terça-feira, 13 de julho de 2010

Rebordeios do SUS

Antes de falar da dita “diferença de classes” no SUS, quero falar um pouco de algumas coisas que já mencionei em outros escritos, pois acho que nunca é demais contornar algumas letras com grafite molhado.
Como fazer o SUS acontecer efetivamente como política pública? Muitos trabalhadores do SUS atuam ainda guiados pelo velho ideário da gorda saúde dominante, entre os quais encontram-se aqueles que desacatam os usuários ou tratam-lhes como se estivessem fazendo um custoso favor, mas muito apreciam colar nas paredes, feito um crucifixo para espantar satanás: “Desacato – Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: pena – detenção de seis meses a dois anos, ou multa”... nada é dito sobre o desacato ao Usuário!
Outros fazem do SUS, mais um “bico”, em que tem uma atuação “THE FLASH”, atendendo os usuários sem nem sequer terem tempo de olhar em seus olhos ou de escutar a história que lhes habita.Outros são franco-usurpadores da coisa pública e, ao contrário dos fazedores de bico que reduzem a jornada de trabalho para equipará-la aos baixos salários que recebem, pretendem supervalorizar e super-dimensionar seus salários, outorgando-se um valor acima de tudo e de todos... chegam ao descabimento de declararem-se merecedores de um salário muito superior ao dos demais, para se manterem suas atuações “the flash”!
Outros estão absolutamente fora do ideário preconizado e ancorador do SUS... exemplifico com uma situação em que, atendendo uma usuária que passara por uma tentativa de suicídio e que, apesar de estar medicada e em atendimento psicológico, ainda continuava em intenção de morte, necessitei discutir com a médica que prescrevera a medicação e fazia o acompanhamento à referida usuária, para que fosse feita a revisão e adequação da medicação prescrita, quando, para minha estúpida surpresa, recebi um retorno da mesma atendente que fora chamar a médica ao telefone, que a mesma declarara que não tinha nada para falar comigo e que não falaria... numa nova tentativa, mais tarde, ela reafirmou o dito... fiquei matutando, com isso: será que essa colega de trabalho pensa que trabalho em rede seja trabalho de pescador ou de quem gosta de ficar atirado numa rede enquanto a vida passa por baixo?! Fiquei sem resposta, até porque não tenho como saber o que pensa uma colega que não fala com os demais colegas!
Nem falarei aqui sobre a questão da valoração das remunerações ou da precariedade das mesmas para os trabalhadores das políticas públicas em geral. Somente sublinharei que quando fazemos um concurso público ou escolhemos trabalhar em determinado lugar, sabemos de antemão quais sejam as condições de trabalho e de remuneração, sendo que, a partir disso, são outros campos de luta que se faz necessário articular.
Veja-se que quando falo em campo de luta, não me refiro ao exercício desigual, injusto e crápula do corporativismo ou da pressão covarde que muitos trabalhadores públicos exercem no campo em que atuam. Por exemplo, o que pode justificar que uma pessoa que é nomeada para trabalhar 40 horas semanais, que é remunerada para tal, ache justo, digno e ético trabalhar somente no máximo 6 horas por semana e ainda entender que deve ganhar mais, enquanto os usuários devem esperar mais de 3 meses para serem precariamente atendidos por esse mesmo trabalhador?! Ou o que justifica que alguém seja nomeado para trabalhar 20 horas e o faça em no máximo 8 horas semanais?
E é necessário dizer que não se trata de meramente cumprir horário, ou de fazer o discurso de que o que interessa seja a qualidade do trabalho... não sei como se pode mensurar o trabalho de alguém que entra e sai rapidamente, sem mal ser visto e sem esboçar uma palavra sobre o trabalho que desenvolve e em que atua.
Sublinho também, que não se trata de criar ou ampliar as desigualdades salariais, como foi o caso de determinados programas que definiram salários mais altos visando à dedicação integral dos trabalhadores de todas as áreas que aí atuam, o que, por si só, não garante a qualidade do atendimento, nem o formato que lhe é preconizado. Sem contar que, no caso dos PSFs (agora ESFs), o trabalho que deveria ser desenvolvido seja o trabalho cartográfico que reconheça os movimentos das gentes que aí vivem e possibilite construir coletivamente os agenciamentos que fomentam a cultura da saúde e não do adoecimento ou da panacéia medicamentos... mas não é isso que se faz na maioria dos lugares, mas sim, uma atuação cercada por viseiras que impedem os trabalhadores em saúde de olharem um metro além do riscado do mapa que indica a região de cobertura daquele PSF (já ocorreu de me ser negado atendimento à uma usuária porque a mesma mora a meia quadra do fim do riscado da região de abrangência do PSF), ou uma atuação centrada no saber médico... saber médico de médicos que sentam em seus gabinetes e atendem fichas!
No mais, afora as questões próprias à efetivação dos projetos, programas e serviços da política pública de saúde, o que impede o rompimento com essa cultura usurpadora da dignidade das gentes, guiada pela arbitrariedade e pelo autoritarismo corporativo de muitos trabalhadores, talvez esteja do mesmo lado desses que defendem a “diferença de classes” no Sistema Único de Saúde... são todos da mesma estirpe... são aqueles que não resistem ao massacre do sistema dominante porque fazem parte de suas idéias, de suas intenções, de seus propósitos e de sua contumaz exploração da dignidade da maioria das gentes!
Quem quer a garantia da “diferença de classes”, quer atender apenas aos interesses individuais e não coletivos... quer atender às necessidades de poucos e não da grande maioria... quer usar o poder financeiro para não ter que andar nas mesmas veredas em que andam quase todas as pessoas do Brasil... são esses os que não participam das lutas que interessam ao coletivo e exercem a influência que os caracteriza, para deixar ao léu, uma caminhada de construção do SUS que já custou muita estrada para quem segue suas trilhas e, simplesmente, pisotear uma luta e um campo que é de todos e não desses poucos que cuidam dos interesses de poucos!

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