terça-feira, 15 de março de 2011

divulgação: hypomnemata 130


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 130, fevereiro de 2011.
os outros
Após a II Guerra Mundial, a Europa ocidental começou a ser reconstruída com o aporte estadunidense de bilhões de dólares, subsidiado pelo Plano Marshall, que bancou a retomada do capitalismo europeu e deu crédito para a implantação do Estado de bem-estar social. Nessa época, milhares de africanos e asiáticos, vindos principalmente das colônias francesas e inglesas, foram absorvidos como mão-de-obra para a indústria pesada, para a construção civil e para os serviços insalubres e perigosos (minas, siderurgia, limpeza pública, etc.). Uma vez em Paris, Londres ou Marselha, constituíram seus little india, little china ou petit senegal, bairros étnicos que cresceram nas periferias e na chamadas zonas degradadas.
Nas duas décadas seguintes a economia europeia se recuperou, o welfare state alcançou seu auge, e esses imigrantes ali permaneceram. Quarenta anos depois, o capitalismo europeu tornou-se informatizado, especializado em produtos e serviços de alta tecnologia; parte das indústrias se mudou para cantos menos regulamentados do planeta, que dispunham de braços mais baratos; na Europa, o Estado de bem-estar social soçobrou diante das reformas neoliberais, mas o projeto de integração econômica iniciado também no pós-II Guerra seguiu adiante, permitindo que a União Europeia, formada em 1992, pudesse disputar com os EUA o posto de maior economia do mundo.
Nessa Europa, os filhos europeus dos imigrantes do pós-II Guerra formam a parte mais significativa dos contingentes de desempregados, são os alvos preferenciais da polícia e protagonizam efêmeras e recorrentes ondas de protestos violentos, vandalizando seus próprios bairros. Mesmo que nascidos na França, Itália, Inglaterra ou Alemanha, negros, asiáticos, turcos e árabes são vistos pela Europa branca como os outros ameaçadores: depois do 11 de setembro de 2001, passaram a ser controlados como terroristas em potencial e, tanto para cristãos reacionários quanto para os que se arvoram herdeiros da laicidade iluminista, ameaçam islamizar o continente. A cidadania formal dessas pessoas – suas carteiras de identidade europeias – é pouco diante do fato político de que são negros, asiáticos, turcos e árabes.
Não são apenas sans papier.
Presos em seus deslocamentos ou confinados em bairros étnicos ou zonas separadas dos grandes centros, imigrantes muçulmanos prescindem de seus Estados nacionais para sua organização em torno da ummah. Diante da união de Estados europeus, o islã apresenta sua dimensão transterritorial, que ainda se constitui sob a sombra dos califados. Contidos em seus Estados ou empurrados para as periferias das cidades europeias, muçulmanos permanecem, aqui e ali, alvos preferenciais das políticas de controle e monitoramentos.
outros mais
Os fluxos de africanos, asiáticos e mesmo latino-americanos, não param de chegar às fronteiras europeias. São milhares de pessoas que fogem das guerras civis, miséria e epidemias cotidianas em seus países. São milhares que buscam emprego no que veem como capitalismo europeu. Máfias se especializam em traficar pessoas e a economia dos ilegalismos se potencializa com esse novo negócio que envolve policiais, autoridades alfandegárias, atravessadores, empresários lícitos e ilícitos.
Depois de conseguir entrar na Europa, pela Itália, Espanha ou qualquer outro limite, os imigrantes ilegais vão trabalhar em confecções, fábricas, lojas, residências, puteiros: trabalho extenuante e mal pago. Quem quer sair do esquema tem dificuldade, pois são endividados, chantageados, ameaçados. E de forma complementar ao capitalismo dinâmico da União Europeia, funciona essa outra economia, a multiplicar lucratividades e ilegalismos.
Enquanto isso, a presença de novos e velhos pardos, negros e amarelos, atiça os fascismos que viviam, desde a II Guerra, em fogo brando: crescem os casos de violência contra imigrantes, os discursos racistas ganham difusão, leis contra práticas religiosas associadas, principalmente, as de não-europeus são aprovadas (como a proibição do uso de véu por meninas muçulmanas em escolas públicas na França, ou o impedimento de que se construam minaretes em mesquitas na Suíça e Bélgica), no interior de um jogo protocolar entre tolerância e intolerância.
