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(segundo texto de A Ilha Deserta e Outros Textos)
JEAN HYPPOLITE, LÓGICA E EXISTÊNCIA DL
[1954]
Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito NT conservava tudo de Hegel e o comentava. A intenção deste novo livro é muito diferente. Hyppolite questiona a Lógica, a Fenomenologia e a Enciclopédia a partir de uma idéia precisa e sobre um ponto preciso. A filosofia deve ser ontologia, não pode ser outra coisa; mas não há ontologia da essência, só há ontologia do sentido. Aí está, parece, o tema desse livro essencial, cujo próprio estilo é de uma grande potência. Que a filosofia seja uma ontologia significará, primeiramente, que ela não é antropologia.
A antropologia quer ser um discurso sobre o homem. Como tal, ela supõe o discurso empírico do homem, no qual estão separados aquele que fala e aquilo de que ele fala. A reflexão está de um lado e, de outro, está o ser. O conhecimento, assim compreendido, é um movimento que não é um movimento da coisa, permanecendo, pois, fora do objeto. Portanto, o conhecimento é uma potência de abstrair, e a reflexão é uma reflexão exterior e formal. Desse modo, o empirismo remete a um formalismo, assim como o formalismo remete a um empirismo. “A [19] consciência empírica é uma consciência que se dirige ao ser preexistente e relega a reflexão à subjetividade”. A subjetividade será tratada, pois, como um fato, e a antropologia se constituirá como a ciência desse fato. Que a subjetividade, com Kant, devenha um direito, nada muda no essencial. “A consciência crítica é uma consciência que reflete o si do conhecimento, mas que relega o ser à coisa em si”. É certo que Kant se eleva à identidade sintética do sujeito e do objeto, mas somente de um objeto relativo ao sujeito: essa própria identidade é a síntese da imaginação, não é posta no ser. Kant ultrapassa o psicológico e o empírico, mas permanecendo no antropológico. Enquanto a determinação for apenas subjetiva, não saímos da antropologia. Se é preciso sair dela, como faze-lo? As duas questões são apenas uma: o meio de sair dela é também a necessidade de sair dela. Que o pensamento se ponha como pressuposto, Kant o viu admiravelmente: ele se põe, porque ele se pensa e se reflete, e ele se põe como pressuposto porque o todo dos objetos o supõe como aquilo que torna possível um conhecimento. Assim, em Kant, o pensamento e a coisa são idênticos, mas o que é idêntico ao pensamento é somente uma coisa relativa, não a coisa enquanto ser, em si mesma. Para Hegel, portanto, trata-se de elevar-se à verdadeira identidade da posição e do pressuposto, isto é, ao Absoluto. Na Fenomenologia, o livro mostra-nos que a diferença geral do ser e da reflexão, do em-si e do para-si, da verdade e da certeza, desenvolve-se nos momentos concretos de uma dialética, cujo próprio movimento consiste em suprimir essa diferença ou somente conserva-la como aparência necessária. Nesse sentido, a Fenomenologia parte da reflexão humana para mostrar que tal reflexão e sua seqüência conduzem ao saber absoluto que elas pressupõem. Trata-se, precisamente, como diz Hyppolite, de “reduzir” o antropológico, de “resgatar a hipoteca” de um saber cuja fonte é alóctone. Mas não é somente no final ou no início que o saber absoluto é. Já se encontra em todos os momentos: uma figura da consciência é, de uma outra maneira, um momento do conceito; a diferença exterior entre a reflexão e o ser é, de uma outra maneira, a diferença interna do próprio Ser, vale dizer [20], é o Ser idêntico à diferença, à mediação. “Uma vez que a diferença da consciência é retornada ao si, esses momentos apresentam-se, então, como conceitos determinados e como seu movimento orgânico fundado em si mesmo”.
