“Nosso povo” faz, sim, uso problemático de drogas. Assim como faz usos medicinais, culturais e contraculturais, religiosos, científicos, filosóficos e recreacionais destas substâncias
Por Júlio Delmanto, no Brasil de Fato
O conceito de fetiche é comum aos principais pensadores nascidos do século XIX, Karl Marx e Sigmund Freud. Se em Marx o fetichismo (da mercadoria) é utilizado como ferramenta descritiva de obscurecimento das relações sociais, que passam a ser encaradas como relações entre coisas por conta da dinâmica imposta pelo Capital, em Freud o fetichismo é também ocultamento, mas da falta que nasce com a recusa em se admitir a diferença sexual entre homem e mulher. Em ambos os casos, o conceito é utilizado para descrever mecanismos de ocultamento de um problema, processo que leva a atenção a deslocar-se do central e focar-se em algum aspecto aparente e superficial.
Na atual conjuntura de uma suposta “sociedade do consumo”, a autonomia do indivíduo é apregoada e induzida no âmbito do consumo mas freada no que diz respeito à livre gestão dos corpos, na medida em que se busca interditar o acesso a algumas substâncias psicoativas – agrupadas sobre o generalizante guarda-chuva do termo “drogas”. Elas são tornadas ilícitas com a justificativa de se garantir a saúde pública. Sob uma razão entorpecida, como bem define a ex-juíza Maria Lúcia Karam, tais substâncias são eleitas como responsáveis por mazelas sociais de causas múltiplas e complexas, e o combate à produção e ao consumo destas traz em si uma série de outros sérios efeitos nefastos e evitáveis.
A fetichização das drogas, sobretudo das ilícitas, permeia os discursos e as práticas de Estados ao redor do planeta, sobretudo com o advento do neoliberalismo e o crescimento constante de contingentes populacionais definidos pelo sociólogo Zygmunt Bauman como formados por “consumidores falhos”: “pessoas carentes do dinheiro que lhes permitiria ampliar a capacidade do mercado consumidor, e que criam um novo tipo de demanda a que a indústria de consumo, orientada para o lucro, não pode responder nem ‘colonizar’ de maneira lucrativa”.
“A mão invisível do mercado e o punho de ferro do Estado, combinando-se e contemplando-se, fazem as classes baixas aceitarem o trabalho assalariado dessocializado e a instabilidade social que ele traz em seu bojo”, define o francês Loic Waqcuant. Com o crescimento deste contingente populacional supérfluo aos olhos do mercado, o punho de ferro é cada vez mais necessário e utilizado para manter o domínio dos de cima, sendo as políticas de drogas elemento fundamental de implementação destas práticas, das quais a saúde é elemento legitimador, jamais definidor.
Como lembra Foucault, no processo posterior à Revolução Francesa a burguesia dispunha primordialmente de três elementos de controle da “plebe não proletarizada”: exército, colônia e prisão. Com o fim das intervenções abertamente coloniais por parte dos países europeus e com o exército sendo opção apenas num número restrito de países, perdura hoje a prisão como elemento primordial neste tripé de contenção social. É inegável o papel das políticas de drogas na manutenção deste cenário: dos cerca de 500 mil encarcerados no Brasil, quase 100 mil foram trancados por conta de crimes relacionados a drogas. O perfil deles é majoritária e comprovadamente pobre, negro, jovem, desarmado e sem antecedentes criminais.
Além disso, é sob a justificativa de combate a drogas que governos atuam militarmente sobre territórios desejados por interesses econômicos e perseguem e assassinam parte de sua população. O consumo segue estável, como sempre, e o abuso não recebe tratamento adequado por parte da rede pública de saúde e tampouco informação de qualidade por parte dos sistemas de educação e de comunicação. É mais fácil proibir e pregar a inexistência de uma prática do que partir do pressuposto óbvio que o consumo existe e é preciso reduzir os danos dos excessos e respeitar o uso não problemático e a individualidade, não?
Implementadas no começo do século XX, as políticas de drogas foram difundidas globalmente pelas políticas imperiais do governo dos Estados Unidos, mas receberam calorosa acolhida dos Estados e elites nacionais, exatamente pelo aspecto de contenção social. Sendo assim, não há novidade em vermos a legitimação da guerra às drogas e da fetichização das substâncias alteradoras de consciência permeando discursos da grande mídia e de políticos e empresários de direita. “Muito poder e dinheiro estão à espera daqueles que penetram em nossas inseguranças emocionais e nos fornecem substitutos simbólicos”, explica Barry Glasner, autor de A cultura do medo.
Até tu, esquerda?
