domingo, 28 de agosto de 2011

Foucault e o Anarquismo

por Salvo Vaccaro
Introdução
“Nos dois primeiros anos de vida em Clermont (60-62), Michel Foucault tomou-se amigo de Jules Vuillemin. Faziam longas caminhadas pelas ruas do centro histórico, almoçavam juntos com freqüência, por vezes na companhia de colegas da faculdade de filosofia. Muitas vezes em mesas de dez pessoas. (...) E ainda assim eram muitas as diferenças entre os dois professores. (...) A distância que os separava era também considerável: Vuillemin aproximou-se gradualmente da direita, enquanto que Foucault, bem ou mal, permaneceu um homem de esquerda. Discutiam muito entre si e Foucault concluía em geral com o comentário: “No fundo, você é uma anarquista de direita e eu um anarquista de esquerda” (1 Didier Eribon, Michel Foucault, trad. it. Leonardo, Milão, 1991, p. 174).

De que posição Foucault pode auto-identificar-se dessa maneira? Com que grau de compreensão, principalmente no que diz respeito a uma ampla tradição histórica? Qual acepção dada à expressão “anarquista de esquerda”, em contraposição à idéia de um “anarquista de direita” (para além da pessoa em questão)? Será somente uma afinidade eletiva para com o herético, o marginal, o anômalo?
São estas as questões que tentaremos compreender ao longo deste artigo. Gostaria, em primeiro lugar, que me fosse concedida uma motivação autobiográfica. Juntamente aos pensadores da Escola de Frankfurt - textos como O Homem Unidimensional de Herbert Marcuse, A Teoria Crítica de Horkheimer, Mínima Moralia de Theodor W Adorno, A Dialética do Iluminismo de Horkheimer e Adorno - Michel Foucault é o autor (filósofo, historiador, crítico) que me aproximou do anarquismo entre os anos 1976-77; sobretudo, a sua história do nascimento da prisão, Vigiar e Punir, e os seus artigos na coletânea Microfisica do Poder.
1 Indícios Inéditos
Obviamente li também os clássicos do pensamento anarquista, mas ainda hoje esta específica formação preliminar me dá a oportunidade, assim como no passado, de não me fossilizar no caminho traçado de Bakunin a Malatesta, para citar o título do famoso livro de Pier Carlo Masini. Acima de tudo, permaneceu em mim indelevelmente colocado um estilo de leitura, uma curiosidade de pesquisa, um tipo de reflexão: o uso do pensamento como uma “caixa de utilidades” de onde se deve retirar aquilo que serve em um momento oportuno, ou seja, cada vez que apareça a necessidade de um sustentáculo para firmar o caminho tomado por uma reflexão, por uma autônoma construção conceitual.
Afastando todo academicismo, Foucault nos ensinou, acima de tudo, uma utilização anarquista do texto teórico, que não negue a prática, sem reverências filológicas ou formalismos sistemáticos, sem respeito pela autoridade do Nome (“O que importa quem fala?”, era comum repetir), enfrentando o conteúdo do pensar e as condições sócio-históricas dentro das quais torna-se possível pensar uma coisa e não uma outra. Torna-se possível, assim, maturar um processo de deslizamento do pensamento em direção a indícios inéditos, em horizontes antes velados, escancarando vínculos de compatibilidade que refletem-se no campo do próprio pensamento. Não há limites intransponíveis, como demonstra a utopia. Apesar disso, Foucault não a vislumbra em um amanhã palingenético de liberdade adquirida em sua plenitude, mas sim em um presente no qual seja possível atirar as flechas de uma crítica genealógica (de acordo com uma feliz imagem de Habermas) que encontre, hoje, dinâmicas de subtração e liberação das relações de poder dominantes.
Mas não é deste último que se pretende fazer a história de uma possível relação com o pensamento anarquista, mas sim de Foucault, em relação ao qual o movimento sempre ostentou uma certa desconfiança - recordo-me de minha desavença para com Mássimo La Torre em Umanità Nova (nº. 19 de 21/5/1978 e nº. 28 de 30/7/1978, para ser preciso) - que hoje não haveria existido graças à atividade do CSOA. Godzilla de Livorno, que organizou, entre outras coisas, algumas reuniões delicadas ao autor francês, publicou as atas da primeira, e promoveu a publicação, junto às edições Biblioteca Franco Serantini de Pisa, das relações anuais dos cursos acadêmicos sobre Foucault no Collège de France (cátedra de História dos Sistemas de Pensamento, criada pelo próprio em 1970) - (2 Respectivamente, A partire da Foucault. Studi su Potere e Soggettività, organização de Andrea Grillo, La Zisa, Palermo, 1993; e Resumés de Cours - 1970-1982, BFS, Pisa, 1994).
