quinta-feira, 31 de março de 2011

divulgação: DOSSIER DELEUZE - UM DIA O SÉCULO SERÁ DELEUZIANO

já tem algum tempo que prometo aos parceiros de discussão, que estão cobrando, a postagem do material do pelbart e relacionado a deleuze... então aí vai os dois últimos textos do dossier deleuze e depois vou postando os demais!
DOSSIER DELEUZE - Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
Por Murilo Mendes e Léa M. Guimarães*
A frase de Michel Foucault sobre Gilles Deleuze - «Um dia o século será deleuziano» - referiu-se em elogio a dois de seus grandes livros, Lógica do sentido e Diferença e Repetição, e tornou-se subitamente repetida nos círculos de estudos nietzschianos. Contudo esta frase nada tem a ver com uma esperança revolucionária, ou mesmo com uma transformação do mundo; é apenas uma expressão de surpresa e de incitamento numa tentativa de suscitar o ressurgimento de um ato de pensar, que Deleuze inaugura em nossa atualidade. Aos admiradores de Deleuze e de Foucault, esta frase os faz rir, como uma brincadeira carinhosa de Foucault; no entanto, para aqueles que preservam a tradição clássica do saber filosófico e procuram, incansavelmente, o significado verdadeiro nas palavras, esse dito é repudiado como algo de terrível e ameaçador. De fato, o que acontece com os escritos de Gilles Deleuze é uma mudança de perspectiva na leitura dos grandes filósofos do passado, produzindo novas e diferentes visões em relação à História da Filosofia, analisando filosoficamente as artes plásticas, o cinema e a literatura, criando um pensamento próprio, fora do sistema estabelecido, e trabalhando em conjunto com outras áreas do conhecimento. Quando Deleuze trabalha com os pensadores já consagrados pela História da Filosofia, ele não se restringe a mais uma interpretação de determinado sistema de pensamento; ele produz junto com cada autor, mergulha na leitura dos textos originais, utilizando-os para nos apresentar perspectivas outras de produção do pensamento, em termos de um funcionar de nossa própria realidade. Sua preocupação se volta muito mais para temas, funções e operacionalida-des do que para a busca de verdades significativas; enfim, são práti cas do pensar que realmente podem fazer funcionar o nosso cotidiano.
Em seu ensaio sobre David Hume, Deleuze ultrapassa a categoria do empirismo tradicional e, indo além, expõe os problemas reais das fixações subjetivas que concernem à natureza humana enquanto tal. No estudo de Kant, Deleuze nos traz as chaves para entender a «grande crítica», abrindo caminhos para entendimentos diferenciais desta filosofia-base do pensamento contemporâneo. Em seus trabalhos sobre Nietzsche, num primeiro momento, são analisadas todas as cristalizações da filosofia tradicional, em termos de um pensamento criativo e transformador; Deleuze pensa, concomitan-temente, no mesmo agenciar com Nietzsche, aliando-se a ele em todos os pontos; num segundo momento, Deleuze apresenta a vida e as obras de Nietzsche, comentando e trazendo extratos importantes dos seus textos. O estudo sobre Henri Bergson é o encontro com a intuição - fundamento do método bergsoniano - é a inovação na teoria do tempo: memória nas multiplicidades através da durée e do «élan vital»; Deleuze toma para si a posição de Bergson, e nunca deixará de usá-la no seu próprio pensamento. Os dois trabalhos sobre Espinoza são ainda mais vigorosos; neles Gilles Deleuze modifica completamente a perspectiva da História da Filosofia sobre o espinozis-mo, colocando-o não mais como racionalista e, muito menos, como cartesiano. Além de mudar a posição de Espinoza no contexto da história do pensamento clássico, Deleuze reatualiza a ética espinozis-ta, colocando-a nas práticas de vida do nosso próprio mundo. Finalmente, de seus escritos sobre Michel Foucault pouco poderíamos dizer, uma vez que ambos eram amigos, trabalhavam na mesma linha filosófica e quase perseguiam as mesmas questões. Deleuze, inclusive, afirma que a única diferença entre ele e Foucault é a preocupação deste com o «poder», enquanto ele se preocupa com o «desejo». Contudo é preciso ressaltar que o livro sobre Foucault é muito mais a produção do pensamento de Deleuze que uma análise das propostas foucaultianas - o próprio Foucault, na expressão carinhosa «um dia o século será deleuziano», demonstrava a satisfação frente à esperteza de um pensador criativo e produtor de realidades. Em outra série de escritos, concernente às manifestações artísticas, Deleuze utiliza a literatura, o cinema e as artes plásticas de um modo diferencial, sem as implicações da estética socrática, ou o jogo bem-belo, e sem as classificações tradicionais das artes: ele analisa os campos das expressões