hypomnemata 135
Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 135, julho de 2011
Tecnologias do governo das ruas
Desde março deste ano uma série de notícias tem destacado as operações de recolhimento dos chamados usuários de crack em regiões das grandes metrópoles, em especial São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília.
A atual discussão ganhou amplitude desde a resolução da prefeitura do Rio de Janeiro, por meio da Secretaria de Assistência Social e com o aval da 1ª Vara da Infância, que determinou o recolhimento para tratamento, respaldada no argumento sob alegação de suas prerrogativas quanto à proteção de crianças e adolescentes.
Ocorre que mesmo antes da resolução, que data de maio de 2011, só no Rio de Janeiro, ocorreram 10 operações como esta, recolhendo cerca de 760 pessoas, entre as quais, 169 crianças. Tais operações são realizadas pelos funcionários da assistência social da prefeitura, com apoio das polícias militar e civil, e têm como objetivo encaminhar os chamados usuários para Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e para tratamento psiquiátrico nos Centros de Atenção Psicossociais para Álcool e Drogas (CAPS AD).
São, inquestionavelmente, operações policiais que pretendem limpar as ruas de andrajos incômodos que se avolumam com cachimbos na mão e cobertores a tiracolo. Repetem o que se vê há anos nas ruas do centro antigo de São Paulo, onde as operações limpeza apenas produzem efeitos migratórios locais, que alteram os centros de concentração dos que fumam e vendem crack ou os espalham, temporariamente, em pequenos grupos pela cidade.
De imediato, organizações não-governamentais e associações de profissionais que trabalham com crianças e jovens e com os chamados usuários, manifestaram seu repúdio à política repressiva da prefeitura do Rio de Janeiro.
Destacaram, entre outras questões, como a violação de direitos constitucionais, a ineficiência destas políticas para solucionar o aumento exponencial dos chamados usuários de crack em situação de rua, e apontaram o caráter imediatista de efeito midiático relacionado a uma ânsia do governo em limpar as ruas da presença de indesejáveis.
Entretanto, os que se opõem ao recolhimento reivindicam um acolhimento para o que seria um tratamento eficaz, deslocando o problema do uso de drogas de uma questão de polícia para uma questão de saúde pública, ou nos termos de uma tecnologia de governo das ruas, de uma política de segurança para a saúde pública.
colaborando com a faxina.
A política de recolhimento é de fato repulsiva e dá continuidade às políticas higienistas e campanhas sanitaristas que, desde o final do século XIX, em São Paulo e em outras capitais, fundou bairros e perseguiu crianças, pobres, operários, anarquistas, imigrantes, pretos e prostitutas para cuidar do meio como espaço a ser limpo e asséptico para a boa saúde da cidade.
Hoje, essa limpeza convive com novas estratégias, e as ruas, que antes eram o lugar que devia ser desobstruído e usado apenas como meio de passagem, festejos cívicos estatais e surpreendentes concentrações políticas ou passeatas, tornou-se o alvo de novas tecnologias de governo.
Desviando um pouco o olhar da polêmica entre o recolhimento e o acolhimento, vemos que novas forças já estão dispostas e se operacionalizam como resposta ao que seria uma política repressiva, a suavização da perseguição aos sopitáveis fumadores de crack.
Respondem, do ponto vista legal, às diretrizes da reforma psiquiátrica de 2001, responsável pela implantação, no Brasil, de um modelo assistencial de saúde mental aberto, descentralizado, participativo e em meio às comunidades, e, do ponto de vista das estratégias urbanas, a um novo cuidado com as ruas e seus ocupantes regulares.
Importa relembrar que estas diretrizes respondem, parcialmente, às lutas, antimanicomiais e antipsiquiátricas. Em seus interiores, apareceu a setorização, e a partir disto, abriram-se os flancos para a intersetorialização. Junto às lutas houve uma série de experimentos alucinantes e livres com drogas, experiências de gente que não fazia disso idílio de fim de semana, mobilização cívica com data marcada, ou ilustrações por homenzinhos e mulherzinhas de letra.
Contudo, quando se inicia a setorização são estes cidadãos bem intencionados, os eméritos colaboradores, que se incumbem ou incluem nas políticas de redução de danos, adeptos da assepsia e gestões compartilhadas de governo, pretendendo a abjeta cauterização esterilizada das fissuras na epiderme.
