por PETER PÁL PELBART
Ao criticar os rumos da filosofia contemporânea, em especial um certo cogito da comunicação, Gilles Deleuze escreve, em conjunto com Félix Guattari: "Não nos falta comunicação, ao contrário, temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente". A vida filosófica de Deleuze pode ser colocada inteiramente sob o signo deste princípio: a única resistência digna ao presente é a criação. Foi o que sempre fez, com seu estilo cortante, feito de rajadas secas, análises finas ou conceitos extravagantes. Mas afinal, o que criou Deleuze?
Alguns pretenderam reduzir o sentido de sua existência, de sua obra ou de sua geração ao gesto extremo para o qual a doença o impeliu. Mas o vitalismo de Deleuze passa ao largo dessas interpretações tristes. Para o filósofo a vida sempre foi concebida como uma potência não-orgânica, força impessoal, que extrapola os limites da existência individual, das formas concretas e visíveis que a encarnam, da finitude que lhes é própria. No último texto publicado antes de seu suicídio, Deleuze escrevia: "Não se deveria conter uma vida no simples momento em que a vida individual afronta a universal morte".
No entanto, como sempre em Deleuze, os termos ganham um sentido inusitado e, quando menos se espera, os vemos revirados do avesso. Pois mesmo esse "vitalismo", tantas vezes assumido por ele, não se refere a um domínio da natureza, nem evoca qualquer princípio animista ou espontaneísta. Todo o contrário: vida (ou desejo) como puro artifício, ser como produção, agenciamento, maquinação. Um comentador observou que essa ontologia é tão nova quanto o universo infinitamente plástico dos cyborgs e tão antiga quanto a tradição materialista em filosofia.
O pensamento de Deleuze é pluralista: desliza sempre numa multiplicidade substantiva e nos processos que nela operam. Só há processos e multiplicidade, insiste ele, de modo que a Razão, o Sujeito (ou o Objeto), o Uno, o Universal não passariam de abstrações, por mais que se tente ressuscitá-las para contrapor-se à única coisa que no capitalismo é de fato universal: o capital. É toda uma geografia mental que se vê aí questionada, e que Deleuze ajudou a subverter com sua filosofia da diferença.
Contra o tabuleiro da Representação que tem orientado o pensamento (com as figuras da Identidade e suas sombras, do Negativo e seus falsos movimentos) Deleuze propõe o jogo da Diferença. Ele fez da Diferença um conceito eminente e o elevou a uma suficiência sem precedentes. Por meio dele releu Bergson, Nietzsche e muitos outros, abrindo o caminho para a elaboração de uma ética da singularidade: não apenas colher as diferenças constituídas, sejam elas individuais ou coletivas, mas produzir novas diferenciações, fazer do homem um grande experimentador, um afirmador de modos de existência singulares. É, como disse Foucault, a "introdução a uma vida não-fascista".
Deleuze pode então distinguir os que pensam à imagem do aparelho de Estado, de suas estrias e direções, impostas pela homogeneização capitalística e seus valores conformistas, e os que pensam segundo a potência nômade, num espaço aberto, multivetorial, como nas estepes de um Oriente. Em vez do xadrez (jogo imperial), o "go" chinês. A admiração de Deleuze pelos nômades, sua relação com o deserto, o privilégio da exterioridade, da intensidade ("não se mexer demais para não espantar os devires"), a forma como passam ao largo da História parece dar razão ao tradutor japonês de "Mil Platôs": "Eis um grande livro sobre a Ásia...". Deleuze, o mais oriental dos pensadores. Já não era esta a recriminação feita a Espinosa?
Tudo isto, porém, não é uma cavalgada bárbara vinda do Oriente; as peças fazem parte da tradição do pensamento ocidental, embora submetidas a atrações e acoplamentos que já fizeram mais de um filósofo revirar-se em sua tumba. Veja-se o conceito impossível de empirismo transcendental, tão importante no sistema deleuziano, misto de Hume e Kant. O método transcendental kantiano (fiquemos no mais simples: remontar de um fato dado às condições que o tornam possível) não só é valorizado, mas também radicalizado. O projeto declarado de Deleuze consiste em "purgar o campo transcendental de toda semelhança" com o mundo do senso comum, não deixá-lo, contrariamente ao que teria feito Kant, decalcar-se sobre o empírico (por exemplo, rebater-se sobre a unidade e identidade pessoal do Eu), nem depender de princípios ainda relativamente transcendentes, porque mais amplos do que aquilo que eles realmente condicionam. Buscar a condição da experimentação real, e não da experiência possível em geral.
