A cultura do empreendedorismo na educação
Concorrência e competição norteiam relações de sociabilidade, e o outro se torna um obstáculo, denuncia Sylvio Gadelha da Costa. Indivíduos livres clamam por controle e vigilância, enquanto a cultura do empreendedorismo ganha espaço na educação.
Por: Márcia Junges
Empreendedorismo, concorrência e educação: faces da governamentalidade neoliberal e da biopolítica moderna foi o tema do minicurso conduzido pelo professor Dr. Sylvio Gadelha da Costa, da Universidade Federal do Ceará – UFC, em 16 de setembro, dentro da programação do XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana. Sobre o tema, concedeu à IHU On-Line, por e-mail, a entrevista que segue. Em seu ponto de vista, é cada vez mais fácil encontrar “indivíduos que não só se consideram livres, mas que, em certa medida, devido justamente a essa liberdade de que desfrutariam espontaneamente, consideram natural a ideia de que estão por sua própria conta, isto é, de que são, senão os únicos, os principais responsáveis pelo que sucede às suas vidas, para o melhor e para o pior”. Assim, as pessoas introjetam a ideia de que “é natural se viver em perigo, sob permanentes riscos e, portanto, numa permanente tensão entre, de um lado, a liberdade e, de outro, o controle e a segurança”. Resumindo, pontua o professor, veremos “indivíduos livres que desejam e que clamam por serem vigiados, monitorados, controlados”. As relações de sociabilidade são norteadas, mais do que nunca, pela concorrência e competição, quando o outro passa a ser visto como “um obstáculo a ser batido”. A cultura do empreendedorismo migrou do domínio econômico-empresarial para outras esferas, como a da educação.
Graduado em psicologia pela Universidade Federal do Ceará - UFC, é mestre em Sociologia e doutor em Educação por essa mesma instituição com a tese Educação e subjetivação: elementos para uma escuta extemporânea. De sua produção bibliográfica, destacamos Subjetividade e menor-idade: acompanhando o devir dos profissionais do social (São Paulo: Annablume, 1998) e Biopolítica, Governamentalidade e Educação: introdução e conexões a partir de Michel Foucault (Belo Horizonte: Autêntica, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que o empreendedorismo, a concorrência e a educação são faces da governamentalidade neoliberal e da biopolítica contemporânea?
Sylvio Gadelha da Costa - Antes de tudo, é bom ter em mente que a relação entre governamentalidade e biopolítica nem sempre aparece de forma clara nas formulações de Michel Foucault. De um lado, a biopolítica é por ele definida como aquela voltada para a gestão do corpo-espécie da população, tomado como suporte de processos biológicos, tais como natalidade, morbidade, mortalidade, relacionados, por sua vez, a epidemias, endemias, a questões relativas à saúde coletiva, à segurança pública, à previdência social etc. Quanto à governamentalidade, ela me parece uma categoria analítica mais geral, cujo cerne reside, por um lado, na arte de governar, de dirigir, de conduzir a conduta dos indivíduos e das coletividades e, por outro lado, nas maneiras singulares mediante as quais os próprios indivíduos dirigem e regulam suas condutas. Todavia, essa arte de governar deve ser entendida num sentido plural, haja vista que, na história, podemos identificar várias modalidades de governamento, tais como a pastoral, a assentada numa razão de Estado, a liberal e, mais recentemente, a neoliberal. Em Nascimento da biopolítica, Foucault, a meu ver, parece anexar e inscrever a biopolítica nessa questão mais ampla da governamentalidade, colocando a compreensão da primeira como condicionada ao exame das razões governamentais que presidem o liberalismo (e o neoliberalismo). Seja como for, é preciso ter em mente que tanto os biopoderes como a governamentalidade neoliberal apresentam diversas facetas e/ou dimensões, além de atuarem simultaneamente nos níveis micro e macro.
No caso do empreendedorismo e da concorrência, o primeiro aparece como uma das formas de atualização da segunda, entendida como princípio formalizador essencial do mercado, crucial à instituição de uma governamentalidade ativa, isto é, de uma governamentalidade que intervém intensa e extensivamente na sociedade, na subjetividade e nas condutas dos indivíduos. Os ordoliberais já haviam dado o primeiro passo ao tentarem, com base nesse princípio, formalizar a sociedade utilizando o modelo da empresa; os economistas da Escola de Chicago, por seu turno, ao criarem a teoria do capital humano, radicalizam esse processo, pois propõem uma forma de governamento, em que a educação comparece como vital, que termina por transformar os indivíduos em empreendedores de si mesmos, em “indivíduos microempresa” que competem acirradamente entre si a fim de se valorizarem no mercado.
IHU On-Line - Quais são os grandes objetivos dessa governamentalidade e biopolítica? Em que aspectos eles já têm surtido efeito?
