domingo, 21 de novembro de 2010

DIVULGAÇÃO: Drogas: nem vícios nem virtudes

Drogas: nem vícios nem virtudes
Autor: Edson Passetti
publicado em: Libertárias, São Paulo: Imaginário, 1998, 43 - 45 pp.
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Muito se comenta a respeito do uso de drogas, a partir da década de 1950 com os artistas da contracultura e depois, mais amplamente, com o movimento hippy. A geração pós-guerra já contestava com a música popular, roupas extravagantes e gestos inusitados o conservadorismo abalado pelos efeitos da bomba atômica. As certezas políticas democráticas e socialistas entravam em rota de colisão e não tardou para que o movimento de 1968 fizesse pulsar novamente o sentido desejante da anarquia. Até tradicionais historiadores como George Woodcock que imaginava o anarquismo como matéria da memória se retrata, reconhecendo que guerra civil espanhola fôra apenas um episódio a mais nas perseguições aos anarquistas.
Com 68 o anarquismo voltou à cena como a mais completa análise crítica da sociedade hierarquizada. Oxigenou pensamentos e posturas além de dialogar com diversos movimentos sociais que foram aparecendo: os dos ecologistas, os punks, os abolicionistas penais, as feministas, os gays, os anti-nucleares e os liberacionistas de drogas.
Em cada um deles deixa sublinhado o caráter pluralista do anarquismo ao mesmo tempo em que se revê como utopia universalista encontrando sentido para lutas micropolíticas. O anarquismo também se libera dos feitos dos séculos XIX e da primeira metade do século XX para se redimensionar tomando cuidado para que novas vertentes libertárias pudessem aparecer e que os escritos dos seus militantes estivessem sempre sendo atualizados. No anarquismo não existe lugar para o respeito ou a reverência.
O anarquismo não deve correr o risco de se tornar uma droga para os seus supostos herdeiros. Bakunin alertava para o perigo de nos deixarmos nas mãos dos cientistas ou dos que se arvoram em defensores das grandes causas em nosso nome. Eles não passam de imperadores da nossa liberdade. Da mesma maneira a droga não é designativo apenas para produtos que levam a ilegais estados alterados de consciência ou a substâncias que tem seu uso regulado e regulamentada a partir da ciência médica. Por droga se designa principalmente tudo aquilo que, preconceituosamente, a moral conservadora considera inadmissível.
Antes mesmo de 68, e durante muito tempo, as drogas hoje consideradas ilegais foram amplamente consumidas sem que o usuário fosse considerado marginal, perigoso, doente, incapaz, imoral, traficante ou decadente. Por muitos séculos diversas drogas consideradas perniciosas foram largamente usadas sob uma forma de controle social engendrado pelas próprias pessoas sem a necessidade de se recorrer aparatos policiais. Elas serviam a pessoas comuns e a reis, como Pedro o Grande e Catarina da Rússia, Frederico II da Prússia e William II da Inglaterra.
O cânhamo na Mesopotâmia serviu como incenso cerimonial. Na tradição brâmica era tido como potencializador dos desejos sexuais e prolongador da vida. Entre os celtas foi produto de exportação para toda a região mediterrânea, até o século VIII, através de Massília, hoje Marselha, um dos mais importantes portos atuais de tráfico de drogas. Este rápido exemplo nos mostra que droga é ao mesmo tempo vida e crime. É crime, convêm lembrar, como atribuição histórica de significado a um ato. Portanto crime e drogas nada mais é do que um casamento gerado sob determinadas circunstâncias históricas. Numa sociedade como a nossa, o que é crime hoje poderá deixar de sê-lo amanhã ou vice-versa. Tudo depende da maneira pela qual nos posicionamos, criando ou equacionando os acontecimentos à nossa volta.
No Brasil, devido a tradição africana, não tardou para que se relacionasse a maconha a escravos e à subalternidade racial. Criou-se, rapidamente, a associação do crime como racismo e pobreza e a suposta ignorância de quem é diferente. As drogas passaram a fazer parte do que se convencionou caracterizar como classes perigosas que, por conseguinte, devem ser combatidas.
Não devemos deixar de lembrar que a guerra às drogas foi antecedida por um grande negócio colonial capitaneado pela Companhia das Índias Orientais, em nome da liberdade de mercado, para instalar-se na Ásia. Em 1838, o mandarim Lin Tse-Hsiu destrói, jogando no mar, no porto de Hong Kong, mais de 1.400 toneladas de ópio. Mesmo destituído pelo imperador isto não impede a declaração de guerra pelos ingleses assim como a cessão do referido porto à Inglaterra. Vinte anos mais tarde, a imperatriz Tseu-Hi, opiômana, surpreende a Companhia das Índias Orientais e legaliza a importação e o consumo, gerando nova guerra. Assim caminhando, o século XIX oscilou entre políticas coloniais contrárias e favoráveis ao contrabando e a legalizações. O Parlamento inglês também oscilou. Em 1838, defendeu os interesses empresariais e a guerra em nome da liberdade de mercado; em 1880, declarou ser o tráfico uma empresa moralmente injustificável, depois da Inglaterra se estabelecer na China. O que os historiadores mostram, entretanto, é que a legalização forçou em direção a um decréscimo de usuários. Se entre 1884 e 1886, sob o regime proibicionista na China, os usuários giravam em torno de 5%, , segundo os da Royal Comission on Opiun, em 1906, com a legalização, apenas 0,5% da população era de usuários regulares.