A auto-identificação de Foucault como “anarquista de esquerda” não deve nos enganar: indica menos um reconhecimento de pertencimento a uma identidade a ser revelada que uma tensão na direção que chamaria posteriormente de “insurreição dos saberes sujeitos.” De resto, nas milhares de páginas que, entre livros, artigos e entrevistas, compreendem os "ditos e escritos” (3 É recente a coleção completa, intitulada exatamente "Dits et Ecrits” organizada por Daniel Defert e François Ewald, 4 vol., Gallimard, Paris, 1994), há raros traços de anarquismo e anarquistas. Por exemplo, Foucault cita uma só vez o nome de Bakunin (ao fazer uma conexão com Wagner, em um artigo sobre a versão do Anel de Nibelungo apresentada por Pierre Boulez, famoso compositor) - (4 Michel Foucault, L’immaginazione dell’Ottocento, in Corriere della Sera, 30/9/1980, nº. 223, p. 3) , e de Kropotkin (uma citação das Confissões de um Revolucionário, assinalada por Georges Canguilhem, seu professor e estudioso de epistemologia) - (5 Michel Foucault, Sorvegliare e Punire (1975), trad. ít. Einaudi, Turim, 1976, p. 206).
Além disso, Foucault conhece certamente os intelectuais Etienne de La Boétie (6 Michel Foucault, Monstrosities in Criticism, in Diacritics, I, nº. 1, 197 1) e Pierre Clastres (7 Michel Foucault, As Malhas do Poder (1976), in Barbarie, nº. 4-5, 1981182) , e um outro conhecido anarquista Noam Chomsky, com o qual teve uma conversação em 1971 em um colégio holandês (em Eindhoven) intermediado pelo anarquista Fons Elders (8 Noam Chomsky - Michel Foucault, Giustizia e Natura Umana, organização de Salvo Vaccaro, trad. it. ILA Palma/ Associate, Palermo/Roma, 1994). Apesar de discordar das posições políticas de Chomsky, declaradamente anarquista, Foucault não cita o anarquismo durante a conversa, nem mesmo como pano de fundo ou ponto de polêmica. En passant, mencionamos uma entrevista de 1970 na neo-Universidade de Vincennes, quando Foucault, no meio de uma polêmica dirigida contra os docentes de filosofia de esquerda, recorda como também no início do século era censurado aos docentes de filosofia “divulgar idéias anarquistas” (9 Le Piège de Vincennes, entrevista de P. Loriot, Le Nouvel Observateur, nº.274, 9-15 de fevereiro de 1970).
2 "Não sou Anarquista na medida em que..."
No que diz respeito mais especificamente ao anarquismo, é possível recuperar uma discussão ocorrida durante algumas conferências sobre o poder, verdade e a forma jurídica que Foucault ministrou de 21 a 25 de março de 1973 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (10 Desta conferência, existe uma versão, italiana, organizada por Lucio D'Alessandro, La Verità e le Forme Giuridiche, La Città del Sole, Napoli, 1994, que todavia não leva à discussão ampla, encontrável em Dits et Ecrits, cit., v 11, p. 623-46). No debate após as conferências, alguns interlocutores pareciam ver em Foucault uma certa aversão à idéia de transformar o caráter repressor do poder em fetiche, sem distingui-lo do aspecto produtivo de positividade. “Seria mais prudente analisar as condições negativas e positivas do poder, pois, se não fizesse esta distinção, recuperaria simplesmente uma base anarquista ou uma versão acadêmica, erudita de um pensamento hippie, em uma forma mais contemporânea” (11 Ibidem p. 641-2).
Foucault responde a uma polêmica levantada, que julgava não haver nada de mal com o pensamento anarquista ou hippie - e de acordo com um interlocutor até mesmo o pensamento do filósofo Gilles Deleuze (autor, entre outras obras, de Anti-Édipo, juntamente com Félix Guattari) é hippie e anarquista - fazendo a distinção entre poder opressivo e poder produtivo, dando ênfase a este último. “Eu não aprovo a análise simplista que consideraria o poder como uma coisa só. Foi dito a esse respeito que os revolucionários procuram tomar o poder. Pois bem, eu seria muito mais anárquico quanto a isso. Costuma-se dizer que eu não sou anarquista na medida em que não admito essa concepção totalmente negativa do poder; mas não concordo com vocês quando dizem que os revolucionários procuram tomar o poder” (12 Ibidem, p. 642).
Foucault considerou diversas vezes o anarquismo durante o decorrer das aulas do primeiro semestre de 1976 dedicado ao tema: “Defender a sociedade.” Na aula de 7 de janeiro de 1976, sobre algumas lutas da época contra a justiça e os aparatos judiciários e psiquiátricos (Foucault, além de percorrer o caminho histórico do nascimento das prisões, estava pessoalmente engajado nos GIP - Grupos de Informação sobre as Prisões - e também estava ligado ao movimento da antipsiquiatria de Basaglia, Szasz, Cooper, Laing e outros) ao lado daquelas ligadas à justiça de classe, de tradição maoísta, ou aquelas de fundo psicanalítico, inspiradas nas indicações de Reich e Marcuse, Foucault lembra aquelas que "se relacionavam de forma precisa à temática anarquista” (13 Michel Foucault, Difendere la Società, trad. it. Ponte alle Grazie, Firenze, 1990. p. 21. Em 1983, Foucault aqui retorna de forma mais detalhada, descrevendo algumas tipologias comuns de lutas antiautoritárias de oposições ao poder, ou seja, “lutas anárquicas”, esclareceu “transversais”, “imediata” (seja no sentido que atingem o aspecto do poder mais próximo aos indivíduos, seja no sentido que não adiam para o futuro) ligadas aos “efeitos do poder enquanto tais” (cf. Perché Studiare il Potere: La Questione del Soggetto, in Aut Aut, nº. 205, 1985, p. 2-10, especialmente p. 5)).