artísticas num co-funcionamento ao ato de pensar, revolucionando as categorias estéticas clássicas; sai dos lugares da «arte pela arte», do relacionamento do belo ao bem e ao verdadeiro, do distanciamento da representação artística do viver etc. Ele não separa os campos da expressão artística em modelos estan-dardizados. Para Gilles Deleuze, a arte não está fora de nenhuma outra produção do conhecimento humano; ele faz renascer a perspectiva nietzschiana de uma real e única relação intrínseca entre a arte, o conhecimento e a vida. Por outro lado, além dos trabalhos escritos unicamente por Deleuze, existem os trabalhos em conjunto ou em colaboração com outros autores. No trabalho com Claire Parnet encontramos as explicações necessárias sobre a maior parte das questões deleuzianas; as colocações de Parnet sobre o pensamento de Deleuze nos são bastante esclarecedoras. O estudo sobre «capitalismo e esquizofrenia», realizado juntamente com Félix Guattari, apresenta uma complexidade bem maior, consistindo na união de duas forças de nosso tempo: a filosofia e a psicanálise; por debaixo dessa união está o encontro de todas as ciências humanas, sendo revolucionadas a todo instante, numa proposta tão diferente que, provavelmente, ainda passará muito tempo até que nos apercebamos desse acontecimento. Gostaríamos ainda de falar das duas grandes obras que fariam com que «um dia o século será deleuziano»: Lógica do sentido e Diferença e Repetição. São dois livros complexos e de difícil entendimento, exigindo do leitor um estudo profundo de toda a filosofia ocidental. Ali encontramos um genuíno pensamento criativo, acentuando uma posição completamente fora de qualquer tipo de mediação, hegelianaou dialética, em favor das multiplicidades, paradoxos, diferenciações e aspectos fragmentados do existir, mas que encontram uma unidade fundamental no ato de pensar. Apesar de serem livros de filosofia, eles podem ser pesquisados por qualquer outro campo das ciências. Na realidade, para estudá-los, precisaríamos, como detetives, investigar concretamente a variedade de temas complexos e problemáticos que lá se encontram. Não acharemos nenhum conceito universal-abstrato ou norteador: ou entramos na trama da elaboração criativa do pensamento ou não conseguiremos trabalhar com Gilles Deleuze. Nessas duas obras fundamentais subjazem os acompanhamentos de uma espécie de linha marginal ao conhecimento aceito e estabelecido da tradicional História da Filosofia; Deleuze valoriza um caminhar labiríntico, que vem desde a Antigüidade, com Heráclito, Parmênides, a Escola do Pórtico ou os estóicos, Epicuro e Lucrécio, atravessando depois a Idade Média com Duns Scotus e os aristotélicos árabes, e chegando à Idade Moderna e à Contemporânea com Hume, Espinoza, Kant, Nietzsche, Bergson e, recentemente, Leibniz. A todo tempo, na leitura dessas grandes obras, o que transparece nos revolucionamentos deleuzianos é a inspiração nietzschiana, propondo novos caminhos para a expressão filosófica. Além disso, há uma interdisciplinaridade abrangendo os mais variados campos das ciências, o que nos exige muitas vezes o apoio de conhecimentos da física, da química, da psicanálise etc, para entrarmos na diversidade constante dos elementos que compõem a montagem da reflexão deleuziana. Não podemos estudar Gilles Deleuze e esperar que ele nos ensine algo: ou produzimos junto com o cabedal que ele nos proporciona ou então o século jamais será deleuziano. Agora, o pensar não funciona mais em termos de produzir verdades, investir nas essências de coisas-em-si, moldando homens sérios, amargos e tristes - modo como a filosofia colocava as questões da vida, dominada pelo primado de um saber superior, extraído das contradições de modelos imperativos: o ranço da Academia encimada pela noção maior de Deus, que manteve, ao longo destes vinte séculos, a fecundação dos conceitos transcendentais e superiores à vida. Desde a sacralização medieval de Platão e Aristóteles, vivemos numa produção metafísica, investigadora da essência em-si, como se ela trouxesse a verdade modelar do mundo. E trabalhar com a metafísica impõe uma iniciação ascética, uma sistematização da vida e a transformação do livre pensar em uma questão de caráter religioso. Com os filósofos tradicionais, costumávamos procurar a Verdade que nos conduzisse a um conhecimento superior. Gilles Deleuze mostrou-nos que nada há para aprendermos como um conhecimento em si mesmo, superior e verdadeiro, e apontou-nos o caminho do pensamento de Nietzsche; junto com eles, podemos dizer que não precisamos buscar absolutamente nada superior ou fora de nós mesmos, pois já somos, essencialmente, tudo aquilo que poderíamos ser.
