segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Algumas coisas sobre os espaços de trabalho público

Considerando alguns acontecimentos e lascas de pensamentos, hoje quero enlaçar letras para dizer algumas coisas sobre os espaços de trabalho público.
Há alguns anos, quando eu trabalhava com o Serviço de atendimento, Enfrentamento e Prevenção às Situações de Violência, Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, uma das ações que desenvolvemos em nossa comunidade foi um intenso trabalho de formação para a rede pública e privada de trabalhadores das áreas de educação, saúde, assistência social, segurança pública, judiciário, ministério público e conselheiros tutelares.
Uma das pessoas que contratamos para desenvolver o trabalho, era uma profissional concursada, nomeada na área de segurança pública estadual e com vasta experiência no campo da atenção à criança e ao adolescente. Conhecíamos um pouco do seu trabalho, assim como, já tínhamos visto algumas de suas falas (em material impresso) e recebemos a indicação de seu nome vinda de colegas que ainda não haviam tido a oportunidade de conhecer co seu trabalho com maior profundidade.
Nossa primeira surpresa foi o fato de que não foi possível contar com a atuação dessa pessoa como trabalhadora pública, para a formação que a chamamos, mesmo que toda sua experiência tenha sido construída no campo público. No contato que fizemos com ela, via telefone do espaço público em que trabalha em tempo integral, fomos informados que poderíamos contratar seu trabalho através de sua ONG e, então passamos às tratativas via celular.
Explicamos nossa perspectiva de trabalho e, de imediato, ela disse que fazia o trabalho contando também com a parceria de uma colega, sendo que teríamos que contratar a dupla (por pacote de trabalho e não por contratação individual). Pensando na qualidade do trabalho, assim o fizemos. No dia marcado para o desenvolvimento da atividade, fomos surpreendidos pela ausência de sua parceira de trabalho (a mesma estava grávida e teria tido dificuldades de saúde) e, além disso, por um trabalho de péssima qualidade ética, política, social e humana.
No mais, a tramitação do processo de contratação e pagamento de honorários seguiu a habitual morosidade burocrática presente no espaço público, ao que, passamos a ser cobrados diária e insistentemente por essa pessoa, esperando que pagássemos também para sua parceira que não se fizera presente. O detalhe é que recebíamos ligações principalmente em nossos celulares pessoais, sendo que as ligações eram originárias dos telefones do espaço de trabalho público em que essa pessoa atua. O pagamento foi feito dentro do tempo de tramitação normal, mas somente por sua atuação e, com isso, ela passou a dizer que a Prefeitura não havia pago por seu trabalho.
A partir de todos esses contratempos, fomos, aos poucos, conhecendo um pouco mais da dinâmica de atuação dessa “profissional” e soubemos que sua prática é de aproveitar a emergência de novos nichos para desenvolver propostas de capacitação junto às políticas públicas e, com isso, busca pessoas que estejam dispostas a formar uma ONG para vender e efetivar os pacotes de formação. Já constituiu várias ONG's para isso e, assim como atuou no campo para o qual a contratamos e em vários outros campos, mais recentemente tem atuado no campo do uso de drogas (perpetua o discurso proibicionista e terrorista sobre as drogas) e até esteve novamente por aqui, tendo sido contratada por colegas desavisados e que, também “compraram” um pacote, dentro do qual a dita estava embalada. Isso tudo nos mostrou a importância fundamental de sermos muito mais rigorosos na contratação de pessoas para desenvolver atividades de formação para as quais não possamos contar com nossos próprios trabalhadores no campo público.