Ao final do ciclo de 12 aulas, no dia 17 de março de 1976, Foucault enfrentou de forma problemática o “componente racial” (e também racista) das diversas formas de socialismo francês do século XIX, incluindo aquelas fourierianas e anarquistas (até o caso Dreyfus, incluindo a Comuna) - (14 Ibidem, p. 170-2. A transcrição das lições mostra as argumentações da tese foucaultiana, sem prová-la ou verificá-la através das cabeças da época. Por parecer estravagante uniformizar os diversos socialismos dos oitocentos, seria interessante investigar a plausibilidade e veracidade do anti-semitisino, que atinge apenas o anarquismo).
3 Vigiar e Punir
É mais ou menos neste período, quando o anarquismo estava ligado à política da ilegalidade delinqüêncial da segunda metade do século XIX, que Foucault terminou seu livro sobre a prisão: as polêmicas e as discussões desenvolvidas na primeira metade do século “serão despertadas pelo eco de resposta aos anarquistas quando, na segunda metade do século XIX, colocaram o problema político da delinqüência tomando como ponto de ataque o aparato penal; quando pensaram poder reconhecer nela a forma mais combativa de recusa à lei; quando tentaram nem tanto heroicizar a revolta dos delinqüentes como desconectar a delinqüência da legalidade e ilegalidade burguesas que a haviam colonizado; quando quiseram restabelecer ou constituir a unidade política das ilegalidades populares” (15 Michel Foucault, Sorvegliare e Punire, cit., p. 323).
Foucault voltou ao tema do anarquismo em novembro de 1977, por ocasião da súbita extradição para a Alemanha do advogado francês Klaus Croissant, impedido de exercer sua profissão e acusado de cumplicidade com a RAF, refugiado na França por asilo político, preso e finalmente expulso depois do aparecimento dos cadáveres de Baader, Meinhof e companheiros (16 Michel Foucault, Vat-on Extrader Klaus Croissant?, in Le Nouvel Observateur, nº. 679,14-20/11/1977) . Denunciando a traição da França, tradicional terra da tolerância e de asilo por questões políticas, Foucault recupera as origens das medidas de repressão nos acordos dos governos entre os séculos XIX e XX, anos marcados pelo “terror” dos anarquistas (no duplo sentido da expressão). Foucault denuncia a continuação de tais políticas, apesar de nesse meio-tempo terem-se constituído as Declarações dos Direitos do Homem de 1948, a convenção européia de 1957 e, em geral, leis (aparentemente) mais liberais em relação àquelas da virada do século.
Em uma tournée pelo Japão, em 1978, Foucault deu algumas conferências sobre o poder, já que a tradução para o japonês de Vigiar e Punir e A Vontade de Saber suscitou um grande interesse. Falando em 27 de abril sobre a “filosofia analítica da política”, Foucault em um certo momento toca um exemplo bem atual para o público local: o embate popular contra a construção do novo aeroporto de Tokio em Narita. Naquelas lutas, nota Foucault, não se trata de colocar em prática os princípios leninistas da aliança mais fraca ou do inimigo mais importante. “São lutas imediatas” que não remetem a um momento futuro libertador e revolucionário, “o desaparecimento das classes ou do definhamento do estado” que possam ser delegados como “a solução dos problemas”; “com relação a uma hierarquia teórica de motivações ou a uma ordem revolucionária que polarizaria a história e que articularia hierarquicamente os momentos, pode-se dizer que estas lutas são anarquistas, inscrevendo-se em uma história imediata, aceita e reconhecida como infinitamente aberta” (17 Michel Foucault, Dits et Ecrits, cit., p. 546).
Exatamente um mês depois, em 27 de maio de 1978, em frente a um auditório, dessa vez de especialistas, na Sociedade Francesa de Filosofia, Foucault deu uma conferência entitulada “O que é a crítica?”, referindo-se ao Iluminismo dos dias de ouro nos séculos XVII e XVIII. Interrogando-se sobre o governo e sobre a vontade de subtrair-se ao governo de qualquer tipo, Foucault, por solicitação de um ouvinte, detém-se na base do “anarquismo fundamental”, ou seja, sobre qual a motivação e o horizonte no momento de sua análise genealógica do surgimento de uma atitude crítica e de uma “vontade” de não se fazer governar - que, de fato, define o anarquismo. Foucault não esclarece se de fato o sabia; afirma simplesmente que “não o excluía em absoluto”, mesmo não sendo esta sua perspectiva (18 Michel Foucaul, Qu'est-ce que la Critique?, sessão de 27 maio de 1978, Bulletin de la Socíété Française de Philosophie, LXXXIV , nº. 2, abril-junho de 1990, especialmente p. 59. recentemente recordou tal momento Wilhelm Schmid, De l'Ethique comme Esthétique de L’existence, Magazine Litéraire, nº. 325, outubro 1994, p. 36-9, especialmente p. 38).
