terça-feira, 2 de agosto de 2011

Vidas em Risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault

Resenha do Livro Vidas em Risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault, de André Duarte, GEN/Forense Universitária, 2010. (490 p.)
por Pedro Duarte
PENSAR O PRESENTE COM A FILOSOFIA E A FILOSOFIA COM O PRESENTE
Ninguém ainda hoje duvida que o mundo em que vivemos passa por profundas transformações cuja velocidade é absolutamente sem precedentes. Em especial através dos avanços tecnológicos, a vida que temos hoje parece poder ser alterada já amanhã, da mesma forma que não é igual à de ontem. O que nem sempre percebemos, entretanto, é que não somente a vida que temos muda, mas, ao mesmo tempo, também aquilo que entendemos como sendo a vida. Mais ainda: as transformações evidentes e concretas da vida talvez tenham se tornado possíveis apenas já na base da compreensão moderna do que seria a própria vida. Tal compreensão abriu possibilidades, para o bem e para o mal, que seriam impensáveis antes. É a essa dimensão filosófica mais fundamental que se dedica o novo livro de André Duarte, Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Sua atenção é voltada para a atualidade, a partir de uma perspectiva ampla mas que examina, em especial, as condições e as conseqüências da experiência política (e também da falta dela) em que nos situamos, procurando, através dos autores abordados, adotar uma posição intelectual crítica.
Desde a publicação, em 2000, de O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt, o interesse de André Duarte pela filosofia política já estava evidente. Também era clara sua consciência, herdada da autora ali estudada, de que a junção desses dois termos – filosofia e política – nada tinha de simples, na medida em que a tradição do pensamento ocidental, desde Platão, tendeu a tomar os negócios públicos dos homens mais como problema a ser solucionado do que como um assunto a ser entendido por sua importância intrínseca. O livro novo dá continuidade, sob esse ponto de vista, ao esforço do primeiro, visto que busca pensar filosoficamente a política mas sem que isso signifique formular para ela regras normativas. A filosofia não entra em uma relação de guia teórico com a prática política, mas de compreensão pensante, ou seja, de exame crítico do seu significado e de sua experiência em nossa época.
De 2000 a 2010, o trabalho de André Duarte – que pôde ser acompanhado em especial no âmbito acadêmico através de diversos artigos publicados – passou a ganhar mais e mais intimidade com outros autores além daquela já sabida com Hannah Arendt. Isso o ajudou a avançar na tarefa de uma filosofia política que definisse a sua questão central. A formulação mais direta que ela ganha no novo livro é a de que chegamos em uma época na qual a valorização da vida acima de tudo é acompanhada, ao mesmo tempo, da depreciação dessa mesma vida. Supremo valor humano de um lado e bem facilmente descartável de outro, a vida é simultaneamente o que prezamos e o que destruímos – ambas as coisas em proporções inéditas. Em suma, a vida está em risco. No centro dessa questão, em termos políticos, está a normalização da sociedade pela disciplina e pelo controle, que exercem seu poder sobre os corpos individuais e os ciclos da vida biológica da espécie humana. Noutras palavras, está em jogo a biopolítica. Em nossa época, a vida tornou-se material a ser organizado, fundo de reserva de energia para manter em funcionamento um sistema técnico que, se foi originalmente pensado para servir ao homem, passou a colocar este homem a seu serviço. Tomada pelo sentido biológico, ou seja, natural apenas, a vida foi absorvida pela sociedade como aquilo que deve ser operado através de cálculos e estratégias cujo objetivo não é senão manter a sua própria ciranda sem fim. Eis o problema que aflige o livro desde o começo e que pede para ser compreendido, sob pena de, se não o fizermos, sermos só engolfados por ele e nem percebermos o que esse “mundo novo e desconhecido”, para usar os termos de Hannah Arendt, pode abrir para nós eventualmente.
Já se vê, portanto, que o livro tem um lado em que aposta na colocação de uma questão: a do significado – filosófico, político e ético – da vida na sociedade moderna e atual. Essa questão é o que o move, embora não pela necessidade de se colocar contra ou a favor do estado de coisas que descreve, mas sim pelo esforço de compreendê-lo. No entanto, há ainda um outro lado do livro, que é a exploração das obras dos três autores a que se refere o título – Martin Heidegger, Hannah Arendt e Michel Foucault – além de alguns outros – especialmente Friedrich Nietzsche e Giorgio Agamben. E aqui o leitor tem acesso a articulações e interpretações acuradas. É apenas aparentemente, porém, que essa dupla valência pode soar como duas dimensões separadas. Na verdade, são dois lados da mesma moeda, que é a investigação do próprio livro.
Isso é assim pois, a rigor, tanto a questão sobre o valor e a depreciação da vida no mundo em que estamos quanto a abordagem dos autores ganham sentido uma pela outra. A primeira sem a segunda é cega, enquanto a segunda sem a primeira é vazia. É por contar com ambas que o livro encontra sua força. Ele não se perde em exegeses sem fim despreocupadas com as questões reais e tampouco apressa-se a vociferar ataques ou elogios à situação atual, mantendo o necessário rigor conceitual para tratar os assuntos prementes que entram em jogo durante o texto. Se o direcionamento e a consistência da abordagem do cenário contemporâneo provêm da articulação das teses de alguns dos mais importantes filósofos do século XX, ao mesmo tempo essa articulação ganha viço e sentido por estar atrelada à preocupação constante com o presente. É justamente do cruzamento desses dois eixos – visão dirigida para o contexto atual e exploração de autores – que surge a contribuição mais relevante desse livro.
