sexta-feira, 5 de novembro de 2010

DIVULGAÇÃO: FOUCAULT E A TEORIA QUEER

FOUCAULT E A TEORIA QUEER
Autor: Tamsim Spargo
Tradução: Vladimir Freire
SEXO É IMPORTANTE
Recentemente, há muita coisa queer acontecendo nas universidades. Barbie, Shakespeare e mesmo Jane Austen receberam uma releitura queer. Nas ruas, vê-se Bart Simpson exibindo um triângulo cor-de-rosa, e a palavra “queer”, antes lançada ou sussurrada como insulto, é agora orgulhosamente reivindicada como marca de transgressão por pessoas que se autodenominavam lésbicas ou gays. O que isso quer dizer?
Há alguns anos, o diretor do Channel 4 foi descrito como o “chefe da pornografia” por causa do notável conteúdo sexual de sua programação, e a internet e os canais pornográficos a cabo foram vistos como ameaças capazes de penetrar as defesas da nossa ilha de inocência. Agora, ao que parece, todos estão nessa, ou pelo menos falando disso. Assistimos a documentários e dramas sobre a prostituição, a divisão de
costumes da polícia, os hábitos sexuais de todo tipo de animal existente. Se um programa tem apresentadores, há boas chances de eles falarem sobre aquilo. E se você não quiser fazer aquilo, é melhor ficar calado (o celibato deixou de ser sensual) ou tentar o sexo tântrico. Essa parece ser a última de Madonna, e ela sabe das coisas.
Na política, a velha equação de poder e sexo ainda parece triunfar sobre princípios e posturas. Embora políticos gays ainda sejam “outed”1 , ser gay já não é mais, aparentemente, tão problemático quanto já foi para aqueles com ambição de poder. A imprensa tem repetidamente noticiado um crescente clima de “tolerância”; o tablóide The Sun, por exemplo, anunciou o fim de editoriais antigay. Embora as personagens gays e lésbicas de seriados de televisão sejam geralmente muito respeitáveis, o estilo camp2 ornamentado de Julian Clary e o travestismo de Eddie Izzard contribuíram para o seu sucesso. Parece que estamos numa sociedade bem mais aberta, mais tolerante, mais sensual – e que as coisas não param de melhorar. Será? Ou
a cultura dominante estaria simplesmente flertando timidamente com o outro, a fim de nos manter num “caminho certo” mais amplo?
Enquanto parece haver uma definição mais ampla de comportamento sexual aceitável, muitos dos velhos preconceitos permanecem e novas crises continuam a ser criadas. Cenas de histeria coletiva por causa de pessoas acusadas ou mesmo 5 suspeitas de pedofilia revelam o lado assustador do poder popular. Freud pode haver desnudado a sexualidade infantil, mas isso ainda não é algo que a sociedade do final do século XX consegue discutir racionalmente. Parece haver uma crise generalizada de como lidar com “agressores sexuais”. Será que eles são doentes? E, se este for o caso, qual é a cura? Ou será que são “maus”? Quem ou o que eles agridem? A Natureza, a Lei Divina, a Sociedade?
E, num nível mais geral, como sabemos o que faz uma atividade erótica boa e outra má? É um caso de vontade divina, natureza biológica ou convenção social? Podemos realmente ter certeza de que nossos desejos e prazeres são normais, naturais, bons – ou de que nós o somos? Por que o sexo é tão importante?
Como argumenta a antropóloga Gayle Rubin: “O reino da sexualidade tem sua própria política, iniqüidades e modos de opressão internos. Assim como outros aspectos do comportamento humano, as formas institucionais concretas da sexualidade, em qualquer tempo e local, são produto da atividade humana. Elas estão imbuídas de conflitos de interesse e manobras políticas, tanto deliberados quanto casuais. Nesse
sentido, o sexo é sempre político. Mas existem também períodos históricos em que a sexualidade é mais acirradamente contestada e mais abertamente politizada. Em tais períodos, o domínio da vida erótica é, com efeito, renegociado”.
Se, como parece, vivemos um desses momentos, então uma das modalidades atuais de renegociação da vida erótica é através da exploração das maneiras como entendemos o sexo. Ainda que essa exploração possa acontecer numa miríade de contextos – na mídia, na medicina, no parlamento – a análise que é o foco deste ensaio foi realizada mais vigorosamente por indivíduos e grupos que experimentaram os maiores e às vezes mais mortais efeitos da política do sexo. Assim como as mulheres foram o primeiro grupo a explorar a diferença de gênero, também as lésbicas, os gays e outros grupos cujas sexualidades são definidas contra a norma da heterossexualidade estiveram à frente na exploração da política da sexualidade. Ao desafiarem nossas suposições mais básicas sobre sexo, gênero e sexualidade, incluindo as oposições entre heterossexual e homossexual, sexo biológico e gênero culturalmente determinado, homem e mulher, esses pensadores desenvolvem novas maneiras de explorar a questão da identidade humana.
QUEM É FOUCAULT?
Michel Foucault (1926-84), filósofo, historiador e ativista, foi um dos mais influentes pensadores cujo trabalho é geralmente categorizado como pósestruturalista. Junto com as críticas da metafísica ocidental de Jacques Derrida e a radical rearticulação da teoria psicanalítica feita por Jacques Lacan, as diversas investigações de Foucault sobre saber e poder formaram os alicerces paradoxalmente desestabilizadores para muitos trabalhos recentes sobre o status da subjetividade humana.
Foucault, além do mais, era gay e morreu de AIDS em 1984. Depois da sua morte, sua vida e seu trabalho foram alvo de uma série de ataques que, alegando buscar a “verdade” de Foucault, maliciosa e desaprovadoramente conectaram suas supostas práticas e preferências sadomasoquistas a uma leitura (reducionista) dos aspectos políticos de seus escritos históricos e filosóficos. A vida, o trabalho, as conquistas e a demonização de Foucault fizeram dele um poderoso modelo para muitos intelectuais –