Enfim, em uma entrevista na Bélgica em 22 de maio de 1981 durante uma série de seis conferências na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Louvaine, Foucault revelou em um certo momento como uma certa esquerda francesa e européia tenha se esclarecido com o subproletário, enquanto outra tenha tomado partido do proletariado, renegando uma potencial solidariedade, especificamente quanto ao estilo de vida e preferências sexuais. Foucault disse com respeito a este fato, que “acaba sendo verdade que há duas grandes famílias ideológicas que jamais conseguiram entender-se: de um lado, os anarquistas, de outro, os marxistas”. E quando os entrevistadores arriscaram fazer um paralelo com o “anarquismo libertário”, Foucault replicou: “É o que vocês gostariam que fosse. Não, eu não me identifico com os anarquistas libertários, porque há uma certa filosofia libertária que acredita nas necessidades fundamentais do homem. Eu não as quero, me nego acima de tudo ser identificado, ser localizado pelo poder” (19 Michel Foucault, Dits et Ecrits, cit., p. 664 e 667).
4 Herético, Iconoclasta, Libertário
Parece-me que são somente estas as passagens em que Foucault explícita, cita ou mostra algum conhecimento sobre o anarquismo, sem na verdade jamais aprofundar ou demonstrar uma atenção específica e direta. Além disso, uma entrevista em Berkeley em 1983 (um ano antes de morrer de Aids), Foucault parece ignorar as solicitações que lhe são feitas para que se declare politicamente. Na maioria das vezes, os seus interlocutores associam às suas obras valores “anarquistas” (por exemplo, Habermas o considera como “o herdeiro anárquico” de Nietzsche, assim como Heidegger representaria o herdeiro conservador); e Foucault, afirmando interessar-se fundamentalmente pela ética, e se tanto por uma política enquanto ética, parece mostrar sua indiferença quanto às tentativas de rotulá-lo: “Fui considerado um tecnocrata, agente do governo gaullista pelos democratas e pelos gaullistas, pela direita, como um perigoso anarquista; até mesmo um docente americano indignou-se porque nunca um veterano marxista como eu, certamente um agente da KGB, seria convidado pelas universidades americanas, e assim por diante” (20 Politics and Ethic: an Interview, in Paul Rabinow (Ed.), The Foucault Reader. Penguin, Londres 1984, p. 373 e p. 376. Em entrevista concedida a Paul Rabinow em maio de 1984, apenas um mês antes de morrer, analogamente Foucault se manifesta de maneira irônica sobre as legendas políticas arregimentadas no curso dos anos, acrescentado: “nenhuma destas imagens é importante em si; tomadas juntas, de outro lado, significam qualquer coisa. E devo admitir que me alegra bastante aquilo que desejam tentar” (Polemics, Politics and Problematizations.- an Interview, in ibidem p. 384)).
Como justificar ou motivar aquela imagem dos anos 60, anterior à época de seu famoso engagement político (em favor dos presos, dos loucos psiquiátricos, dos dissidentes dos países da Europa oriental, dos boat-people, dos opositores do franquismo, etc.)? Somente um típico vício intelectual? Vontade de épater la bourgeoise? Além da intenção de participar do concurso mundial para rotulá-lo, em que sentido Foucault participa de uma certa idéia de anarquismo?
Provavelmente a resposta não está contida em uma obra em particular: deve ser procurada em uma bibliografia de citações de anarquistas e de outras relacionadas a esse pensamento, como foi sumariamente elaborado até agora. Mesmo porque, as intervenções dos críticos e autores (alguns deles conhecidos pelo próprio Foucault) que testemunham positiva ou negativamente sobre um certo anarquismo teórico e político de Foucault, são muito mais numerosas (valorativa e qualitativamente) que as raras citações textuais dele próprio.
Enquanto algums destes autores se limitam a dar-lhe uma rotulação genérica, como “herético”, “iconoclasta” (O'Connor), “libertário” (Sawicki), ou até mesmo indicando uma acepção crítica/depreciativa (Cohen, Arato, Rorty, Racevskis, Hacking), que no final das contas são bastante semelhantes, outros esforçam-se para entrar no mérito destas posições (21 Veja-se respectivamente: Tony O'Connor, Foucault and the Transgression of Limits, in Hugh Silverman (Ed.), Philosophy and non-Philosophy since Merleau-Ponty, Routledge, Londres, 1988, p. 136-5 1, especialmente p. 136; Jana Sawicki, Disciplining Foucault, Routledge, Nova Iorque, 1991, especialmente p. 34; falamos de "erro anárquico" Jean Cohen - Andrew Arato, Civil Society and Political Theory, MIT Press, Cambridge, 1992especialmente p. 462; Richard Rorty, Foucault et l'Epistémologie, in David Couzens Hoy (Ed.), Michel Foucault. Lectures Critiques, De Boeck-Wesmael, Bruxelas, 1989, p. 55-63, especialmente p. 62 (onde se encontra escrito sobre um “galanteio radical complacente”); Karlis Racevskis, Michel Foucault and the Subversions of Intellect, Cornell U. P., Ithaca, 1983, especialmente p. 101 (“retórica de igualitarismo e libertarismo”); Ian Hacking, L'Archéologie de Foucault, in David Camns Hoy (Ed.), op. cit., p. 39-53, especialmente p. 52).
