo indica, segundo a aprovação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) em 2007, durante o governo Lula, a cidade de Angra dos Reis ganhará uma nova usina nuclear. Em Iperó, está sendo construída outra usina de enriquecimento de urânio pela Marinha, a ser concluída em 2014, para produção de combustível para um submarino nuclear a ser ainda desenvolvido.
Quimera implantada durante a ditadura, a energia nuclear segue adotada no Brasil ainda hoje. Liberar-se da ditadura implica, também, liberarmo-nos dessa forma de produção de energia, de mais um rescaldo macilento da história recente desse país.
2011. terra
A Terra permanece viva em seu magma, em seus interiores de placas, com terremotos e vulcões.
A ciência sabe que outros terremotos acontecerão e onde, mas, precariamente, sonha demarcar o quando.
Os vulcões entram em erupção. Muitas vezes, sinalizam antes, outras derramam sobre a crosta a beleza, a crueldade e a vida que se produzirá sobre o solo.
A Terra é azul vista lá de cima.
Uma crosta branca, marrom e com muito verde para quem anda sobre ela.
Matéria pastosa incandescente interior, surpreendente.
A Terra é como nós, pequenos seres indiscerníveis do espaço aéreo,
serpentes que escorrem pelas cidades e pelos campos,
pontos pouco identificáveis em nossas subversões latentes ou manifestas.
Terra e gente são tão parecidas! Mas uma parte desta gente, há milênios, insiste em dominar a natureza e outras gentes.
Os humanitaristas se comovem com a civilidade dos japoneses ao esperar pacientemente por um pouco de água, alimento e vestimenta.
Os asiáticos, milenarmente, foram educados para obedecer e a amar o soberano, a morrer por ele, a sofrer na carne os efeitos da guerra e acatar as decisões dos superiores.
Os humanitaristas se incomodam com a selvageria dos haitianos.
Essa gente enfrentou o colonizador, guerreou e foi sucessivamente massacrada em sua vontade de luta.
Restou-lhe o desespero famélico em sua miséria cultural.
Não se trata de civilização versus anarquia como a alocução dos democratas de plantão, louvando o neoliberalismo.
São gentes miseráveis em suas obediências e fomes, pegas por terremotos, tsunamis, destroços e ajudas humanitárias.
A Terra treme e o ar está tomado de vestígios nucleares que caem sobre o solo, sobre as águas, os bichos, plantações e toda a gente.
Aos técnicos que defendem a energia nuclear pacífica fica o travo da ciência que constrói criações de guerra e se prolonga como energia lucrativa.
A Terra está viva, portanto espanta!
capturado em: http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=157

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