domingo, 6 de junho de 2010

Contos Desbotados

RECORTES*
Tinha que escrever algumas coisas, mas andava de um jeito que queria trabalhar somente o necessário, nem um pouco além disso. Queria continuar intensa, trabalhando, amando, trepando, vivendo muito. Mas andava sem aquela energia que permitia ir além do necessário.Lembrou de uma amiga que estava ralando em cima da tese de doutorado. Quando ela lhe contava das elaborações que conseguira sistematizar, riam muito chamando aqueles momentos de orgasmos intelectuais. Não que essa amiga não tivesse orgasmos mais carnais... e como os tinha! Mas eram intensos também aqueles de construir idéias. Gozavam juntas às vezes
Encontrou um recorte de um contículo de Fernando Bonassi, "Escrever - Você acorda e toma o café que puder. Você nem precisa sentar. Você pega um papel, uma caneta (que não precisa apontar) e então escreve. Primeiro você escreve contra Deus. Depois escreve contra a família. E, desse mesmo jeito, escreve contra os homens. Você pode escrever com um copo de veneno ou com uma injeção de ânimo, não importa, mas você escreve. Você também escreve porque você escreve e não há maior razão que essa. Você escreve amassando o pão do diabo, vendo as notas sumirem da carteira e levando pé no rabo. Ainda assim, você escreve. Escreve quando vale a pena e quando vale nada. Quando faltam as palavras, você escreve. Você escreve uma do lado da outra. Com muita verdade. Especialmente quando escreve o inventado".
Sempre que sua vida entrava em breves ou intensos solavancos, tinha o hábito de reorganizar a casa. Às vezes trocava os poucos móveis de lugar. Às vezes replantava as plantas. Às vezes reorganizava os livros. Às vezes fazia aquela limpeza que a faxineira insistia em ignorar. Às vezes separava os discos e ouvia uma, duas, três, muitas vezes as suas músicas preferidas, com o fone de ouvido, para não incomodar os vizinhos e para que eles não ficassem fazendo juízo de suas manias musicais. Às vezes pegava o balaio de jornais velhos e passava um a um, recortando tudo aquilo que lhe interessava... sabe-se lá, um dia poderia necessitar daqueles escritos e recortes todos!
Encontrava-se naquela introspectiva tarefa de selecionar e separar recortes, quando percebeu que, sem querer, ou sem saber como, separara as crônicas escritas por mulheres, daquelas escritas por homens. Depois lembrou que parte daqueles escritores publicavam suas crônicas, contos e demais escritos em jornais e revistas e, posteriormente, reuniam todos ou os melhores e publicavam em livro. Negava-se, terminantemente, a adquirir aqueles livros. Aqueles livros lhe cheiravam a traição. Logo ela, e tantos outros, que corriam a buscar o jornal e localizar, avidamente, a página em que encontraria os escritos preferidos, para ler e depois recortar para colecionar e guardar. Não. Não, ela jamais se renderia àqueles livros fáceis, com os melhores textos já selecionados. Com os preferidos já indicados. Já estava a falar sozinha, vociferando um discurso, dizendo que quem eram os escritores e editores para indicarem, como bem entendessem, quais seriam os melhores escritos. Ela mesma, quantas vezes encontrara pérolas jogadas aos porcos em escritos aparentemente piores. Desistiu dessas idéias loucas. Continuou recortando.
Quando deu cabo daquele monte todo de jornais, olhou para as mãos manchadas de tinta e recuou no tempo, tentando localizar onde é que iniciara aquela sua mania de recortar jornais. Deu-se conta de que sempre que completava aquela tarefa, depois de um longo acúmulo, estabelecia a resolução de que a partir da semana seguinte faria os recortes imediatamente, e nunca cumpria o estabelecido.
Foi fazendo, devagarinho, uma revisão das coisas que guardava daquelas experiências todas com os cortes e recortes dos escritos dos outros. Conseguiu sistematizar qual seria a linha editorial dos jornais e revistas que lia e dos que deixara de ler, assim como daqueles que incorporara, recentemente, aos seus hábitos de leitura. Tinha pavor daqueles estrangeirismos que insistiam em dizer em outra língua, principalmente em inglês, o que poderia e deveria ser dito em português. Tinha horror aos diários ou semanários que insistiam em não ter espaço de opinião. Tinha alergias às sempre hipócritas e superficiais colunas sociais. Tinha pena daqueles que praguejavam contra jornais e revistas de linha tendenciosa, e quando queriam denotar reconhecimento, anunciavam quantas vezes tinham sido capa ou notícia nos mesmos veículos que contundentemente criticavam, sem contar as vezes em que se ofereciam para rechearem as colunas sociais.
Foi separando em pastas os recortes que fizera. No dia seguinte visitaria seu analista. Visitaria nada. Ora, se analista é pessoa de se visitar. Iria lá mesmo mostrar suas chagas. Se pelar. Se desnudar. Mostrar a bunda amassada. Deixar à vista o sovaco com os pelos por tirar. Escancarar sua vida naquele divã cretino, onde todas as pessoas se extraviavam para depois se juntarem novamente. Sempre temia que alguém mais descuidado esquecesse por lá um ou mais de seus cacos, e ela, pensando que fosse seu, colasse junto na confusão dos seus cacos. Para se vingar daquela possibilidade, levaria junto seus recortes. Tinha que cuidar daquilo, pois já estava ocupando espaço demais em sua casa e em sua vida. Talvez deixasse, assim como quem não quer nada, alguns recortes extraviados pelo divã e pela sala do analista. Poderia dar o acaso de alguém levar para colar com os seus. Nunca se sabe no que é que isso pode dar. Nunca se sabe.
* Conto revisado, publicado no Jornal Estilo - Cruz Alta/RS, em tempos idos.

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