Num encontro internacional, laboratórios públicos do Sul formam rede que tentará produzir medicamentos contra enfermidades que não “interessam” às transnacionais
Por Fabiana Frayssinet, Envolverde/IPS
O surgimento de economias emergentes na América Latina é uma oportunidade para melhorar as estratégias de combate a doenças esquecidas e ampliar sua contribuição à luta mundial contra elas, afirmou o diretor regional da Iniciativa Medicamentos para Enfermidades Esquecidas (DNDi), Eric Stobbaerts.
“Nossa região passa por uma plena mutação em termos econômicos e sociais”, destacou Stobbaerts ao citar os avanços nesse aspecto no Brasil, Chile, México, na Argentina e Colômbia. Essa mudança positiva deveria ser aproveitada para “redefinir a maneira como essas doenças foram abordadas no passado”, várias delas endêmicas na região, como o mal de Chagas e a leishmaniose visceral, afirmou à IPS na sede da DNDi no Brasil.
Trata-se de males desatendidos pelos grandes laboratórios internacionais por serem consideradas “doenças de países pobres”, sem maior retorno lucrativo no desenvolvimento de remédios para combatê-las. O surgimento dessas economias emergentes no cenário mundial “significa mais recursos disponíveis para o desenvolvimento, a produção industrial e a inovação no combate a doenças tropicais esquecidas”, disse Stobbaerts.
O especialista conversou com a IPS após o encontro “Unidos para combater as enfermidades tropicais esquecidas”, realizado em Londres no dia 30 e organizado em apoio ao “Mapa do caminho 2020 para as doenças tropicais esquecidas”, com o qual a Organização Mundial da Saúde (OMS) pretende erradicar dez delas nesta década.
A DNDi comemorou em um comunicado, ao final do encontro na capital britânica, os avanços alcançados em nível mundial. Mas, exortou no sentido de se acabar com as lacunas em pesquisa e desenvolvimento para melhorar as ferramentas de diagnóstico e criar novos medicamentos antes de terminar esta década.
A iniciativa é uma organização não-governamental de pesquisa e desenvolvimento sem fins lucrativos que desde 2003 trabalha no desenvolvimento de medicamentos e tratamentos para as doenças esquecidas. Foca-se especialmente em enfermidades com alta taxa de mortalidade: a tripanosomiasis africana (doença do sono), infecções por vermes e aids infantil, além do Mal de Chagas e da leishmaniose visceral.
Stobbaerts destacou que a América Latina é tradicionalmente uma região com altos níveis endêmicos e um grande depósito de doenças desatendidas, para as quais existe “ótimo conhecimento técnico e científico”. Acrescentou que, “no entanto, as necessidades continuam sendo grandes diante da variedade de doenças esquecidas devido às leis de mercado, e grande número de pacientes continua sem tratamento”.
A DNDi tem entre seus sócios na América Latina a Fundação Fiocruz, e laboratórios públicos como Farmanguinhos e Lafepe, no Brasil. Entre seus sócios fora da região se destacam o Instituto Pasteur, da França, e a organização Médicos Sem Fronteiras. Estas sociedades permitem acordos com o setor privado e instituições acadêmicas para desenvolver atualmente projetos no Brasil, na Argentina, Bolívia e Colômbia.
Além disso, foi possível desenvolver em nível mundial seis tratamentos para a malária, a doença do sono ou a leishmaniose. Desde a América Latina se contribuiu com um remédio infantil contra o Mal de Chagas, o benznidazol pediátrico (http://envolverde.com.br/noticias/brasil-desenvolve-medicamento-contra-mal-de-chagas/).
“O apoio político em todas as fases da pesquisa e do desenvolvimento foi fundamental para esses êxitos”, recordou Stobbaerts. “Mas, sabemos que não são suficientes os esforços em termos de desenvolvimento farmacêutico”, disse o especialista. “As regulamentações e a distribuição, bem como os sistemas de saúde, são essenciais para o sucesso da inovação. São inúmeras as barreiras que podem fazer com que um novo medicamento fique na prateleira”, ressaltou.
Stobbaerts citou como exemplo o que ocorre na América Latina com o mal de Chagas, ou tripanosomiasis americana, por suas vinculações com a doença do sono. As pessoas portadoras ou infectadas da região com o parasita tripanosoma cruzi, muitas sem saber disso, passam de oito milhões. A doença afeta especialmente Brasil, Argentina, Bolívia, México e Paraguai, e as mortes registradas relacionadas com esse mal são cerca de 12 mil ao ano, embora se considere que, na realidade, sejam muitas mais, porque “existe um sub-registro evidente”, segundo o diretor da DNDi.
A falta de ferramentas adequadas para diagnosticar o mão de Chagas é outro problema. “Há urgência em contar com um exame para o diagnóstico que permita de maneira confiável um tratamento de sucesso”, afirmou. “Sem isso, se continua tratando sem ter a perspectiva da situação parasitária do paciente no longo prazo. Isso exige intenso acompanhamento médico e um custo para os serviços de cuidados de saúde primária e secundaria”, acrescentou Stobbaerts.
“O desafio é conseguir ferramentas que sejam aplicáveis no terreno, muitas vezes em lugares remotos e isolados. Ou seja, que sejam fáceis na utilização e no manejo para o pessoal da saúde no local. E, também, que sejam de tecnologia barata, devido aos limitados orçamentos de saúde pública”, ressaltou o especialista.
No encontro de Londres a DNDi mencionou entre outros aspectos-chave no combate das doenças esquecidas os da promoção da inovação, o intercâmbio aberto dos conhecimentos e da pesquisa, e a criação de associações de instituições públicas e privadas para o desenvolvimento de medicamentos.
Nesse sentido – afirmou-se – nesta região “se trabalha desde a sociedade civil até as áreas mais avançadas da ciência no sentido de demandar posições abertas com soluções pragmáticas dos grandes países da América Latina nos fóruns internacionais, com a Assembleia Mundial da Saúde ou o G-20” (maiores países industrializados e emergentes). Para Stobbaerts, existe “um caminho na região que traz esperança”.
“As universidades se mobilizam, abrindo bibliotecas e laboratórios a iniciativas sem fins lucrativos, o setor farmacêutico privado parece mais interessado em questões de responsabilidade social e corre um vento de filantropia privada que poderia se interessar mais em questões de saúde”, acrescentou o especialista.
Para a DNDi as plataformas regionais para a pesquisa clinica de doenças específicas, que aglutinam pesquisadores, médicos, reguladores, controladores nacionais e, idealmente, os próprios afetados, “são vitais para garantir que trabalhamos com base nas necessidades dos pacientes”. Nesse contexto, citou a Plataforma de Pesquisa Clinica no Mal de Chagas, que desde 2009 reúne um grande número de associados na América Latina.
A DDNi também disse que é chave garantir a participação e a liderança dos países endêmicos para responder aos pacientes e conseguir um financiamento sustentável e diversificado para ampliar o desenvolvimento e a pesquisa. “Aqui o interesse de nossa região é duplo: por estar liderando em nível global, proporcionando novas ideias, além de resolver emergências de saúde que se sofre localmente. É um trabalho cotidiano para alimentar a reflexão e romper os modelos de que pouco se pode fazer”, concluiu Stobbaerts.
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