domingo, 27 de junho de 2010

A Experiência do Fora

O Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e o Museu da UFRGS promoveram, de 22 a 24 de junho de 2010, o Seminário Vidas do Fora – habitantes do silêncio. Nó na teia que se formou a partir da pesquisa sobre as “vidas do fora” e seus registros no mundo e nas gentes (nas gentes loucas e nas não loucas – se é que as há!), o Seminário se junta à publicação do livro/coletânea de textos com o mesmo título, à Exposição EU SOU VOCÊ (que reúne a produção de quatro pacientes psiquiátricos, que faz parte do acervo da oficina de criatividade do Hospital; documentos históricos do Hospital; produções de artistas convidados) e à publicação do catálogo da exposição.
Não tive tempo de, durante o Seminário, ir ver a Exposição – a qual ainda verei -, mas em algumas falas do Seminário, muitas imagens, da mesma, foram apresentadas.
Do Seminário, trouxe, para leituras que já estou fazendo, o livro relacionado ao evento e o livro da Rosane Preciosa – Rumores Discretos da Subjetividade – sobre os quais ainda hei de tecer escrituras específicas. Além disso, trouxe muitas anotações e pensaduras, sobre as quais escreverei aqui... alguma coisa, agora e, outras, depois.
Uma das coisas que sempre me coloco como ponto de nó no pensamento, é: O que você faria se sua loucura fosse vista somente como incondicional, absoluta e radical loucura? Talvez essa seja a condição histórica em que os ditos loucos foram colocados e, por isso, a clausura foi mais forte do que qualquer possibilidade de resistência... o poder da clausura e da sociedade de controle é mais forte do que qualquer marreta que possa tentar arrebentar seus cadeados.
Eu, na verdade, escolho definir a loucura como uma das experiências do fora... é do fora, toda a experiência que não se fixe aos esquadros normalizadores do sistema dominante, com suas teorias feitas para definir o riscado em que cada um pode compor sua vida. O sofrimento psíquico é uma derrapada brusca na organização psíquica, subjetiva, familiar, institucional e social que joga o sujeito para fora dos liames das regularidades... não há espaço, entre a derrapada e o limbo do sofrimento, para ocorrer um movimento de desassujeitamento e de produção de uma outra possibilidade de vida... isso tudo se dá sobre uma linha muito estreita, muito tênue, em que salva-se aquele que corre até o fim dela sem cair... quem cair, outrora ia para internação, hoje deambula em meio a arremedos de produção de novos modos de fazer as políticas públicas de saúde mental e produções efetivamente sérias... nesse entrevero conta ainda, a produção da discussão e de um novo entendimento da sociedade sobre essas situações e questões, assim como, a produção efetiva de novas práticas para a construção do espaço do fora da loucura ou do sofrimento mental.
No Seminário, com a fala de Eugénia Vilela(1), a beleza generosa de suas palavras e de seu escrito provocou-me a colocar outra imagem na contraluz do testemunho e colocar-me brevemente numa linguagem entre a surdez e o corpo.
Disponho de 50% de capacidade auditiva nos dois ouvidos. Ao começo de sua fala no “Vidas do Fora”, neste 22.06.10, esforcei-me por ouvi-la. Adiei minha aproximação, esperando que a sonorização pudesse melhorar. Não melhorou. Pensei: depois leio o texto no livro. Desisti de me aproximar fisicamente, em prol de um exercício que então me propus fazer. Capturada pela magia do texto brotando dela, em minha surdez física fui ouvindo um pouco das palavras e escutando seu corpo... os movimentos do seu corpo... foi fascinante acompanhar o movimento do texto emergindo dela... brotando do corpo, na boca, nas mãos, no tronco, nos pensamentos, nela inteira... é como diz Gregório Baremblitt, ao falar de Deleuze e Guattari: “Não é um pensamento discursivo, mas segundo a própria definição deles, é uma máquina fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo, que não passa exatamente pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar”(2). Para mim, é a experiência da surdez, surdez que ouve com os olhos. No mais, Eugénia vive o que diz... ela é o que diz!
Da mostra de fala de Regina Jaeger(3), entre ditos e imagens, trouxe muito de Manoel de Barros. Há muitos anos que sou encantada por ele. E não sei exatamente se é pelo que ele faz com as palavras e com as imagens, ou se é pelo que ele faz com sua loucura. Manoel é um louco que parece não criar... são as palavras que saem dele e tomam as formas despudoradas com que ele as apresenta... as palavras é que são loucas e transmutam o seu ser! Mas também, ele deixa sair o que quer, pensa o que quer e desenha a vida com traços que só ele enxerga. Escreve com lápis. Gosta da invencionática e não da informática. Não se importa se levam a sério suas palavras. Lambe as palavras como quem lambe algo gostoso.