Essa contribuição aparece dentro do texto à maneira de artigos variados, que possuem certa independência, embora o livro encontre, no meio dessa variedade, uma coesão tanto de temas quanto de seu próprio caminho de idéias. Em sua primeira parte, ele aborda os diagnósticos filosóficos sobre a modernidade feitos por Heidegger, Arendt e Foucault. Somos apresentados, com grande precisão, a posições que, embora críticas à modernidade, não pretenderam situar-se em seu exterior, como se tal medida fosse simples assim. Mesmo porque, a própria idéia de uma superação histórica seria já, outra vez e ainda, moderna. Embora diferentes, os diagnósticos dos autores, como mostra o livro, possuem muitos pontos de contato, alguns evidentes e outros nem tanto, como, por exemplo, a crítica ao humanismo feita tanto por Heidegger quanto por Foucault, que talvez até se complementassem.
Segue-se a essa primeira parte, uma segunda, sobre técnica, ciência e biopolítica. Não por acaso, essa parte abre com o sempre impressionante diagnóstico de Heidegger acerca da essência da técnica moderna. Para além de todas as descrições empíricas das máquinas, dos computadores e da informática que constituem a época, o que Heidegger destaca é que a técnica tornou-se a forma privilegiada de interpretação do mundo para a nossa destinação histórica atual. Ou seja, o desvelamento do próprio ser de tudo o que é tende a se dar na forma da técnica. Por isso mesmo, o que interessa não é a técnica em seu mero caráter instrumental, e sim a sua essência produtora. Interessa a técnica como desencobrimento da verdade pelo qual as coisas vêm a ser o que elas são para nós. De certo modo, toda essa parte do livro, ao pensar o que são o biopoder e a biopolítica na contemporaneidade seguindo Foucault e Agamben, sugere que as suas condições, se é que existem, estão na questão da técnica como formulada por Heidegger.
Na terceira e última parte, o livro trata da ética, tendo em vista a complicada articulação entre teoria e prática, entre pensamento e ação, entre filosofia e política. No caso de Heidegger, a relação com o outro, ou seja, a alteridade é o centro da investigação – desde o começo de sua obra, com Ser e tempo, até mais tarde, com o aparecimento tão importante da questão da linguagem em sua filosofia. No caso de Foucault, o tema do cuidado de si ganha força, sendo relacionado, porém, com o cuidado político com o outro – e aqui haveria uma relação com Heidegger. No caso de Hannah Arendt, é pensada uma exemplaridade subversiva como dimensão política de resistência à violência, em um horizonte não metafísico que teria sido aberto a partir, novamente, de Heidegger.
Os três principais autores abordados durante o texto, como se vê, ganham mais ou menos força, dependendo da sua relevância para o assunto. Eles são colocados em uma relação que, empregando a expressão do próprio Heidegger, é de “proximidade na distância”. É nela que todo diálogo entre pensadores torna-se possível, para além das alternativas simplistas da influência e da independência. Na introdução do livro, André Duarte afirma que compôs os ensaios imaginando conversas e diálogos cruzados que Heidegger, Foucault e Hannah Arendt poderiam ter, caso se encontrassem para debater alguns assuntos. E admite que buscou sublinhar os aspectos em torno dos quais tais autores podiam ter alcançado o que chama de “concordância jamais unânime”. De fato, embora o texto não apague a singularidade de cada pensador, seu empenho é sublinhar mais os seus pontos de contato do que os seus pontos de afastamento.
Nessa dimensão, vale destacar que, ao aproximar diferentes pensadores, o livro também consegue fugir das imagens mais vulgares que temos deles. E o faz com grande interesse. Como bem sabe seu autor, a perspectiva de sua interpretação nos oferece um Heidegger que, em vez de ser um filósofo cuja devoção constante à questão do ser teria tornado o pensamento abstrato, esteve constantemente motivado pelos desafios de sua época, pelos problemas de seu tempo; nos dá um Foucault que, longe de todo e qualquer positivismo, fez uma penetrante crítica da cultura e da política; nos mostra uma Hannah Arendt que não busca qualquer recuperação da esfera pública, mas que solitariamente se dedica a pensar como se obscureceu a política na época moderna. Em suma, o perfil desenhado para cada filósofo estudado é nuançado, sem os chavões já conhecidos.
Pensando com os autores, entre eles e até para além deles, André Duarte não se furta a análises textuais cuidadosas, das quais resulta um texto claro, mesmo quando, ou especialmente quando, os problemas são difíceis. E eles quase sempre o são, tanto por sua premência quanto pela complexidade dos filósofos abordados. Na empreitada de tais análises, há um emprego eficiente de comentadores durante o texto, que aparecem sobretudo de dois modos: por suplementação, para ajudar em algumas argumentações; e por contraste, para tornar mais nítidas certas posições interpretativas adotadas. De resto, embora lide com assuntos capitais para nossa atualidade, o tom do texto é sóbrio, o que evita que ele se precipite em julgamentos otimistas e pessimistas.
Nesse sentido, a crítica elaborada pelo livro em nenhum momento postula algum tipo de fuga da época em que estamos situados. Ela procura, antes, participar do que Foucault chamou de “ontologia de nós mesmos”. Ainda que às vezes o cenário possa de fato parecer sombrio, também há possibilidades que nele se instauram. O gesto crítico busca fendas nas quais podemos agir e pensar de outra forma, fora dos adestramentos do sistema tecnocientífico que atinge o mundo da política e – às vezes – também o da filosofia. Isso é arriscado. Mas o que podemos fazer além de arriscar quando a própria vida parece estar em risco? Filosofia e política são atividades arriscadas, pois não são meras ferramentas disponíveis para objetivos exteriores a si, mas experiências da vida e com a vida, pelas quais ela deixa de aparecer como homogeneidade gerenciada e surge, em vez disso, como heterogeneidade que exige o acolhimento ético do ser e do outro.

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