Um filão abre caminho para um “anarco-nietzscheanismo” (22 Veja-se Terry Hoy, The Moral Ontology of Charles Taylor: contra, Deconstructivism, in Philosophy and Social Criticism, XVI, nº. 3, 1990, p. 207-25, especialmente p. 215; Harry Redner, The Infernal Recurrence of the Same: Nietzsche and Foucault on Knowledge and Power, in Marcelo Dascal - Ora Gruengard (Eds.), Knowledge and Politics, Westview Press, Boulder, 1989, p. 291-315, especialmente p. 300 e 307; John Rajchman, Nietzsche, Foucault and the Anarchism of Power, in Semiotexte, III, nº. 1. 1978, p. 96-107) . A ligação Nietzsche -Foucault é determinada, entre outras coisas, por sua comum impostação metodológica de pesquisa filosófica, histórica e, em um sentido amplo, social, denominada genealogia Esta última tenta descobrir as condições materiais e discursivas de uma certo evento em sua singularidade, individualizando a proveniência das “palavras” e das “coisas” inerentes a este evento (querendo-se parafrasear o título de um célebre livro de Foucault).
Onde pode surgir, de forma plausível, o elo de conjunção entre nietzscheanismo (isto é uma posição teórico-interpretativa que ultrapassa a limitada fidedignidade ao texto do filósofo alemão) e o anarquismo? Provavelmente na não utilização da dialética por parte de Nietzsche e Foucault, os quais não crêem e nem mesmo usam o método dialético (em qualquer versão em que este apareça: hegeliana, marxista e historicista) para derivar do presente aquilo que ele negou ou exclui. Enquanto a dialética intui uma continuidade rompida entre o existente e a utopia, de tal forma que esta última alimenta-se da inversão da primeira, Nietzsche e Foucault acreditam ser oportuno cortar todo elo de continuidade para que o não-ainda-existente não seja prejulgado conservando elementos do presente.
Trata-se de uma interpretação da possível leitura anarquista de um nietzscheanismo contemporâneo (muito francesa, mediada por Deleuze, reelaborando Heidegger), que é elaborada pela combinação entre o uso do texto de Nietzsche e a acepção de Foucault.
Um ótimo intérprete dessa teorização é sem dúvida Reiner Schürmann, que refaz o caminho de formação do sujeito no pensamento foucaultiano. Nele, o sujeito é efeito de um duplo processo de sujeição, segundo um exercício de poder ativo e um passivo. Negando ambos os momentos, Foucault esboça uma perspectiva de cura libertária do sujeito, que não deve deixar-se subjugar nem deve subjugar outros (diferentemente do sujeito grego da polis, cujo cidadão dominador, masculino, homem público domina a mulher esposa no oikos). O sujeito “anárquico”, de acordo com Schürmann, é aquele que se autoconstitui nas lutas contra os dispositivos disciplinares de poder e analíticos da verdade, ou seja, que determinam a torsão das relações sociais com base hierárquica e autoritária, fixando aquilo que é possível ou não, que é ou não lícito por ser verdadeiro (23 Cf. Reiner Schürmann, Se Constituer Soi-Même comme Sujet Anarchique, in Les Etudes Philosophiques, nº. 4, 1986, p. 451-471: “O sujeito anárquico se constitui através de micro-intervenções diretas contra as configurações recorrentes da subjeção e da objetivação” (p. 470)).
Foucault pretende declarar a “morte do homem”, soberano centralizador metafísico: os sujeitos constituem-se no interior de relações de saber e poder prefixadas, que cada um encontra e herda, e das quais é necessário libertar-se sem que se tenha que reconstituir a mais primitiva posição de soberania centralizada para poder somente então dominar e filtrar qualquer processo social e cultural.
5 Para uma Política Antiestatal
Há uma outra corrente que vê em Foucault um “anarco-existencialismo”. A escritora feminista inglesa Kate Soper, por exemplo, demonstra a equivalência da “dimensão anarco-existencialista” de Foucault com a “lógica emancipativa e utópica do feminismo”, já que ambos aspiram “a uma libertação anárquica do domínio” (24 Kate Soper, Productive Contradictions, in Caroline Ramazanoglu (Ed.), Up Against Foucault, Routledge, Londres, 1993, p. 29-50, especialmente p. 37. Em relação à utopia da mudança, a semelhança entre Foucault e o utopismo socialista e anárquico, como por exemplo aquele de Charles Fourier, é posta em discussão por Alan Megill, que faz notar como em Foucault não existe uma visão final de libertação ou de felicidade (Alan Megill, Prophets of extremity, University of Califomia Press, Berkeley, 1985, p. 197)).
Hayden White compara algumas passagens de Foucault sobre a defesa do indivíduo em relação ao Estado às passagens de Albert Camus sobre o “homem em revolta”, nas quais se opõe “ao totalitarismo auspiciando a anarquia como uma adorável alternativa” (25 Hayden White, Foucault's Discourse: The Historiography of AntiHuinanism, in The Content of the Form, Johns Hopkins U. P., Baltimore, 1987, p. 128).