Estou fazendo esse resgate, por um aspecto bem preciso que se fez marcar em uma atividade de formação regional desenvolvida em nossa comunidade na semana que passou, dirigida aos Conselheiros Tutelares e demais trabalhadores públicos, sobre o que, a colega e amiga Carine faz seu relato num comentário em outra postagem aqui no blog, vejamos: Carine disse: “Maria Luiza, sexta-feira senti muita falta da tua presença em um encontro de Conselheiros Tutelares realizado na Casa de Cultura, aqui em Cruz Alta, pois sei que com certeza vc colocaria para o palestrante Marcos Azeredo o que é o processo histórico da politica de direitos sociais. Tivemos que ouvir os piores absurdos sobre o trabalho dele enquanto conselheiro tutelar, um sujeito de fala preconceituosa e vulgar, falando com desprezo sobre a lei de acolhimento institucional disse ele, em uma das aberrações que foram muitas, que a lei tinha sido feita por sapatão e sapatonas do governo federal, também disse que promotor deve gritar com as nega dele e com a mulher dele, e o mais absurdo em nenhum momento falou em acolhimento de criança e adolescentes. O Sr. Marcos berrou a todo o momento ser aluno de Doutorado e por isso pregava verdades, o mais triste é que em varios momentos foi aplaudido.
Fiquei muito triste pois me lembrei de 2006 quando saíamos semear o trabalho de prevenção do sentinela, momentos com a comunidade em que acolhiamos e eramos acolhidos, em momentos de extrema sensibilização que semeavamos um serviço de proteção a criança e adolescentes e vivíamos com a comunidade um momento ímpar. Fiquei pensando sobre o que está acontecendo com o nosso município que busca alguém de fora e paga para ouvir um sujeito tão sem noção do processo histórico da luta para implementação das politicas públicas, pagamos com dinheiro público um sujeito que diz que na época da ditadura é que era bom e que Paulo Freire é ultrapassado. Quem é esse cara para dizer tantas asneiras e ser aplaudido? O que teremos que fazer para recuperar o estrago que esse palestrante fez, dizendo essas babaquices e fazendo disso verdades.
Nós que trabalhamos com o acolhimento de crianças, adolescentes e famílias, sabemos o quanto é importante a atuação dos conselheiros tutelares para promover uma cultura de proteção social, nós sabemos quantas situações foram superadas e quantas crianças tiveram suas histórias recuperadas, é sobre a etivação do trabalho em rede que temos o dever de discutir. O dever e a obrigação de discutir.
Eu lamento muito vc não estar lá pois talvez com a tua presença eu teria força de fala. Saí do evento arrazada, me sentido covarde por não ter repudiado a fala do palestrante Marcos, pois não é com vulgaridade e preconceito que promovemos o acolhimento de crianças e adolescentes, não é dizendo-se doutor ou tomando água de côco que a fala melhora, e nem trazendo um doutor em Direito, chamado Mateus, que entra calado e sai mudo, que se vai promover o debate. Eu realmente lamento que nós da SMDS tenhamos feito parte desse processo. Saudades de Maria Luiza Diello que ia à comunidade falar de prevenção fazendo poesia, que falava de flores e esperança, promovendo a sensibilização e a cultura da paz, como eu aprendi com vc e como queria trabalhar na assistência social com vc na implantação do SUAS, trabalho esse que vc começou lá em 1998 quando tive o privilégio de acompanhar esse trabalho. Saudades daqueles debates e do respeito às pessoas e principalmente a preocupação com a infância e juventude. Mas também sei que guerreiro não desiste e tenho certeza que dias melhores virão. (14 de novembro de 2010 21:00, na postagem O contrário do avesso).
Veja-se que a fala desse cidadão que, além de se mostrar absolutamente preconceituoso e discriminatório, no que se refere aos direitos humanos, destilou seu desconhecimento e desrespeito a todos os avanços que foram produzidos coletivamente no campo das políticas sociais. E, para fechar essa questão, digo que estou gastando tantas letras na mesma, porque estamos perplexos devido ao fato de que algumas poucas pessoas estejam querendo contratar esse cidadão para desenvolver atividades de formação com os trabalhadores atuantes num determinado campo público em nossa comunidade! Não basta tudo o que ele já expressou? Será que não conseguem ter o mínimo de noção com relação a tudo o que já foi produzido de vitalidade e avanço por aqui? Até onde teremos que ir, acompanhando pessoas que só andam de ré ou por vias esburacadas?
Outro ponto que gostaria de abordar se refere às ONG's. Dia desses uma colega comentou que não entendia como a Prefeitura ainda não havia intervido numa determinada ONG que fora contratada para desenvolver ações de responsabilidade pública (ou seja, da Prefeitura), ao que tive que repetir uma série de explicações que elucidam confusões que circulam sobre essa questão.