Dir-se-á que há “orgulho” tomar-se por Deus, dar-se o saber absoluto. Mas é preciso compreender o que é o ser em relação ao dado. O Ser, segundo Hyppolite, não é a essência, mas o sentido. Dizer que basta este mundo-aqui não é somente dizer que ele nos basta, mas que ele basta a si e que ele remete ao ser, não como à essência para além da aparência, não como a um segundo mundo, que seria o Inteligível, mas como ao sentido deste mundo-aqui. Já encontramos esta substituição da essência pelo sentido em Platão, sem dúvida, quando ele mostra que o próprio segundo mundo é o tema de uma dialética que faz dele o sentido deste mundo-aqui, não um outro mundo. Mas o grande agente da substituição é ainda Kant, porque a crítica troca a possibilidade formal pela possibilidade transcendental, o ser do possível pela possibilidade do ser, a identidade lógica pela identidade sintética da recognição, o ser da lógica pela logicidade do ser – em suma, a essência pelo sentido. Que não haja segundo mundo é, assim, de acordo com Hyppolite, a grande proposição da Lógica hegeliana, porque ela é a razão de transformar a metafísica em lógica e, ao mesmo tempo, em lógica do sentido. Que não haja além-mundo significa que não há um além do mundo (porque o Ser é somente o sentido), significa que não há no mundo um além-mundo do pensamento (porque no pensamento é o ser que se pensa), significa, enfim, que não há no próprio pensamento um além da linguagem. O livro de Hyppolite é uma reflexão sobre as condições de um discurso absoluto; os capítulos sobre o inefável e sobre a poesia são essenciais a esse respeito. As pessoas que tagarelam são as mesmas que acreditam no inefável. Porque o Ser é o sentido, o verdadeiro saber não é o saber de um Outro, nem de outra coisa. De certa maneira, o saber absoluto é o mais próximo, o mais simples, ele está aí. “Nada há para se ver atrás da cortina” ou, como diz Hyppolite, “o segredo é que não há segredo”.
Vê-se, então, qual é a dificuldade, aquela que o autor assinala fortemente: se a ontologia é uma ontologia do sentido e não da [21] essência, se não há segundo mundo, como pode o saber absoluto distinguir-se ainda do saber empírico? Não recaímos na simples antropologia que tínhamos criticado? É preciso que o saber absoluto compreenda todo o saber empírico e nada compreenda além disso, pois nada distinto dele há para ser compreendido, e, contudo, é preciso, ao mesmo tempo, que ele compreenda sua diferença radical relativamente ao saber empírico. A idéia de Hyppolite é a seguinte: o essencialismo, apesar das aparências, não era o que nos protegia do empirismo e nos permitia ultrapassa-lo. Na visão da essência, a reflexão não é menos exterior do que no empirismo ou na pura crítica. O empirismo punha a determinação como puramente subjetiva; o essencialismo vai tão-somente ao fundo dessa limitação ao opor as determinações entre si e estas ao Absoluto. Estão ambos do mesmo lado. A ontologia do sentido, ao contrário, é o Pensamento total que só conhece a si em suas determinações, que são momentos da forma. No empírico e no absoluto há o mesmo ser e o mesmo pensamento; mas a diferença empírica, externa, entre o pensamento e o ser, cede lugar à diferença idêntica ao Ser, à diferença interna do Ser que se pensa. Por isso, o saber absoluto distingue-se efetivamente do saber empírico, mas só se distingue deste ao negar, também, o saber da essência indiferente. Portanto, na lógica, ao contrário do que ocorre no empírico, não se tem, de um lado, o que eu digo e, de outro, o sentido daquilo que digo – sendo a persecução de um pelo outro a dialética da Fenomenologia. Meu discurso é logicamente ou propriamente filosófico, ao contrário, quando digo o sentido daquilo que digo, e quando, deste modo, o Ser se diz. Um tal discurso, estilo particular da filosofia, só pode ser circular. É de se notar, a esse respeito, as páginas de Hyppolite sobre o problema do começo em filosofia, problema que não é apenas lógico, mas pedagógico.