Um documento de setembro de 2010, editado pelo Ministério da Saúde e pela Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, que institui os Consultórios de Rua, dá mostras dessa nova estratégia. Iniciado como experiência da Faculdade de Medicina da UFBA, no interior da revitalização do centro histórico de Salvador, na Bahia, os Consultórios de Rua oferecem tratamento médico-psiquiátrico e assistência social, aos chamados usuários, no próprio local que ocupam.
O documento, que responde ao Plano Emergencial de Ampliação ao Acesso a Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD), de 2009, e ao Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (PIEC), de 2010, sinaliza para redução de danos como principal estratégia de governo para combate ao uso de drogas. Identificam o uso como “epidemia urbana”, associado à “marginalidade avançada”.
A solução indicada por esses planos é a de integrar o serviço de atendimento em saúde mental e aproximar os refratários das instituições de cuidado e tratamento, como os CAPS, contando com o apoio de lideranças locais, ONGs e com um funcionário estratégico a ser recrutado, o redutor de danos.
Segundo o documento: “O percurso dessa população em relação ao contato com as instituições de saúde e sociais muitas vezes se passou através de situações de rejeição devido ao estigma e à falta de acolhimento por parte dos profissionais da rede, gerando afastamento destes serviços formais. O Consultório de Rua apresenta uma proposta que procura ultrapassar essa barreira, a começar pelo fato de os profissionais se dirigirem a essa população em seu próprio espaço de vida, e abrir um campo de fala, ampliando a capacidade de subjetivação dos usuários, considerando a realidade de vida desses sujeitos”.
Pretendem gerar a “identificação dos usuários com o dispositivo de tratamento”, institucionalizando práticas já iniciadas por ONGs de redução de danos que atuam nas ruas de diversas cidades, desde o final dos anos 1990.
Não se trata mais de enviar o usuário ao recolhimento, mas proporcionar, no local mesmo que ocupa, a contenção de suas chamadas atitudes disruptivas e fazer da sedução do cuidado a porta de entrada para a “necessária” internação, sempre reafirmada pelo que se entende por “em último caso”.
Um usuário participativo declarou a uma revista semanal: “Isso aqui é um problema social e de saúde pública, não de segurança. A solução vai sair daqui mesmo, da rua. É como o governo dos Estados Unidos, que passou a recrutar hackers para combater outros hackers”. Eis um equívoco fomentador das medidas atuais.
Não há problema social que não tenha se iniciado como uma questão de saúde pública e segurança já colocada pelo próprio Estado, ou por um proprietário qualquer. Este experto usuário se apresenta na vitrine para colaborar, cuidando do próximo que chegar, com segurança.
Colaborando com empregabilidades.
As internações não irão cessar, assim como o fim último de erradicar o uso de crack continuará sendo a utopia de assistencialistas e repressores, acolhedores e recolhedores, em torno das novas políticas de combate ao crack. Ampliam-se os novos negócios e os novos empregos.
Atualizam-se como novíssimas as mesmas políticas de faxina, desta vez com ênfase maior nas potencialidades dos próprios alvos, atentando para a construção de dispositivos que agreguem a disponibilidade de cada um em se entregar ativamente à causa que pretende salvá-lo.
Mesmo com o investimento nas operações limpeza e no encaminhamento para os CAPS, a prefeitura de São Paulo procura alternativas para eliminar os craqueiros das ruas da cidade, principalmente da região da Luz — de onde, apesar de serem recolhidos, insistem em voltar —, como “parte” do projeto de revitalização das cidades de seus equipamentos urbanos, para almejar o sucesso esperado.
A política da cidade de São Paulo combina o que há de mais “progressista” no campo da saúde mental — o tratamento aberto em meio às comunidades, destinado aos que colaboram — com a sempre renovada tecnologia de controle dos anormais pelo confinamento compulsório, voltada para os refratários à convocação à participação: os usuários que não se ajustam aos novos dispositivos de tratamento.
Ambas não se excluem, completam-se com a retórica humanista ajustada: para melhorar com segurança a qualidade de vida de cada um, da população, da cidade, do planeta.