gays, lésbicas e outros – e sua análise das interrelações de saber, poder e sexualidade foi o mais importante catalisador intelectual da teoria queer.
O QUE É A TEORIA QUEER?
“Queer” pode funcionar como substantivo, adjetivo ou verbo, mas em qualquer caso se define contra o “normal” ou normatizador. A teoria queer não é um quadro de referência singular, conceitual ou sistemático, mas sim uma coleção de compromissos intelectuais com as relações entre sexo, gênero e desejo sexual. Se a teoria queer é uma escola de pensamento, então ela é uma escola com uma visão bastante heterodoxa de disciplina. O termo descreve um leque diverso de práticas e prioridades críticas: leituras da representação do desejo pelo mesmo sexo em textos literários, filmes, música e imagens; análise das relações de poder sociais e políticas da sexualidade; críticas do sistema sexo-gênero; estudos de identificação transsexual e transgênero, de sadomasoquismo e de desejos transgressivos.
UMA GENEALOGIA QUEER
Este ensaio considerará algumas das maneiras como a teoria e o pensamento queer giram sobre e em torno de Foucault, como escritores, trabalhando num espectro de disciplinas acadêmicas, desdobram e desenvolvem suas idéias sobre sexualidade e sociedade. Foucault pode ser visto como um catalisador, um ponto de partida, um exemplo e um antecedente, mas também um provocador, uma ponta de ousadia que
ainda gera a produção de novas idéias. Como narrativa, este ensaio inevitavelmente apresentará um tipo de história linear do trabalho de Foucault e do desenvolvimento da teoria queer, mas sempre que possível tentarei evitar a sedução dos mitos da causalidade simples e do progresso. Foucault não é a origem da teoria queer, nem a teoria queer é o destino do pensamento de Foucault. Para usar um dos termos do próprio Foucault, o ensaio poderia ser visto como uma breve e parcial “genealogia” plicação desse e de um conjunto particular de discursos sobre a sexualidade, culminando (temporária e nãoexclusivamente) no atual momento queer.
SEXO, VERDADE E DISCURSO
O primeiro volume de História da Sexualidade, de Michel Foucault, foi escrito nos anos 1970, no final da assim chamada “revolução sexual” na cultura ocidental. O livro oferecia uma contra-narrativa poderosa e provocadora para a história, há muito estabelecida, da repressão sexual vitoriana dando lugar à progressiva liberação e ao esclarecimento no século XX. Era o começo do projeto mais ambicioso de Foucault, projeto que ficou inacabado com a sua morte. Em relatos tradicionais, a sexualidade é vista como um aspecto natural da vida humana que foi reprimido na sociedade e cultura ocidentais a partir do século XVII, escondido como as pernas de um piano vitoriano, não-mencionável, censurado na fala e na escrita. A sexualidade continuava lá, borbulhando levemente sob a superfície afetada da respeitabilidade burguesa do século XIX, mas sufocada por proibições e repressões. Até que ela e nós fomos liberados na era da minissaia e do analista, revelando nossas pernas e nossos desejos mais profundos, trazendo tudo à tona. Os problemas permaneceriam, é claro, e alguns de nós seriam mais felizes e saudáveis do que os outros na proporção direta da nossa capacidade de expressar livremente nossos felizes e saudáveis desejos sexuais. Mas a ajuda estava ali para aqueles com problemas. O terapeuta, o analista, o conselheiro poderiam nos ajudar a nos endireitarmos. Um final feliz para uma triste história de restrição do potencial humano. Mas será que essa história, familiar e reconfortante, é verdadeira? Será que a sexualidade sempre esteve esperando que nós a libertássemos das amarras sociais, e que, junto com ela, libertássemos também a nós mesmos?
Foucault rejeitou essa “hipótese repressiva” e declarou que evidências do século XIX apontavam não para uma proibição de falar sobre a sexualidade mas sim para uma notável proliferação de discursos sobre sexualidade. Então, o que era, o que é sexualidade? Um aspecto vital da argumentação de Foucault é que a sexualidade não é uma característica ou fato natural da vida humana, mas uma categoria construída da experiência que não tem origens biológicas e sim históricas, sociais e culturais. Essa concepção de sexualidade é difícil de apreender; ela parece contra-intuitiva. A sexualidade, assim como o gênero, parece simplesmente estar lá, mas também ser de alguma forma especial, pessoal, algo a ver com os nossos “desejos mais profundos” – quem queremos, o que queremos, como queremos. É algo dentro de nós, uma
propriedade, nossa propriedade. Mas o fato de termos investido tanto na crença de que a sexualidade é natural não significa que ela o seja.
Isso não quer dizer que Foucault descartava toda dimensão biológica, mas sim que ele priorizava o papel crucial das instituições e dos discursos na formação da sexualidade. Como observa David Halperin, autor de Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography, Foucault não comentou explicitamente sobre as causas dos desejos pelo mesmo sexo. Quando perguntado a respeito da distinção entre predisposição inata à homossexualidade e condicionamento social, sua resposta foi: “Sobre essa questão eu não tenho absolutamente nada a dizer. Sem comentários”. Em vez de buscar a ilusória “verdade” da sexualidade humana, Foucault dedicou- se a examinar sua produção. Ele se preocupava menos com o que é “sexualidade” e mais com a maneira como ela funciona na sociedade.

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