Philip Knee, por sua vez, faz um paralelo entre um pretenso anarquismo sartriano e o anarquismo “niilista” de Foucault, o primeiro “de inspiração marxista, no sentido do anarquismo antipolítico do jovem Marx quando critica a separação da política para uma esfera distorcida da economia. (...) E nesse sentido está muito próximo da idéia anarquista de uma política antiestado, sem governo nem lei, como se encontra, por exemplo, na crítica de Proudhon a Rousseau”. Dessa forma é entendida sua aproximação ao anarquismo “niilista” de Foucault, que exalta os excluídos, as resistências ao poder (qualquer que seja a forma destas), a provocação permanente de um desafio libertário (26 Philíp Knee, Le Problème Politique chez Sartre et Foucault in LavalThéologique et Philosophique, XL VII, 1, fevereiro de 1991, p. 83-93, especialmente p. 90-1).
Por fim, Alex Callinicos, retomando o “anarco-nietzscheanismo”, o distingue “dos tipos precedentes de anarquismo - especialmente a versão atomista de Stirner.. A diferença consiste no fato de Foucault e Deleuze terem substituído o sujeito individual, cuja soberania e unidade substancial Stirner e companheiros não só mantinham, bem como levavam ao extremo, ao se referir a uma multiplicidade de sujeitos” (27 Alex Callinicos, Is There a Future for Marxism?, McMillan, Londres, 1982, p. 111. Retorne-se acima Fred R. Dallmayr, Democracy and Post-modernism, in Human Studies X, 1986, p. 143-170, especialmente p. 166). Parece uma diferença insignificante, mas trata-se de fato não só da pluralidade, mas sim da qualidade dos sujeitos: na teoria de Foucault e, principalmente na de Deleuze, o sujeito pode reconstituir-se somente de forma descentrada, nômade, sem deixar-se recolocar no círculo mágico da sua institucionalização simbólica e jurídica.
Wolfgang Essbach também estabelece orna ligação Stirner-Foucault, ancorada em Urs Marti, que afirma detectar em Foucault “simpatias anarquistas” reconhecendo-as naquelas (raras) passagens em que Foacault falou dos anarquistas, além da predileção e da solidariedade para com grupos espontâneos e movimentos experimentais, típicos de 1968 (28 Wolfgang Essbach, Gegenzüge, Frankfurt, 1982; Urs Marti, Michel Foucault, Beck, Munique, 1988, especialmente p. 125-7).
O historiador francês Jacques Léonard, que polemizou com Foucault a respeito da metodologia histórica, não hesita em afirmar que "o autor de Vigiar e Punir situa-se na linha de pensadores políticos individualistas que criticam firmemente tais noções [de poder]. Não seria difícil indicar que os seus precursores são os anarquistas do século XIX que denunciam com intransigência quase todas as formas de poder: patronal, estatal, policial, judiciário, clerical, médico, jurídico, paterno, colonial...”. E lembra os artigos de Sébastien Faure em Le Libertaire, os de Jean Grave em Les Temps Modernes, de Paul Robin e de Albert Thierry, além de reproduzir por inteiro a célebre idéia de Proudhon “Ser governado significa...”, à qual confronta de forma indireta a crítica foucaultiana das relações dominantes de poder (29 Jacques Léonard, Lo Storico e il Filosofo, in Michelle Perrot (Organização), Limpossibile Prigione, trad. it. Rizzoli, Milano, 1981, p. 20 e notas, 17 e 18 e p. 240).
6 Política e/ou Ética
O individualismo reivindicado por Foucault não é, entretanto, político, mas ético. A possibilidade que cada um tem de traçar o trajeto da própria existência, não como elemento de uma estratégia política, que ao mesmo tempo substitui e enfraquece a violência bélica introduzindo lógicas distorcivas e dissuasivas, mas sim como obra de arte: a vida como criação estética individualizada que comunica, solidária e reciprocamente, as diferentes formas de cuidado de si não-hegemônicas.
Dana Polan se interroga, portanto, se a posição foucaultiana consiste “em uma anarcopolítica na qual tudo aquilo que não é sistemático é valorizado como subversivo, ou seja é uma ironia infinita muitas vezes próxima a um gélido niilismo” (30 Dana B. Polan, Fables of Transgression: The Reading of Politics and the Politics of Reading in Foucauldian Discourse, in Boundary 2, X, nº. 3, primavera 1982, p. 369). Quase como resposta, Alan Megill sustenta que “a recusa do sistema por parte de Foucault poderia induzir-nos a considerá-lo anarquista, embora seu anarquismo não presuma, como o anarquismo clássico, uma ordem subjacente que deva ser expressa para que prevaleça a harmonia: em Foucault não existe uma ordem natural, nem uma harmonia possível” (31 Alan Megill, op. cit., p. 255. Por seu lado Edith Kurzweil afirma que “o seu pensamento é completamente anárquico” (Edith Kurzweil, Michel Foucault's History of Sexuality as Interpreted by Feminist and Marxists, Social Research, LIII, nº. 4, inverno 1986, p. 657). Richard Porty recupera, por outro lado, “a sua política anárquica”, “indissociável do trabalho histórico”: “trata-se de denunciar a sutileza dos mecanismos repressivos ativados pelas classes dirigentes” (32 Richard Rorty, Foucault et L’épistémologíe, cit., p. 6 1. “Na medida em que é possível atribuir uma política ao Foucault francês, deve-se falar de crenças anárquicas mais que liberais (...) são estes passos ‘anárquicos’ que os seus admiradores franceses parecem agradecer mais que tudo". (Richard Rorty, Identità Morale e Autonomia Privata: il Caso Foucault in Scritti Filosofici II, trad. it. Laterza, Bari, 1993, p. 261 e p. 263). Veja-se outrossim J. Simpson, Archaeology and Politicism: Foucalt's Epistemic Anarchism, in Man and the World, XXVII, nº. 1, 1994).