Nunca tão poucos serviram de causa para batalhas tidas como imprescindíveis pelos moralistas e que levam às sanguinárias guerras anti-drogas. Nos EUA, em 1886, com a lei seca (cuja primeira manifestação ocorreu em 1785), se suprime o álcool da coca-cola que é comercializada como refrigerante levando ao aparecimento das dugstores. Os puritanos norte-americanos passam a desconfiar cada vez mais dos imigrantes urbanos. Atribuem aos chineses a corrupção infantil, aos negros os ultrajes sociais, aos mexicanos a introdução da marijuana e aos beberrões irlandeses e judeus a difusão do álcool. São as classes perigosas caracterizadas como sendo formadas por imigrantes, pobres, marginais, imorais e perigosos. Em 1895, por exemplo, a Liga Anti-Saloon exigirá uma “América” limpa de bêbados, jogatinas e fornicações. Não tardará para, em 1903, a Associação Médica e Farmacêutica unir-se ao movimento puritano e daí para frente consolidar-se a aliança puritanismo e terapêutica.
A história não pára e desde a Conferência de Shangai, liderada pelo presidente norte-americano Roosevelt, em 1906, foram sendo preparadas as formas pelas quais irão sendo legalizadas as drogas: parte para a indústria farmacológica e parte ao mercado ilegal.
Quando falamos de sociedade com produção capitalista, a distinção entre mercado ilegal e legal é apenas uma mera formalidade. Da mesma maneira, a distinção entre ricos cumpridores dos deveres e ricos marginais se dá apenas no âmbito do reconhecimento social, ainda que temporário, e identifica-se aqueles que contestam a fragilidade e falsidade dos moralistas como membros das classes perigosas. São os diferentes que, de imediato, são estratificados pelo saber repressivo como criminosos políticos (subversivos) ou comuns.
O anarquismo é um pensamento e uma prática que para capitalistas e socialistas autoritários (aqueles que levaram em nome das melhores intenções a ditaduras como as chefiadas por Lenin, Stalin, Fidel ou Mao-Tsé-tung) se torna insuportável. Apenas os conservadores admitem a liberação das drogas. Mas com uma frontal diferença com os anarquistas. Eles admitem a legalização como parte da liberdade de mercado enquanto os anarquistas defendem sua liberação como liberdade de auto-governo pelas pessoas. Como bem salientou Errico Malatesta, a infelicidade continuaria a existir mas “as pessoas inteligentes e desinteressadas poderiam perguntar-se: uma vez que as leis penais se mostraram impotentes, por que não tentar, mesmo que a título de experiência, o método anarquista?”. É de atitudes abolicionistas contra a punição como esta que precisamos! Eis uma das atualidades do anarquismo.
Os jovens de 68 não pretendiam transformar-se em “serviçais do narcotráfico”, como lembrou o poeta e compositor Caetano Veloso. Nem fazer do uso de drogas, como formas para alcançar outros conhecimentos e sentimentos, meio para a matança entre jovens e policiais nas periferias dos centros urbanos das grandes capitais, negócio de massivo lucro como o narcotráfico, ou ainda propiciar a insólita associação entre guerrilha e narcotráfico como ocorreu desde os anos 80, no Peru e na Colômbia.
A perseguição voraz ao usuário de drogas, que era também um contestador da autoridade do pai, do professor, do político, do patrão e do governante, enriqueceu os narcotrafiantes, diversificou a indústria armamentista, despolitizou grande parte dos jovens e legitimou a farmacologia do torpor.
Se hoje em dia você se assusta com crianças semi-acordadas caídas pelas sarjetas intoxicadas de crack, com colegas e amigos cheirados e fumados, contaminados por HIV por uso múltiplo de seringas, não se faça de chocado, não espere pela estatística no jornal da grande imprensa, não se iluda com o programa de TV, e não levante as mãos para o céu agradecendo a Deus por não ter acontecido com você para a partir desse momento começar a cagar regras, condenar os outros, posar de bonzinho ou boazinha. Sem olhar e ver a realidade que está na sua cara, o que é segurança hoje poderá se transformar em vestígios de ruínas amanhã.
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Núcleo de Sociabilidade Libertária - Nu-Sol
Texto extraido de http://www.nu-sol.org/. Acessado em: 21/11/2010.

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