Os “cuidados” hoje chamados de acolhimento e tratamento, desenhados por políticas públicas e executados tanto pelo governo como pela sociedade civil, atualizam as práticas higienistas na democracia representativa e participativa. Visam continuar agilizando os funcionamentos, via medicina, psiquiatria, polícias e filantropia, mecanismos de prevenção e defesa da sociedade, medicalizando ou encarcerando populações de indesejáveis.
O acolhimento desponta como política humanitarista voltada a pessoas tidas como enfermas vítimas de uma epidemia, enquanto os dados do Ministério da Justiça, recentemente divulgados, indicam que, desde a aprovação da nova — supostamente mais progressista —, Lei de Drogas, em 2006, o número de presos por crimes relacionados ao tráfico de drogas cresceu, superando hoje os “crimes contra o patrimônio” como o principal meio para o encarceramento no Brasil.
Recolhimento ampliado e acolhimento em ascensão pouca surpresas deveriam provocar, quando lembramos que o proibicionismo, desde seus primeiros traços, um século atrás, articula-se e se reforça como um tema, ao mesmo tempo, de saúde pública e de segurança pública.
É assim que o reformismo bem intencionado, orientador das políticas de acolhimento, acomoda-se ao proibicionismo e firma a complementaridade ao endurecimento das práticas de encarceramento.
Não há proibicionismo sem tráfico e, hoje em dia, não há prevenção sem políticas de tolerância.
Colaborando com a institucionalidade inacabada.
As “novas políticas de atenção ao usuário” mostram que não há repressão sem cuidado, polícia sem acolhimento e governo sem a articulação entre as vias de seus exercícios e a disposição dos governados.
Universidades, ONGs, instituições governamentais expandem o governo das ruas pela participação da sociedade civil no governo da cidade e do Estado. No entanto, esse cuidado tão minucioso é incapaz de conter os que vagam pelas ruas e que se movem por zonas definidas e cuidadas da cidade. Por isso, apresenta-se como institucionalidade inacabada, pois também será incapaz de conter o extermínio em lote dos corpos que amanhecem duros nas calçadas dessas ruas governadas.
Mas, desta vez, procura contar com os que se sensibilizam com a situação em que se encontram, e proclamam-se, regularmente, vítimas do destino, da falta de oportunidades, das mazelas da vida na cidade.
Contudo, consumo de crack, para além dos discursos médicos, confina e concentra pela sua própria lógica conectada ao tráfico, exercitando movimentações em cercanias de hotéis baratos ou recolhidos em meio a seus próprios dejetos.
Permanecem em sua vontade de nada, com arroubos de violência estúpida ou condutas de desespero em sua ensimesmada nóia.
Confirmam-se como alvos de compaixão e desprezo de toda sorte. Circulam pelas cidades disponíveis aos pequenos serviços legais e ilegais, a preços módicos estabelecidos por sua efêmera ânsia de fritar.
Mortos-vivos!
A política proibicionista criou o crack como lixo rentável, reciclado da cocaína. O crack, desde final dos anos 1980, uniformizou o consumo de drogas nas ruas.
É raro ver, em São Paulo, meninos e meninas cheirando cola ou thinner, bradando delírios alucinatórios. Hoje, caminham acanhados, buscam as sombras e os buracos, seguem a dispor de quem os fisgue como foram fisgados pela pipadas no cachimbo.
De certa maneira, o crack realiza, antes mesmo das preocupações humanitaristas de cuidadores, o sonho dos que sempre quiseram ver o antigo moleque de rua, reduzido a um farrapo inerte e destroçado, incapaz de dar um pique, uma corrida de fuga ou ataque, e assustado até com a própria sombra. E não seria demais lembrar que as primeiras clínicas e discursos que vitimizam os usuários só passaram a existir depois que o crack vazou o espaço delimitado da rua e passou a preencher o vazio de consumidores da já barateada cocaína das classes médias e altas.
Hoje, há um contingente de esvaziados seres evadidos pronto para ser utilizado como insumo de políticas de cuidados médicos, exercícios de compaixão, funcionários obedientes, catadores de latinha e mote necessário das intervenções na cidade.
Resta saber o que, em nome disso ou em resposta a isso, o que ainda virá.
B A S T A !