“Mas Foucault é realmente um propugnador de seu comportamento anarconiilista?”, questiona Michael Walzer. Acreditando encontrar nele um meio-termo entre a posição teórica e o engajamento político, Walzer critica a incongruência entre expressão e empenho, entre teoria crítica, ao seu ver incompleta e contraditória, e o ímpeto generoso claramente perceptível. “Quando Foucault é anarquista, o é tanto de um ponto de vista moral quanto político; moral e política, para ele, caminham lado a lado: a culpa e a inocência são criadas pelo código jurídico, a normalidade e a anormalidade pelas disciplinas científicas. Abolir os sistemas de poder significa abolir de uma só vez as categorias jurídicas, morais e também científicas. Mas o que sobra, então? Foucault não acredita, como faziam os primeiros anarquistas, que o ser humano livre sei a um sujeito de um certo tipo, bom por natureza e sinceramente sociável -, pelo contrário, está convencido que não existe algo que possa ser definido como um ser humano livre, que não existam homens ou mulheres naturais. Homens e mulheres são sempre criações sociais, produtos de códigos e disciplinas. E assim o radical abolicionismo de Foucault, se é sério, possui menos um caráter anarquista que niilista” (33 Michael Walzer, La Politica di Foucault in L’intellettuale Militante, trad. it. Il Mulino, Bolonha, 1991, respectivamente p. 258 e 257-8. Veja-se também Introduzione di David Couzens Hoy na coleção dos textos por ele organizada, cit., p. 22).
7 Em 68
José Guilherme Merquior parece concordar com este julgamento, falando inclusive de um “niilismo de cátedra” (da mesma forma que se falava de “socialismo de cátedra”, provocação criada pelos marxistas revolucionários do início do século contra os teóricos reformistas e social-democratas). Merquior identifica, entretanto, um neo-anarquismo em Foucault: “O rótulo de libertário é efetivamente o melhor para indicar Foucault enquanto teórico social. Mais precisamente, ele foi (mesmo que não tenha utilizado essa palavra) um anarquista moderno” (34 José Guilherme Merquior, Foucault, trad. it, Laterza, Bari, 1988, p. 162) . Segundo Merquior, há “pelo menos três momentos em que Foucault aderiu à atmosfera efervescente do anarquismo que inspirava a revolta dos estudantes (e fez alçar a bandeira do anarquismo na Sorbonne ocupada em maio de 1968)”: a simpatia pelas formações políticas descentralizadas, espontâneas, concentradas em experiências particulares, mais do que na global luta de classes, e, “por último, e em sintonia ainda mais acentuada com a mais pura tradição anarquista, Foucault era convicto na sua falta de crença nas instituições” (mesmo naquelas revolucionárias, como demonstra a dissensão em relação aos maoístas no que diz respeito à justiça revolucionária, concebível somente além dos ritos, estruturas, tribunais e coreografias típicas da burguesia) - (35 Ibidem, p. 162-3, O autor se refere a uma discussão em 1972, encontrável em Michel Foucault, Microfisica del Potere, Einaudi Turim, 1977, p. 71-106. Contrariamente ao que se pode imaginar, Foucault não estava na França em maio de 1968 (mas em Tunis) e não exerceu então qualquer influência sobre o movimento, se bem que apenas sucessivamente).
“Mas Foucault não se limitou a seguir o anarquismo. Na realidade o que o tomou um neo-anarquista foi a colocação de dois novos aspectos junto à teoria clássica do anarquismo. Em primeiro lugar o seu sincero antiutopismo. Os principais pensadores anárquicos do século XIX eram também grandes utopistas. Apesar de nutrir profundas suspeitas com relação às instituições impessoais, preocuparam-se em propor novas formas de vida econômica e social, como o mutualismo de Proudhon ou as cooperativas de Kropotkin. O neo-anarquismo de hoje, parece ser absolutamente negativo. Parece não ter nenhuma pars construens, as suas crenças consistem naquilo que recusa, e não em idéias positivas” (36 Ibidem p. 163-4. “O fantasma de Bakunin, o romântico incendiário que em seu coração amava voluptuosamente a destruição, talvez tenha no fim prevalecido sobre o são e humano espírito de Kroptkin?...” (p. 164)).
Em segundo lugar, Merquior aponta para o predomínio do componente irracional nas “bases científicas” que orgulhavam Kropotkin, provavelmente reflexo do niilismo da modernidade. Negativismo e irracionalismo, conclui Merquior, são os elementos de fundo na crítica radical da contracultura contemporânea, que Foucault e Marcuse representam, oficializando seu matrimônio com o anarquismo, com prejuízo, assim, para o marxismo.
