sábado, 5 de junho de 2010

Contos Desbotados

BONECOS DE NEVE*
Nunca pensou que naquele lugar fosse nevar, mas naquele dia, depois de tantos dias de sol, nevou. Fizera muitos dias luminosos e animadores, já era primavera e os pássaros já ensaiavam alçar o vôo tranqüilo dos dias quentes. Mesmo assim, naquele dia nevou.
Naquela noite fora dormir tranqüilo. Tinha a sensação de que tivera bons sonhos durante a noite toda, mas registrava, do amanhecer, a angústia de pesadelos intensos. Tentava acordar, mas estava tomado do desespero de não saber para onde ir. Despertou depois de muitos toques do despertador. E despertou de sua dor.
Dormira somente com o lençol. A noite estava quente e os mosquitos famintos. Acordou com o corpo gelado. Estranhou aquele ar tão frio no quarto. Pensou que tivesse deixado o ventilador ligado, mas percebeu que não. Chegou a acreditar que estivesse perdido no tempo, que fosse inverno e, extraviado em seus sonhos, acreditou que fizesse calor. Mas lembrou, com clareza, que na noite anterior fizera um calor agradável. Recordou do vento gostoso que tocava o seu rosto enquanto caminhava, do conforto que isso lhe causava e do cheiro das flores que lhe embriagava.
Teve vontade de se aconchegar na cama entre os cobertores, aquecer o seu corpo e esquecer-se do mundo lá fora. Mas não podia fazer isso. Ergueu o corpo tenso e arrastou-se até a sala. Encostou a testa no vidro embaçado da janela. Recuou um pouco e se pôs a escrever no vapor do vidro com a ponta do dedo indicador. Até começou a escrever ali uma poesia, mas pensou que seria tempo pouco demais para a poesia. Duraria o tempo de evaporar a umidade do vidro.
Lembrou que ainda há poucos dias olhava pela janela e percebeu nas plantas o pólen amarelo vindo das flores de uma árvore próxima. Encantava-se com aquele pólen que provocava tanta fecundidade, quando viu que as abelhas faziam a colheita, todas tão tranqüilas no seu ir e vir. Tentou adivinhar se havia ali por perto alguma colméia. Lembrou do primeiro passo de uma receita que lera e que dizia assim: 1º Passo – colha o mel direto da colméia. Chegue conversando com as abelhas, solicite licença, encante-as, depois leve tudo o que elas demoraram tanto tempo para construir, então, já livre da presença delas, esmague os favos e tenha o mel.
Passou muito tempo naquela posição observando o frio lá fora. A neve já formava uma camada densa na rua. Os transeuntes passavam encolhidos, surpreendidos por aquele frio inesperado. As plantas, essas eram as que mais sofriam, porque para os humanos e para os animais basta manter-se em movimento que o seu sangue mantém o corpo aquecido, mas as plantas, essas, indefesas, só podem acolher a neve que cai devagarzinho e que vai congelando aos poucos a sua seiva. Não adianta as plantas, nos movimentos da natureza, esperarem o sol raiar para voltar à vida intensa, porque quando o sol voltar e derreter o gelo e o frio da neve, as plantas estarão, então, queimadas e com suas folhas mortas, e terão que esperar o frio passar para poderem, aos poucos, fazer brotar as folhas novas. Mas às vezes, também, o frio é tão intenso que não morrem apenas as folhas, mas a planta inteira, assim como para os humanos morre a seiva que alimenta a existência, morre a esperança, morrem os sonhos, os sonhos que, para ele, naquele dia frio, sentia escorrerem do seu peito dando lugar ao imenso lugar da tristeza. Sentia-se uma daquelas plantas inertes sob a neve. Não era tempo para ficar indignado, teria que esperar o sol voltar.
Viu, ao longe, as hortênsias floridas escondidas sob a neve e lembrou que quando sente o cheiro de jasmim, ou o cheiro de grama recém cortada, recorda o cheiro das melancias que comia na infância, espalhada no jardim de sua casa, daquelas colhidas na horta e resfriadas na água corrente (não era a grama, mas o cheiro que lhe lembrava o da melancia cortada). Ainda guarda em sua retina a imagem do seu pai trazendo a melancia e ele, de olhos fechados, esperando o pai partir a fruta para sentir aquele cheiro e depois abrir os olhos e contemplar aquele vermelho tão lindo, e depois selecionar as sementes para guardar para o plantio do ano seguinte. Estava perdido nessas reflexões e lembrou que ainda na infância aprendeu a plantar e, também, a lidar com os demônios que andam à solta por aí. E depois que aprendeu a plantar foi aprendendo, também, que há um tempo para a plantação, para a germinação, para o crescimento, para florir, para dar frutos e para produzir novas sementes.
Percebeu que algumas pessoas brincavam na neve e, contentes, faziam bonecos. Pensou no breve instante da existência daqueles bonecos que pareciam tão cheios de vida naquela neve branca. Quando o sol voltasse eles derreteriam e seriam, então, apenas água escorrendo pelo chão. Ficou com pena dos bonecos de neve, pensando que as plantas, se não morressem poderiam brotar novamente, mas os bonecos, vindo o sol, derreteriam e não teriam mais como viver.
Rabiscou, ainda, a poesia no vidro embaçado, mas a poesia se perdeu quando as suas lágrimas, saltando de dentro de seu peito vazio e apertado, escorreram pelo vidro. Não havia mais como ler a poesia. Nem como conter as lágrimas.
* Conto revisado, publicado no Jornal Estilo - Cruz Alta/RS, em tempos idos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário