terça-feira, 8 de junho de 2010

Diário de uma outra parte

Eu li um estranho livro: brotou-me a contradição.
Gosto de ler, entre muitas outras coisas, entrevistas e biografias (e tudo o que seja parecido com biografia). Gosto dessa coisa de poder olhar o traçado da vida do outro de forma a simplesmente ler a vida, sem a seriedade que pesa em meu trabalho clínico.
Gosto, também, de arrecadar cartões postais feitos para a divulgação de alguma coisa ou situação. Utilizo-os como marcadores de livro, renunciando aos próprios marcadores. E um desses que guardei, divulgava o livro “Diário de uma outra parte”, de Blanche Torres. Nunca dei atenção ao que estava escrito no verso do cartão, sobre o livro e sobre a autora. O que só fui ler, depois de já ter lido o livro.
Esse cartão estava há muito tempo entre os meus livros. Não lembro onde e nem como arrecadei. Mas sempre que o via, pensava em encomendar o livro. Gosto muito da frente dele... do nome do livro (muito profundo e poético)... do nome da autora (parece saído de Gabriel Garcia Marquez) e da ilustração da capa (que depois vim a saber ser da Christina Oiticica). Até que um dia, sem muitas pretensões, encomendei o livro e muito tempo depois, o dito chegou.
É um daqueles livros que se lê “numa sentada”. Rápido. Gostoso de se ler. Mostra os fatos da vida como eles são, sem remendos, sem retoques, puídos pela dor, avivados pela alegria, entrecruzados com crenças e com telúricos alinhavos transcendentais. Admito que quando comecei a ler, pensei: como não pesquisei nada sobre o livro, antes de encomendar? Sua entrada me mostrou um traçado de auto-ajuda, mas interessei-me muito pelo intróito que apresenta o pensamento da protagonista: “Trago de longe, de uma terra perdida, estanhas sensações.../ Sonhos, cores, vozes./ Às vezes elas se afastam de mim, porque finjo ser mulher.../ Não sei se devo esquecer os relógios e vagar distraidamente entre os Mundos...”. E já que estava lendo, assim segui.
O livro me pegou por duas coisas. Uma: a autora é sulmatogrossense e é arrizomada aos cheiros, às formas, aos sons e à vida pantaneira, cruzada com a territorialidade cultural indígena... essa terra e as coisas dela me enlaçam... é um território em que sempre fico em desvantagem, pois lá, o meu ponto de racionalidade perde o pico. Outra: a sua história se dá exatamente no trânsito entre esse mundo e o mundo que quis pra si. E essas duas coisas ajudaram-me a ver melhor algumas coisas afetivas e humanas que eu estava tentando resolver comigo mesmo.
Afora essas questões, pude ver que às vezes buscamos coisas demais para entender coisas de menos, quando não necessitamos nada mais do que o simples para entender o simples.

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