Alguns pensadores têm o poder de contagiar. Gilles Deleuze nos contagia; mas não para adquirirmos um sistema de pensamento modelar ou para construirmos uma arquitetura de sistemas ideológicos, como ocorreu na História da Filosofia. Deleuze nos transmite que o ato de pensar não consiste em fazer uma seleção entre o falso e o verdadeiro, e muito menos entre o certo e o errado; mais do que isso, é necessário pensar a abundância do impalpável, contagiar-se, e fundar uma filosofia de fantasmas que nada tem a ver com a percepção da imagem: a filosofia inventa conceitos. Trata-se então de pensar a vida como puro acontecimento, acaso ou devir - tudo devêm. Mas a filosofia sempre pensou a vida como problema sujeito a soluções. Presa em questões problemáticas, a vida gravita, torna-se pesada e tenta conseguir a liberdade desses grilhões abstratos: inventou-se a metafísica buscando soluções para elevar as questões humanas em direção a um ponto superior, engendrado nos domínios de fé e norteador dos pecadores. Liberar as questões vitais da atmosfera metafísica-superior e anular o conseqüente esmagamento do Homem como expansão de vida físico-real é agenciar-se com múltiplas atmosferas ou com múltiplos mundos. Nas séries de acontecimentos, afirmamos as combinações sem o vírus dos opostos petrificados, das entidades enquistadas, da crença asfixiante, das verdades transcendentais ou das multidões infelizes e alienadas. Somos como águas que fluem, penetrando até mesmo nas rochas as mais endurecidas, desde que as condições determinantes ocorram; e nelas afirmamo-nos com alegria: afirmamos os acasos imprevisíveis e vivemos conforme a necessidade - sem faltas nem culpas, sem buscar objetivos finalistas de metas exteriores a nós mesmos. A metafísica, definida por um sistema de saber, implica caminhar sempre para determinados fins ou objetivos. O alvo é sempre a busca da essência em-si: a verdade. Isto consiste em conceber a vida como uma igualdade de acontecimentos, esquecendo a raridade e a diversidade. Sair da dominação metafísica é entrar no indefinido, na união de multiplicidades; expressar o acontecimento, ou mesmo dizê-lo, é apontar para a multiplicidade e inventar, produzindo conceitos - e isso é filosofar, segundo Deleuze: evitar o conceito interiorizado da essência em-si do universo abstrato maior. Para Gilles Deleuze a filosofia não tem a obrigação de buscar os modelos em-si, mas tem a função de inventar e produzir conceitos, onde arte, filosofia e vida afirmam-se num mesmo mundo como expressão vital. Algum dia, sendo o «século deleuziano», a filosofia tornar-se-á uma forma de pensar a vida, expressando-a conceitualmente. Esta proposta não é uma esperança redentora ou salvadora: nada esperamos; agimos segundo as determinações do acontecimento presente. Conceitualizar filosoficamente implica marcar a vida com muita força, afirmá-la nos seus acasos súbitos de modo muito alegre e sensível, instrumentalizar e fazer funcionar as práticas vitais. E não mais perguntar pelo «sentido da vida» ou « o que a vida é», e sim perguntar «quem é» ou «como isso funciona» - produção contínua de singularidades em meio à diversidade dos agenciamentos ou relações de acontecimentos. O século deleuziano não comportará a gravidade triste da esperança metafísica que amesquinha o ato de viver, mas produzirá ou criará pensamentos para tornar a vida possível naquilo que pode advir com alegria, afirmação, surpresa e admiração do próprio ato de viver... e que haja força para tanto!
* Professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
capturado em: cooperação.sem.mando

Nenhum comentário:

Postar um comentário