Mas o buraco é mais embaixo. Tal fetichização é também presente em setores da esquerda, como exemplifica o artigo “Drogas: consumo (in)consciente”, de de Roberta Traspadini, recentemente publicado pelo Brasil de Fato. Membro da Consulta Popular, a autora parte de um diagnóstico correto da definição de droga como um amplo leque de diferentes substâncias, legais e ilegais. Mas não desenvolve consequentemente tal pressuposto, acabando por concluir o artigo com a mesma bandeira propagada por Ronald Reagan e Richard Nixon no início da guerra às drogas: a busca por um mundo sem drogas.
Esquecendo-se de que o convívio humano com alteradores de consciência é imemorial e data das próprias origens da vida em sociedade, tendo sido ilegalizado somente no século XX, Traspadini relaciona equivocadamente consumo com dependência , e também consumo com capitalismo. Está duplamente incorreta, portanto, a seguinte afirmação da autora: “Ao conduzir a droga sobre as veias abertas do nosso povo, como classe, o capital, erva daninha a ser combatida em suas raízes, apodera-se das instâncias formais da política e executa um poder que pretende aniquilar a voz, o corpo, os sentidos da nossa trajetória popular”.
Qualquer pesquisa minimamente séria indica que o índice de abuso no uso de drogas, legais ou ilegais, é minoritário (mesmo no caso do demonizado crack, no qual o índice não chega a 25%), comprovando o que qualquer consumidor de vinho sabe: os efeitos das substâncias dependem de seu uso, não sendo benéficos ou maléficos a priori. Desta forma, “nosso povo” faz sim uso problemático de drogas, assim como faz usos medicinais, culturais e contraculturais, religiosos, científicos, filosóficos, pragmáticos e recreacionais destas substâncias que são parte do patrimônio cultural e histórico deste mesmo povo.
Além disso, tendo em vista exatamente esta história e tradição, é absolutamente questionável afirmar que é o capital quem “conduz a droga” para o povo, tendo em vista ser este um anseio muito anterior ao capitalismo. Obviamente que dentro dos marcos do sistema atual, tais substâncias são convertidas em mercadoria – e sobrevalorizadas exatamente pelo risco e a corrupção inerentes a um mercado ilegal – mas sequer no interior de tal ordem este cenário é exclusivo, com outras formas de produção permeando a lógica de produção e consumo. Por exemplo, cultivadores de maconha ou coca que plantam para seu próprio usufruto, utilização da ayahuasca ou do peyote em cerimônias religiosas, as cooperativas de cultivo de canábis na Espanha, etc.
“É necessário entender como funciona a cadeia produtiva, a exploração do trabalho, e a realização de enormes lucros, oriundos dessa gigante e internacional cadeia produtiva das drogas”, defende a autora, e nisso estamos de acordo. Agora, por um lado devemos lembrar que, exceto pela ilegalidade do mercado, esta cadeia atua de forma semelhante no setor de alimentos ou da cultura, por exemplo, e não vejo alguém cogitar a defesa de um mundo sem alimento ou sem cultura. Movimentos como a Consulta Popular querem, obviamente, a ressignificação da produção de tais necessidades. Por outro, é necessário entender sobretudo o efeito não das drogas, mas de sua proibição, sobre a população pobre brasileira, e este aspecto infelizmente segue sendo negligenciado não só por Trespadini mas por boa parte de uma esquerda ainda muito apegada ao moralismo e ao ideal do sacrifício militante, sem falar do autoritarismo que insiste em dizer às pessoas o que devem fazer com seus próprios corpos e o que é e o que não é “consciente”.
Novamente obrigados a lutar contra a violência estatal, nós do movimento antiproibicionista estamos presentes em meio às mobilizações em defesa do povo do Moinho, do Pinheirinho e da Luz. O que se vê por aqui, Roberta, são as coisas na mesma que situação Sabotage retratou há mais de dez anos: “Nêgo só vejo destroço/ do pobre que acorda com ódio”. A mão aberta nem sempre invisível do mercado e a mão fechada do Estado estão voltadas para os pobres, utilizando-se invariavelmente do suposto combate às drogas para sua legitimação. Não é com moralismos e jogando água no moinho de um importante instrumento de criminalização dos debaixo que caminharemos em direção a outro mundo. Pelo contrário. Desentorpeçamos a razão, e voltemos a arma da crítica para a crítica das armas (e de quem as empunha), não para substâncias inanimadas que não passam disso: substâncias inanimadas.
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Júlio Delmanto é jornalista e mestrando em História Social na USP, com pesquisa sobre as relações entre drogas e esquerda no Brasil. É membro do Desentorpecendo A Razão (DAR), coletivo antiproibicionista de São Paulo, da Marcha da Maconha-SP e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP).
Júlio Delmanto é jornalista e mestrando em História Social na USP, com pesquisa sobre as relações entre drogas e esquerda no Brasil. É membro do Desentorpecendo A Razão (DAR), coletivo antiproibicionista de São Paulo, da Marcha da Maconha-SP e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP).
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