Ora, isto significa que a condição seja dada, constatada, ao mesmo tempo pura e vivida, construída e experimentada... A intensidade é este princípio transcendental e genético, ser do sensível, objeto da sensibilidade, que a força a ir a seu limite, transmitindo sua violência às demais faculdades (a memória, o pensamento), num "acordo discordante" no seio de um sujeito explodido.
Não há como entrar em detalhes sobre essa construção complexa. Basta ressaltar que o desafio consiste em devolver o pensamento à multiplicidade virtual que lhe dá origem: superfície imanente, intensiva, povoada de singularidades não-ligadas, que Deleuze também chamou de Inconsciente. Nesse sentido, não deve surpreender o privilégio atribuído pelo filósofo à intensidade em detrimento das representações. Reencontramos Nietzsche na vizinhança de Klossowski ou Lyotard, revirando Freud do avesso. Disto decorre uma das teses polêmicas de "O Anti-Édipo": o desejo como maquinação de fluxos e não como um teatro de representações. Desse ponto de vista, é indiferente que se esteja no reino do papai-mamãe ou no império do significante. Mais do que o encadeamento ou a estrutura, importa o acontecimento, um dos conceitos prediletos do autor.
A teoria do Acontecimento elaborado por Deleuze responde a uma exigência que ele formulou do seguinte modo: cabe à filosofia moderna sobrepujar a alternativa temporal-intemporal, ou histórico-eterno, em favor de um tempo mais profundo (ou superficial): o intempestivo. Talvez cheguemos assim, indiretamente, a uma das coordenadas mais perturbadoras do pensamento de Deleuze, embora das mais inaparentes: a concepção insólita de tempo aí pressuposta, coextensiva a seu conceito de diferença, e que em parte explica suas recusas (para dizê-lo de modo rápido e grosseiro: hegenialismos, heideggerianismos, estruturalismos ortodoxos...) Em vez de um tempo homogêneo, linear, cumulativo ou circular, emerge uma arquitetura temporal turbulenta, plissada, labiríntica, heterogênea.
O Acontecimento não está enganchado na cadeia contínua dos presentes, com sua direção única (a boa direção, o bom senso, a flecha do tempo), e sugere uma temporalidade paradoxal, atópica, incorporal, sempre passada e sempre por vir, em que a tripartição diacrônica se vê subvertida. A própria filosofia como Acontecimento: "O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa ordem estratigráfica". É a assunção ativa de uma tal "ordem" que causa estranheza não só entre os historiadores da filosofia, de quem, aliás, Deleuze nutriu-se em abundância, mas também entre os cinéfilos que continuam intrigados com seus dois livros sobre cinema (afinal, o que é uma "imagem-tempo", um "lençol de passado", um tempo liberado do movimento, um "cristal do tempo?"). Para não falar nos psicanalistas, a quem a idéia de um inconsciente construtivista e a priorização dos devires em relação à história poderia soar extravagante, mas nem por isso menos sedutora ou operativa, sobretudo numa clínica das psicoses.
O mesmo vale no campo político. Ao ignorar os discursos pomposos ou lamurientos sobre o futuro da revolução na história e priorizar o devir revolucionário (único capaz de "conjugar a vergonha ou responder ao intolerável"), reabre-se uma linhagem intempestiva, uma lógica não dialética do devir, em que se talham constantemente múltiplos blocos de espaço-tempo, novas subjetividades. É o que explica por que Deleuze, ao contrário de muitos de sua geração, jamais renegou Maio de 68, nunca se interessou pelo tema de um fim da História (nem, de resto, por uma filosofia da história).
Quando perguntado pelo militante italiano Toni Negri: "Qual política pode prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade?", Deleuze respondeu com a mais heraclitiana e nietzschiana das inspirações: "Acreditar no mundo é o que mais nos falta, nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele". E acrescenta, como um duende: "Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempo, mesmo de superfície ou volume reduzidos". O que terá sido o acontecimento-Deleuze?
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