Sylvio Gadelha da Costa - Olhe ao seu redor! Cada vez mais você irá ver indivíduos que não só se consideram livres, mas que, em certa medida, devido justamente a essa liberdade de que desfrutariam espontaneamente, consideram natural a ideia de que estão por sua própria conta, isto é, de que são, senão os únicos, os principais responsáveis pelo que sucede às suas vidas, para o melhor e para o pior. Você irá ver indivíduos que assimilaram a ideia de que é natural se viver em perigo, sob permanentes riscos e, portanto, numa permanente tensão entre, de um lado, a liberdade e, de outro, o controle e a segurança. Numa palavra, você irá ver indivíduos livres que desejam e que clamam por serem vigiados, monitorados, controlados. Além disso, você irá ver indivíduos que, para praticamente tudo em suas vidas, fazem cálculos racionais da relação custo/benefício que suas ações - entendidas como investimentos – implicam, em termos de benefícios e de retorno na forma de fluxos de renda. Em decorrência, você irá ver que as relações de sociabilidade entre esses indivíduos são cada vez mais pautadas pela concorrência, pela competição, de modo a que o outro seja visto virtualmente como um obstáculo a ser batido. Você vai ver indivíduos empreendedores, cujos imperativos são acumular capital humano, consumir e endividar-se permanentemente como forma de investimento, competir, saber investir - sobretudo em si mesmo -, mostrar-se atraente como investimento (fazer marketing pessoal), sob a ameaça recorrente de serem descartados, marginalizados, excluídos. Pois bem, em suma, você irá ver indivíduos muito bem governamentalizados por uma lógica que tem no mercado seu princípio de inteligibilidade, sua chave de decifração.
IHU On-Line - Como o biopoder se expressa na educação atual?
Sylvio Gadelha da Costa - Grosso modo, ele se expressa através de mecanismos que decidem que vidas são qualificadas como dignas de serem vividas (passíveis de inclusão) e que vidas são qualificadas como indignas de serem vividas (passíveis de inclusão). Na verdade, os biopoderes agem de forma mais complexa, pois excluem através de políticas de inclusão. Dentre as várias faces e/ou dimensões desse processo, eu tenho buscado chamar a atenção para a disseminação da “cultura do empreendedorismo”, cultura essa que tem migrado dos domínios estritamente econômico-empresariais para os demais âmbitos sociais, particularmente o da educação. Seria o caso de se investigar melhor que “pedagogias empreendedoras” vêm sendo destinada aos pobres e às classes média e alta.
IHU On-Line - Nesse sentido, como podemos compreender a mercantilização do ensino?
Sylvio Gadelha da Costa - A mercantilização da vida, em geral, e também da infância e do ensino vêm sendo denunciada e analisada pelas ciências humanas e sociais, bem como pelos novos movimentos sociais já há algum tempo. Todavia, no mais das vezes, essa denúncia e essa problematização, pelo menos a meu ver, ainda teimam em não reconhecer o lugar e a função especiais que têm os processos e políticas de subjetivação capitalísticos, para falar com Deleuze e Guattari , na normalização, regulamentação, no controle e na modulação das vidas dos indivíduos e das coletividades. Por isso, ora se fala em sequestro da infância, ora se fala em “desaparecimento da educação”, quando na verdade o que está em jogo é a produção de novas concepções, novas imagens de “ser criança” e de novas concepções, novas imagens de “formar, educar”, concepções, imagens essas estreitamente relacionadas entre si. Seguindo Foucault, creio que podemos tentar subordinar essa questão da mercantilização, expressa pelo consumismo exacerbado, tomando-a como subordinada à questão da concorrência.
On-Line - No contexto do biopoder aplicado à educação, qual é o espaço que sobra para a autonomia do sujeito, seja o aluno ou o professor?
Sylvio Gadelha da Costa - O espaço que sobra está sempre por ser inventado, produzido, maquinado e ele é, ou deve ser, sempre correlato e imanente aos pontos de incidência do poder, isto é, aos pontos de aplicação em que incidem as tecnologias governamentais e de controle, na superfície do socius. Como não há mais um fora do poder, esse espaço se encontra virtualmente em toda parte, inclusive nas escolas e em outras organizações que se dizem educativas e/ou formadoras. Esse espaço é real, mas, como é virtual, necessita ser atualizado a cada momento, sob as mais diversas formas e com componentes os mais heterogêneos, tomados aqui e ali, de experiências interessantes. É sempre uma questão de criação singular. Porém, a educação tem uma enorme dificuldade em pensar nesses termos, acostumada que está em encontrar a “chave do tamanho”, ou seja, aquela que abriria todas as portas, coisa que, a meu ver, não passa de uma grande ilusão. Assim, a criação de espaços para a autonomia passa também pela desconstrução dessa fantasia.
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