Não relatarei toda a história que me levou a essas falações aqui, mas darei um resumo. Hoje, tentando inserir uma certa profissional do SUS no trabalho num grupo multiprofissional que atende e acompanha o caso de um menino portador de uma síndrome, tive dificuldades na conversação, pois como a mesma não fala a língua do SUS, foi mal! Primeiro que ela entendeu que estávamos “encaminhando” o menino para ela dizer se ele necessitava ou não de uma determinada avaliação! Não era isso! Necessitávamos de uma avaliação profunda no seu campo de atuação, para nos auxiliar na produção do plano terapêutico do menino! Segundo, ela, sentada sobre o seu “profundo” e absoluto saber, não dava tempo para que eu falasse... ela já tinha as coisas prontas a dizer! Terceiro, tudo o que eu tentava conversar, ela não entendia! Quarto: desisti e saí pensando porque é que eu ainda tentei, mesmo sabendo que a pessoa está num nível tão alto, mas tão alto pra baixo do chão, que eu teria que passar a vida construindo andaimes e ainda assim não a alcançaria! Quinto: outra colega tentou conversar com ela, pra ver se conseguia produzir um mínimo de diálogo –principalemnte porque ela é a única “profissional” dessa especialidade, atuando na rede-, e ela cortou a coisa dizendo que não entendia o que estávamos querendo fazer e que parecia que eu nem tinha estudado! Mas antes, quando eu disse que, por não contarmos com trabalho especializado na atenção a esses casos não tão comuns, necessitaríamos de uma avaliação mais global da situação do menino, visto que ele apresenta uma série de dificuldades não estritas à síndrome, para podermos embasar o plano de atendimento e a atuação dos profissionais que carecem dessas informações, a distinta colega retrucou: “ah, mas aí é uma questão de competência!”.
Pensei: mas sou boba mesmo! Sou uma burra, uma asna, uma anta, um rinoceronte bem pesado e lerdo! Só para ficar ofendendo os pobres dos bichos que virão nos cobrar respeito por conta disso! Fico aqui pensando em humanização no campo da saúde e nem aprendi a atender as pessoas sem olhar pra elas... ao contrário, tenho que olhar muito, mas muito mesmo e tanto, que às vezes olho mais um pouco... que coisa! Não consegui sequer desenvolver a capacidade de fazer isso!
Não aprendi a atender os usuários com a porta aberta para que todos os outros usuários ouçam tudo sobre a vida de todos... insisto em atendê-los de porta fechada... e ainda, às vezes, penso que devemos produzir trabalhos grupais e abertos na comunidade, mas me pergunto: como fazer isso se nem aprendi a atender de porta aberta!
Não aprendi a usar siglas e abreviações que codificam as pessoas sem que elas possam traduzir os seus próprios estados... não aprendi a me apropriar desse saber absoluto que só é perpetuado pelos grandes sabidos! É claro, eu não sou uma sabida! BA! Nem acredito em patologias feitas pra emoldurar gente!
Não aprendi a atender os usuários em menos de cinco minutos... sou muito lerda mesmo e necessito de muito mais tempo... acho que nem é o usuário que necessita de tempo pra falar, mas sou eu que demoro muito pra pegar a coisa... assim, como sou nomeada para trabalhar 40hs, acabo demorando o dia todo para dar conta do trabalho... na minha lerdeza técnica e profissional, não poderia, por exemplo, reduzir uma carga horária de 20 hs, para uma hora semanal, pois só alguém muito sabido consegue fazer em uma hora ou um pouquito mais, o que eu demoraria 20 horas para fazer! Alguém assim, tão sabido, merece mesmo ganhar muito mais do que eu! Eu, na verdade, até deveria abrir mão do meu salário, pois demoro 40 horas na semana para fazer o trabalho de 40 horas semanais... não sou sabida o suficiente para transformar isso em bem menos!
Não aprendi a pensar que devemos medicamentalizar a vida dos usuários! Fico pensando que podem produzir autonomia!
Estou apavorada, pois não aprendi tanta coisa que essa colega sabe fazer tão bem, de forma tão rápida, tão desprendida e tão sabida!