Não farei aqui, uma retomada teórica sobre a emergência e consolidação das ONG's no Brasil (sobre isso é interessante que se assista ao Documentário “QUANTO VALE OU É POR QUILO?”), mas tomarei somente alguns pontos importantes.
O Estado Neoliberal, na tentativa de desincumbir o Estado de tarefas e ações que lhe cabe pensar e desenvolver, fomentou a criação e consolidação do Terceiro Setor, que dentre outras coisas, desenhou as ONG's. Organizações Não-Governamentais que, contratadas pelo Estado ou não, seriam responsáveis por pensar e efetivar as ações que seriam de responsabilidade do Estado. Nessa esteira, foram sendo criadas ONG's com foco nos mais diversos campos e assuntos, sendo que não podemos vê-las, todas, no mesmo balaio. Devemos reconhecer que existem ONG's sérias que desenvolvem trabalhos absolutamente relevantes para o coletivo e que não dependem, necessariamente, de recursos públicos, sendo que quando o dependem, aplicam com justeza aquilo que lhes é repassado. Mas afora isso, há ONG's dos mais diferentes naipes éticos... há aquelas que são constituídas a partir de interesses personalistas e auto-afirmativos (uma ou mais pessoas, buscando um fantasioso reconhecimento social, projetam-se através de uma ONG); há as que são constituídas por pessoas que contam com elevado poder econômico, financeiro e material, e utilizam a ONG para descarrego de consciência por toda a exploração e degradação que exercem cotidianamente sobre as pessoas e a comunidade; há as ONG's que são constituídas e utilizadas para mascarar e encobrir ações ilícitas ou de aviltamento da dignidade alheia; entre muitas outras possibilidades de ONG's.
Quando uma instituição pública (no caso a Prefeitura) abre mão de formular e desenvolver alguma ação que seja de sua estrita responsabilidade e, assim, contrata uma ONG para fazê-lo, deve se utilizar de critérios absolutamente rigorosos para avaliar e definir a ONG a ser contratada, mas sabemos que isso nem sempre acontece.
No decurso do trabalho da ONG contratada, é fundamental que se mantenha ativamente a fiscalização dos serviços prestados e isso é de responsabilidade do contratante (no caso, a Prefeitura), do Controle Social (Conselhos Municipais) e, quando cabível, do Ministério Público. Verificada a discordância entre o contrato e seu cumprimento, cabe à Prefeitura, somente o destrate do Convênio, ou seja, interrompe-se o Convênio e restitui-se ao Poder Público a responsabilidade pelas ações a serem desenvolvidas ou estabelece-se Convênio com outro espaço que o fará; portanto, não cabe à Prefeitura – como muitos entendem que deva ser feito – intervir na organização ou em qualquer outro aspecto interno da ONG, modificando sua estrutura, sua proposta ou destituindo os componentes que a criaram e que a operam.
Por esses dias em que estamos assistindo à transição dos governos estaduais e federal, sabemos que se tecem, nos bastidores, muitas arquiteturas da coisa e do interesse público que nos dizem respeito, mas sobre o que, pouco dedicamos nosso interesse e, também, pouco ficamos sabendo, sendo que seremos avisados somente depois que tudo estiver definido. A maioria das pessoas acredita que essas articulações pouco afetem suas vidas, mas afeta sim. Afeta a vida prática dos trabalhadores públicos e da população toda, pois para além da linha geral de concepção política, econômica e social que é desenhada pelo governo que elegemos, isso define a operacionalidade das ações públicas.