É importante, todavia, chamar a atenção para o motivo pelo qual Foucault não dá espaço para o utopismo. Como é possível subtrair da conversa com Chomsky, o temor de que a prefiguração imaginária de uma outra sociedade contenha de forma fantasmagórica (ou seja, como retomo, no sentido psicanalítico) elementos de ponderação já presentes na constelação de idéias, discursos e valores que se pretende negar, lhe sugere imediatamente a recusa de todo “o conjunto desta sociedade”, mesmo que esta seja encarada como fonte original da qual se distanciar. Somente a destruição da “lei do ‘até hoje’” (37 Entrevista com Michel Foucault (Actuel, 197 1, trad. it. in AA. VV., Aspettando la Rivoluzione, Guaraldi, Firenze, 1975, p. 19-38, especialmente p. 37-8) poderá apresentar um terreno sobre o qual constituir uma diferente articulação das relações sociais não correlacionadas a hierarquias dominantes e a formações hegemônicas de soberania.
De qualquer forma, as lutas do presente constituem o possível espaço de mudança, pois para Foucault são significativas as práticas que determinam uma ordem vigente. O percurso que vai do geral ao particular, típico das manifestações que aspiram alcançar o ápice do poder para promover a modificação da qualidade de vida, é drasticamente invertido por Foucault que dedica atenção específica à microfísica das relações de poder, cujo exercício atinge e atravessa indivíduos constituídos em sua materialidade, que seriam em outras condições potenciais vetores de dissonância dos discursos e práticas afirmados.
8 Novas formas de subjetividade
Ao final deste reconhecimento, é possível chegar de forma suscinta a algumas conclusões (parciais) sobre a relação Foucault-anarquismo, que vão além de uma mera identificação ou designação de idéias. Fiéis à busca de “otoutils” na “boîte” de seu pensar, é possível evidenciar o que dentro das idéias do autor é útil para uma elaboração contemporânea do anarquismo.
E indubitavelmente a analítica do poder esboça mapas de relações de poder assimétricas, hierárquicas, reversíveis, biunívocas, que mais se assemelham a uma sensibilidade libertária (como mutação, por exemplo, do pensamento radical das mulheres) e servem para uma crítica, em linhas anarquistas da dominação.
Foucault não nos fornece uma teoria geral, já que acredita que o poder não consiste em uma substância possuída a ser utilizada no momento oportuno, mas sim em uma particular relação topológica, ou seja uma relação entre sujeitos com referência a um específico campo de possibilidades tanto materiais (práticas, comportamentos, vínculos normativos, etc.) quanto discursivas (idéias, valores, imaginários, etc.). A relação de poder assim constituída engloba elementos típicos do domínio moderno: anonimato, transversalidade, transferibilidade, integrabilidade, fascinação. Não há nenhuma garantia absoluta de isenção do exercício de poder, pois são as práticas em que cada um está imbuído que ditam a posição individual no campo de tensões tomado em consideração (família, escola, prisão, hospital, etc.).
Torna-se importante, então, mudar comportamento, alterar as práticas, adotar estilos de vida diferenciados, subtrair-se ao grilhão disciplinar que regulamenta a existência singular e coletiva dos indivíduos nos vários e específicos âmbitos da vida cotidiana e institucional.
Não é verdade que Foucault não indica caminhos de forma positiva. Quando enuncia a famosa frase sobre a “ morte do homem”, entende referir-se à dimensão histórico-moderna do sujeito soberano que superinstitucionalizou corpos e desejos de cada indivíduo, dissociado de vínculos de gênero, identidade, grupo étnico. O Iluminismo tinha-nos prometido o resgate do homem da menoridade à qual tinha sido reduzido, permitindo-lhe alcançar a autonomia desejada na esfera intelectual, política e social. As relações de poder não são estranhas a esta estratégia capiciosa que utiliza a liberdade para revertê-la contra si mesma: “o que se coloca é o seguinte: de que forma é possível desligar o elo entre desenvolvimento das capacidades e intensificação das relações de poder?” (38 Michel Foucault, What is Enlightenment?, in Paul Rabinow (Ed.) op. cit., p. 48).
Subtrair-se às relações de poder torna-se praticável somente para as singularidades que não seguem os mesmos horizontes constitutivos do individualismo moderno (em última instância sempre os burgueses enquanto proprietários). Dessa forma, sujeitos nômades (tomando a expressão emprestada de Deleuze) indicariam a presença de um corpo de um desejo que não se fixam a nada, não no sentido niilista do querer o nada, pelo contrário: não são constituídos por alguma coisa e sim se constituemautonomamente a partir de um “cuidado consigo mesmo” simétrico a uma interpenetração recíproca e horizontal para com o outro.
“Sem dúvida, nos dias de hoje, o objetivo principal não é o de descobrir o que somos, mas sim o de recusar aquilo que somos. Devemos imaginar e construir aquilo que poderíamos ser, para liberar-nos deste tipo de “dupla ligação” política que são a individualização e a totalização simultânea das modernas estruturas de poder. A conclusão seria então que o problema político, ético, social, filosófico dos dias de hoje não é aquele de tentar libertar o indivíduo do Estado e das instituições estatais, mas tentar nos libertar tanto do Estado quanto do tipo de individualização a ele vinculada. Devemos promover novas formas de subjetividade recusando o tipo de individualidade que nos foi imposto por tantos séculos” (39 Michel Foucault, Perché Studiare il Potere, cit., p. 9-10 (tradução italiana ligeiramente modificada)).
cooperação.sem.mando/coletivo.sabotagem

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