Não aprendi a trabalhar solita... fico querendo trabalhar com clínica ampliada, com grupo multiprofissional, com participação do usuário, com humanização, com a produção de pelo menos as condições mínimas do ideário do SUS... fico querendo construir plano terapêutico e de atendimento... fico achando que o usuário é gente e não ficha... fico pensando tanta bobagem! Tudo o que estudei e estudo só serve para me ensinar bobagens e eu não consigo me transformar numa sabida!
Vejo que não aprendi tanta coisa e, humildemente, estou pensando em fazer escola com essa colega! Alguém tão sabida pode me ensinar a ser um poste de cerca! Agora dei pra ter esses devaneios: de também ser um sabido poste de cerca... fino, alto, parado, ereto, quieto, absoluto, segurando os arames da mangueira, do potreiro e das divisas entre o que fica do lado de fora e do lado de dentro! Meu ideal, agora, é ser um distinto poste de cerca!
Ah! para completar: me retirei da magnífica presença da sabida colega, sem dizer que exatamente por uma questão de “competência” já nem “encaminhamos” mais os casos não tão comuns, para que ela possa “avaliar”... e muito menos aqueles que demandam atendimento multiprofissional (trabalho multiprofissional ela chama de “trabalho paralelo de vocês”!) Primeiro, que ela não conversa com os demais trabalhadores; segundo, que ela fala outra língua e não sabe nem o que é compartilhar um atendimento (acha que compartilhar seja atender de porta aberta); terceiro, que ela não trabalha com gente; quarto, que seu olhar é cego, apertado, borrado, limitado e outros quetais... é sabida demais para trabalhar no SUS... coisas de competências! Nós pouco sabidos ou não sabidos é que temos que nos esbofar pra dar conta de coisas mínimas! A vida humana acho que é mesmo uma coisa feita pra dar ocupação para os não sabidos, para que os sabidos possam se ocupar com outras coisas mais importantes!
Eu, por minha vez, estou com síndrome de burrice! Depois dessa observação sobre a minha falta de sabedoria, corri para casa estudar um pouco. Peguei os manuais de termos complexos dos grandes compêndios que reúnem grandes, sólidos e inacessíveis saberes ocultos! Peguei os manuais com siglas e códigos feitos para emoldurar gentes e estou tentando ficar sabida! Não sei se ainda terei tempo na vida pra ficar sabida, mas estou tentando!
Em tempo: estou pensando em doar minha rica e vasta biblioteca para a colega sabida, pois penso que ela aproveitaria muito melhor os livros... vê-se que pra mim de pouco serviram, pois com o tanto que estudo e estudo, ainda fico parecendo alguém que nem estudou!
Amei, como sempre, sou fã desse seu lado de escrivinhadeira, como vc se define.
ResponderExcluirVC descreve muito bem a rotina enfrentada por pessoas que nescessitam atendimento destes detentores da "sabedoria", que esqueceram desta tal, lá nos tempos da Universidade
e agora que são "profissionais", pouca diferença fazem nestes espaços q deveriam ser de profissionalismo,respeito responsabilidade, enfim tudo que supoem -se ser de acordo com suas escolhas profissionais,pois trabalhar com gente indispensável ser muito gente, e se não são como ter a acrescentar?
Ou continuariam orelhas secas?!?!
Ironia da mais fina, Diello! Coisa de quem ve o mundo as avessas, como tu sempre diz.
ResponderExcluirbá, elaine! essa coisa de olhar no horizonte e dizer que sentimos ciscos nos olhos é algo que dá trabalho! e vc sabe bem disso! já viu olhos serem arrancados, para não terem que tirar os ciscos!
ResponderExcluirmas, com a perspectiva da inclusão, não me asusto com a possibilidade de me arrancarem os olhos... enfim, os ciscos, agora, estão tão grandes que se os olhos forem arrancados, eles aparecerão muito mais!
e cláudia: o mundo do avesso nos mostra suas tripas! por isso gosto da fina ironia... corta as tripas e faz saltar a merda!
grande abraço para as duas!