A definição dos nomes e das pessoas que ocuparam os cargos, dá os condicionantes da concepção e da operatividade do trabalho. Assim, talvez quem não tenha uma atuação em espaços de trabalho público, não entenda o quão precisa seja essa questão. Por exemplo, quando um governo de esquerda nomeia para a área social um gestor que tenha um ideal de vida pautado por valores elitistas, hierárquicos e de auto-promoção, compromete negativamente toda a formulação e operacionalização dessa política pública; ou quando se nomeia um gestor que se paute por uma perspectiva pessoal paranóide, este irá constituir sua equipe de trabalho somente com aqueles que não lhe façam enfrentamentos ou que não assinalem pontos de discordância; ou quando se nomeia um gestor que seja guiado somente por interesses pessoais de projeção em cargos ou de alcançar estabilidade política ou financeira; enfim, se a pessoa nomeada para um ou outro cargo não tenha experiência ou mesmo disponibilidade para produzi-la, e nem seja guiada pelo mais radical e absoluto interesse público e coletivo, com certeza engessará todas as possibilidades de avanço ou mesmo de desenvolvimento efetivo das ações das políticas públicas. Isso, para os trabalhadores públicos concursados que o sejam somente por quererem um emprego e uma remuneração estável, certamente seja muito prático, pois ficam paralisados usando a desculpa de que não lhes é dado espaço de trabalho, mas para aqueles que sejam guiados pela responsabilidade e pelo interesse público e coletivo, é motivo de muito sofrimento e desmobilização.
Assinalo essas questões porque isso tudo define o tipo e a dimensão do trabalho público que é desenvolvido nas comunidades e, assim, talvez para os partidos políticos não faça muita diferença sobre quem seja o indicado para um ou outro cargo – para além dos interesses partidários, é claro -, mas para os trabalhadores e para a comunidade faz muita diferença se a coisa pública seja conduzida por um tirano, por um incompetente, por um paranóico, por um crápula, por um asteróide do poder, por um fascista, por deslumbrado com o poder, por um ignorante político, social e humano, por um equivocado, por um usurpador de cargo público (que vive disso), ou, por alguém sério e comprometido com a coisa pública e coletiva!

3 comentários:

  1. Maria Luiza, aplaudo em pé o texto que escreveste.
    Estou indignada com a fala do Sr. Marcos, que satirizou e desrespeitou algumas classes de trabalhadores (psicólogos, promotores, policiais, assistentes sociais, entre outros), chamando-os de incompetentes e julgando-os prepotentes.
    Ainda, repudio a maneira egocêntrica (dono da verdade) e superficial que dominou a fala deste palestrante, desdenhando as angústias e inquietações de professores, uma categoria tão desamparada em suas ações e fragilizada pelo desrespeito, pelo descaso e pelo abandono que assola a educação há muitas décadas.
    Ressalto minha indignação pelo comentário infeliz e inconsequente do Sr. Marcos, que acabou por fomentar e incentivar a violência contra nossas crianças, dizendo que usar a varinha de marmelo na infância previne a formação de um jovem marginal no futuro. Lamentável que se gaste tempo e dinheiro com esse tipo de gente, sendo que o serviço público carece de formação e qualificação específica, com profissionais competentes, sensíveis ao sofrimento do outro e que conheçam o processo de construção do campo social e das políticas públicas.
    Que bom que existe gente como você, que se indigna frente aos absurdos e consegue expressar isso tão bem, sem medo de retaliações.
    Um grande abraço,
    da colega e amiga
    Liege Suptitz

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  2. Maria Luiza cheguei a sonhar que fazia um manifesto repudiando a fala do senhor Marcos(pena eu não ter tanta coragem) por isso senti a tua falta e disse a mim mesma: "Maria Luiza não deixaria as coisas assim!".Ele com sua fala perpetua a cultura da violência, quando fala que a lei da palmada foi feita por psicólogos que não tem filhos e que "uma varinha de marmelo não mata ninguém" e pior que isso foi aplaudido por muitos daqueles que se dizem Conselheiros Tutelares. Meu sangue ferveu e ainda ferve. Que "sistema" de proteção é esse? Fica aqui o meu répúdio que não foi verbal, público mas que para escrever me encorajo.
    Um abraço!
    Ana Paula Furian

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  3. olá, liege e ana paula!
    bons ares por aqui!
    há pouco elaborei um longo e demorado comentário aos comentários que vcs fizeram, mas acho que minha internet está com problemas existenciais no dia de hoje e o meu comentário simplesmente não apareceu! se ele não aparecer, poderei reconstituí-lo somente no sábado, pois o tempo físico não me dará folga antes.
    no mais, um grande abraço e sempre à disposição para as necessárias lutas!

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