Regina, entre muitas outras coisas, me fez pensar essas coisas: que Manoel de Barros é um louco que conduz sua loucura. Lambe as palavras e faz delas o que bem quer e subverte as imagens como bem entende. Da mesma forma que Deleuze viveu sua loucura. Ou Guattari viveu sua loucura. Ou Foucault viveu sua loucura. Ou Nietzsche viveu sua loucura. Eles e muitos outros viveram suas loucuras. Todos fizeram a criação no fora. No fora do sistema normalizador. O fora-devir. O fora-criação.
A loucura talvez seja o lugar em que se possa dizer a verdade/ toda a verdade, sem esquadros do ideário dominante.
Usamos as palavras do fora para falar de nossas teorias do fora. A loucura é o fora. O fora é a loucura... o fora é (des)normalizador. A exemplo de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Gauttari, pensar o fora como um lugar de subjetivação... como a criação de novos modos de vida (no fora)... como estética da existência... como arte... enfim, como criação mesmo.
Quando Paola Zordan(4) fala da “Derme pictórica” do Hospital São Pedro, traz Fotografias da história marcada nas paredes/ no prédio físico do São Pedro, mostra como o musgo só nasce em lugar que lhe é próprio, ou como a rachadura, a fissura racha a norma e mostra o que a engenharia descuidou ou o que o tempo elaborou... ela mostra, também, que não se trata de pensar se é arte ou não... pois, pensar o fora, implica em pensar o estético e a criação, em pensar na produção que brota da criação nas situações mais adversas, que não aquelas de que a maioria espera que brote.
Não podemos esquecer que o MUSEU DO MUNDO é feito para guardar toda e qualquer arte, de toda e qualquer gente, enquanto o MUSEU DO CONSUMO é feito para guardar e fomentar qualquer coisa que possa gerar dinheiro... para gerar o reconhecimento daquilo que interessa ao sistema dominante!
Por isso, não nos interessa a pergunta sobre se a produção dos pacientes psiquiátricos seja ou não seja arte... essa é a pergunta do ideário dominante do DENTRO, que quer que as coisas sejam feitas para o consumo e para o lucro (o extremo lucro... lucro financeiro, material, subjetivo, político, econômico, social, etc.). Não nos interessa, também, o reconhecimento da produção/criação nas condições colocadas pelo DENTRO, pois esse reconhecimento é injusto, seletivo, interesseiro, falcatruento. Na horizontalidade do FORA, a condição de produção e reconhecimento é de todos e de qualquer um.
Pensar a loucura do outro e tergiversar sobre ela, permite dar a ver a nossa e a loucura dos loucos... vemos a loucura-pontual/ a loucura-sofrimento-psíquico para falar de nossa loucura anti-sistema-dominante... a arte-conceito/ arte-sistema/ arte-mercado X arte-criação é uma dicotomia que não existe, pois são dois mundos distintos: o de dentro e o de fora... o mundo de dentro do sistema dominante tem suas coordenadas que tão bem conhecemos... já, o mundo de fora refere-se à arte-criação/ arte-devir/ arte de todos e de qualquer um/ arte que não é feita para o consumo... o fora, trata-se da horizontalidade que aponta a possibilidade de produção de singularidades... ou como escreve Deleuze, ao falar da terceira dimensão traçada por Foucault em seu pensamento: “E do que se trata? Trata-se de uma relação de força consigo (ao passo que o poder era a relação da força com outras forças), trata-se de uma ‘dobra’ de força. Segundo a maneira de dobrar a linha de força, trata-se da constituição de modos de existência,ou da invenção de possibilidades de vida que também dizem respeito à morte, a nossas relações com a morte; não a existência como sujeito, mas como obra de arte. Trata-se de inventar modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar-se deles. Mas os modos de existência ou possibilidades de vida não cessam de se recriar, e surgem novos”(5).
Eu sou do fora. Eu escolhi e prefiro o fora (apesar de, em muitos aspectos, viver no dentro). Eu não vejo o dentro como um lugar possível para a maioria das gentes. Eu penso as condições rizomaticas do fora e não condições de inclusão no dentro.
Entre muitas coisas importantes produzidas por essa série de pontos-de-nó que se fizeram eventos, talvez a principal delas seja essa possibilidade de pensarmos o fora como esse outro lugar, como essa outra possibilidade de vida e de mundo que, dentre outros, Deleuze, Guattari, Foucault e Nietzsche tão bem desenharam.
1 Eugénia proferiu a Conferência de Abertura: A sombra da ferida. Corpo, silêncio e testemunho. Ela vem da Universidade do Porto, de Portugal. (PS: O título de seu escrito, no Livro, é: “À contraluz, o testemunho. Uma linguagem entre o silêncio e o corpo” – Em: Vidas do Fora – habitantes do silêncio, Org. Tânia Mara Galli Fonseca e Luciano Bedin da Costa, Ed. UFRGS).
2 Em: BAREMBLIT, G. Introdução à Esquizoanálise. Coleção Esquizoanálise e Esquizodrama.Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 1998.
3 Regina Jaeger falou sob o título “A Escrita fora de si entre as forças da clausura”, em 23.06.10.
4 Paola Zordan falou sob o título “Hospital São Pedro: uma derme pictórica”, em 24.06.10.
5 DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed.34, 1992.

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