À medida que aumenta a pressão dos não-europeus sobre a União Europeia, mais dispositivos de segurança são criados, como a Diretiva de Retorno, promulgada pelo parlamento europeu em 2008, que dispõe sobre a prisão preventiva e o regresso daqueles identificados sob a condição de “situação irregular”, a polícia de fronteira europeia (Frontex) e uma rede de campos de concentração destinados a prender os imigrantes ilegais até que sejam expulsos de volta a seus países.
Não são apenas sans papier.
gente, lugares
Tenerife, Ilhas Canárias, Espanha. Da central da polícia de imigração, dezenas de embarcações precárias, como balsas e barcos de pesca, são localizados e interceptados todos os meses. Neles, pessoas tentam chegar à Espanha, vindos da costa ocidental da África. O esquema, conduzido por traficantes de gente, faz com que muitos consigam. Outros, no entanto, não alcançam a terra, pegos pela polícia antes disso, ou mortos no mar, náufragos e desidratados após dias à deriva.
Enclave espanhol de Ceuta, Marrocos. Em 2010, o governo espanhol concluiu as obras dos 8 quilômetros de cercas e muros que isolam o território dominado há séculos pela Espanha. A intenção é bloquear totalmente as levas de jovens marroquinos que tentam entrar em Ceuta. Ainda assim, muitos continuam tentando, com escadas temerariamente longas e improvisadas, com as quais tentam ultrapassar a muralha de aço e concreto. Por esse caminho, hoje, poucos conseguem passar. A maioria é presa ou capturada gravemente ferida pelas concertinas ou pela ação da polícia.
Ilha de Lampedusa, Itália. Desde 2004, funciona nessa ilha italiana, a meio caminho entre a África e a Sicília, um campo de acolhimento para imigrantes ilegais, eufemismo para um campo de concentração voltado à prisão de pessoas que buscam entrar, ilegalmente, na Itália. Em 2009, o governo da Itália anunciou que Lampedusa seria oficialmente transformada em uma colônia penal para imigrantes, decisão que inspirou a União Europeia a pensar na distribuição de centros como esse por toda fronteira do bloco, a fim de evitar deslocamentos de imigrantes clandestinos, tornando cada posto de captura uma central para interrogar e analisar os casos de asilo, o que facilitaria a identificação das rotas clandestinas e propiciaria a evacuação imediata dos indesejáveis, além de controlar possíveis fugas. Em fevereiro de 2011, Lampedusa ganhou as manchetes de jornal ao concentrar o apresamento de milhares de tunisianos que fugiam da convulsão política que tomara seu país.
muitos outros, diariamente
Pouco se falava da Tunísia. A ex-colônia francesa não vinha sendo vinculada a nenhuma grave crise humanitária ou de segurança. A ditadura de Ben Ali, desde 1988, mantinha contato próximo com a ex-metrópole e com os Estados Unidos. No entanto, no final de dezembro do ano passado, o rapaz Mohamed Bouazizi imolou-se protestando contra a apreensão, por uma fiscal do governo, do carrinho de ambulante com o qual trabalhava. No país, a morte de Bouazizi ganhou repercussão, desencadeando protestos em várias cidades que mobilizaram diversos setores da sociedade. Boa parte dos jovens reclamava do desemprego, da falta de expectativas econômicas. A convulsão política no país fez com que aumentasse o número de tunisianos tentando fugir para a Itália, a principal via de acesso à Europa. Começou-se a falar da Tunísia.
Essa “onda” de imigrantes se tornou notícia por ser associada à crise política tunisiana. Os jovens capturados na tentativa de travessia e presos em Lampedusa ganharam, na mídia internacional, ares de “refugiados políticos”. No entanto, o fluxo dessas pessoas, que buscam escapar dos seus países de origem pensando numa vida próspera na Europa, não é episódico, nem é uma exceção vinculada a uma crise especial. Todos os dias eles tentam furar as cercas físicas e eletrônicas que procuram proteger a Europa.
Isso também acontece diante do muro construído pelo governo estadunidense na fronteira do México. Isso se repete com a lucratividade das máfias controlando os fugitivos em busca da felicidade capitalista ou democrática. Isso fortalece os controles de população em uma era que se diz globalizada, democrática e livre. Isso mantém trabalhadores em regimes de cárceres, como na China, saudada como próspero governo por qualquer Estado capitalista. Isso é capitalismo, com democracia ou não: confinamento de indesejáveis, na prisão, nos hospícios, nos campos de concentração, nos guetos, nas periferias... e da força dos produtivos nas fábricas, nas empresas... nas suas próprias casas...

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