Internação, o velho beco sem saída das profilaxias preventivas. Internação, os novos acessos punitivos que se iniciam nas faxinas das ruas.
Internar quem quer que seja, sob que pretexto for, é inaceitável!
Crianças atônitas perambulam pelas ruas e são acossadas por um exército de gente amesquinhada.
Crianças devassadas, medidas, inquiridas, interceptadas, decepadas.
Jovens moribundos adormecem em becos e acordam sacudidos, comprimidos contra muros fétidos de mijo, de merda, de vômitos, por polícias de toda ordem. Seus corpos trespassados confluem para as estatísticas georreferenciadas e mapas de vulnerabilidade.
Crianças e jovens que por um golpe de sorte ou pelo velho “bom acordo”, escapam de extermínios levados a cabo ali mesmo nas ruas e nos becos, em cantos de desova conhecidos por polícias de toda ordem, são tragados agora em intermináveis itinerários fluidos e difusos de novos arranjos epidemiológicos.
A epidemilologia aqui não é só técnica. Nunca foi. Seu conjunto de termos, instrumentos e práticas foram trazidos para a política pela governamentalização do Estado, como tecnologia de poder.
Foi pela via da prevenção geral que isto se tornou possível pela polícia médica, marcando um vínculo indissociável entre saúde pública e segurança e a própria “saúde do Estado”, já no século XIX. Seus alvos eram, preferencialmente, crianças, jovens e anarquistas, mulheres, loucos e subversivos.
Isto aos poucos foi se transformando por práticas muito precisas. Os deslocamentos se deram em sucessões que iam do preventivo ao preditivo. Atravessaram o século XX, variando, também, eugenias evolutivas genéticas e eugenias evolutivas de meio ambiente.
No início do XXI, foi pelo viés da prevenção geral que os investimentos em políticas de segurança passaram a combinar, a partir de práticas epidemiológicas buscando obter “algorítimos do risco”, a produção de mapas estatísticos georrefenciados, deslocando os investimentos para programações colaborativas em torno de governos das chamadas vulnerabilidades por meio da denominada “melhoria da qualidade de vida”.
Hoje, é possível sinalizar que nestes novos arranjos epidemiológicos o que está em jogo é, também, a “restauração da saúde do Estado” pela via de uma prevenção geral colaborativa e compartilhada, que deixa intocado o regime da propriedade indissociado do regime do castigo, consolidando nestes novos arranjos epidemiológicos seus itinerários fluídos e difusos, onde estão no jogo os empreendedores voluntários na melhoria de si e dos outros.
Por isso se torna tão naturalizável, corriqueiro e ordinário, mesmo hoje, a combinação atual, entre internações provisórias e compulsórias de crianças e jovens, o trancafiamento em unidades mistas e de segurança máxima e os projetos a céu aberto.
Dito de outro modo, à provisioriedade e à compulsoriedade vem se juntar a voluntariedade, tríptico santificado e que se pretende incólume e inoculado para funcionar tanto encarcerado como aberto.
Um tríptico colaborativo e auspicioso para infindáveis melhorias de que o regime da dívida infinita não abre mão.
E nos corpos que vibram e escapam e não se ajustam, nem estão disponíveis a negociações, isto é o inaceitável.
São estes corpos em suas relações incontíveis, inclassificáveis, em suas lutas repletas de cheiros, de umidades, de sangue, de odor de sexo, de vírus estranhos não identificados, NUS expostos assim ao SOL é que habita o precário da peste que anarquiza e que não cessa. O resto é epidemia acessível e acessável a ser catalogada e posta para funcionar em algum programa de melhoria.
É preciso dar um fim ao regime dos castigos, que começa sempre sorrateiro, sorridente ou estridente, bem aventurado ou venturoso, a incidir sobre corpos de criança e jovens.
No incontível do fogo, a aventura é outra. A viagem não cabe na narrativa. Menor, indiscernível e inestancável. Corpos em seu fogo próprio, onde o que lhes excede e escapa não cabe governo, entendimento nem explicação.
Na vida, assim bruta, deliciosa, mesmo tantas vezes dolorida, e repleta de prazeres e sabores e cheiros e texturas. Nela assim, bruta e tênue, saúde e segurança são incompatíveis.
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