Hyppolite ergue-se, portanto, contra toda interpretação antropológica ou humanista de Hegel. O saber absoluto não é uma reflexão do homem, mas uma reflexão do Absoluto no homem. O Absoluto não é um segundo mundo e, todavia, o saber absoluto distingue-se efetivamente do saber empírico, assim como a filosofia distingue-se de toda antropologia. [22]. Sobre isso, entretanto, se devemos considerar como decisiva a distinção feita por Hyppolite entre a Lógica e a Fenomenologia, a filosofia da história não teria com a Lógica uma relação mais ambígua? Hyppolite diz: como sentido, o Absoluto é devir; mas, como não se trata, sem dúvida, de um devir histórico, (histórico designando aqui algo totalmente distinto da simples característica de um fato), qual é a relação do devir da Lógica com a história? A relação entre a ontologia e o homem empírico está perfeitamente determinada, mas não a relação entre a ontologia e o homem histórico. E quando Hyppolite sugere que é preciso reintroduzir a própria finitude no Absoluto, não corremos o risco de um retorno ao antropologismo, sob nova forma? A conclusão de Hyppolite permanece aberta: ela cria o caminho de uma ontologia. Mas gostaríamos de indicar que a fonte da dificuldade já se encontrava, talvez, na própria Lógica. Se a filosofia tem uma significação, ela o tem somente por ser uma ontologia, e uma ontologia do sentido, o que se pode reconhecer justamente a partir de Hyppolite. O que se tem no empírico e no absoluto é o mesmo ser e é o mesmo pensamento; mas a diferença entre o pensamento e o ser é ultrapassada no absoluto pela posição do Ser idêntico à diferença, ser que, como tal, se pensa e se reflete no homem. Esta identidade absoluta do ser e da diferença chama-se sentido. Porém, em tudo isso há um ponto no qual Hyppolite mostra-se completamente hegeliano: o Ser só pode ser idêntico à diferença na medida em que a diferença seja levada ao absoluto, ou seja, à contradição. A diferença especulativa é o Ser que se contradiz. A coisa se contradiz porque, distinguindo-se de tudo aquilo que não é, ela encontra seu ser nessa própria diferença; ela só se reflete refletindo-se no outro, pois o outro é seu outro. É este o tema que Hyppolite desenvolve ao analisar os três momentos da Lógica: o ser, a essência e o conceito. Hegel criticava em Platão e em Leibniz o não terem ido até a contradição, de terem permanecido, um, na simples alteridade e, o outro, na pura diferença. Isto supõe, pelo menos, que não só os momentos da Fenomenologia e os momentos da Lógica não são momentos no mesmo sentido, mas supõe também que há duas maneiras, a
fenomenológica e a lógica, de se [23] contradizer. De acordo com este tão rico livro de Hyppolite, poder-se-ia perguntar o seguinte: não se poderia fazer uma ontologia da diferença que não tivesse de ir até a contradição, justamente porque a contradição seria menos e não mais do que a diferença? A contradição não é somente o aspecto fenomênico e antropológico da diferença? Hyppolite diz que uma ontologia da pura diferença nos restituiria a uma reflexão puramente exterior e formal e, afinal de contas, se revelaria ontologia da essência. Entretanto, a mesma questão poderia ser levantada de outro modo: é a mesma coisa dizer que o Ser se exprime e dizer que ele se contradiz? Se é verdade que a segunda e a terceira parte do livro de Hyppolite fundam uma teoria da contradição no Ser, na qual a própria contradição é o absoluto da diferença, em troca disso, na primeira parte (teoria da linguagem) e em todo o livro (alusões ao esquecimento, à reminiscência, ao sentido perdido), não estaria Hyppolite fundando uma teoria da expressão, na qual a diferença é a própria expressão e, a contradição, seu aspecto apenas fenomênico?
. . .
Tradução de
Luiz B. L. Orlandi
DL Revue philosophique de la France et de l’étranger, vol. CXLIV, nº 7-9, julho-setembro de 1954, pp 457-460. Logique et existence foi publicada em 1953 pela PUF. Jean Hyppolite (1907-1968), filósofo, especialista em Hegel, era professor de Deleuze no liceu Louis-le-Grand em curso preparatório para a Escola Normal Superior; vindo a ser professor na Sorbonne, dirigiu em seguida (com Georges Canguilhem) o Diploma de Estudos Superiores que Deleuze consagrou a Hume; a dissertação foi publicada pela PUF com o título Empirisme et subjectivité, em 1953, na coleção “Epiméthée”, dirigida por Hyppolite. Em entrevistas, Deleuze evoca reiteradamente sua admiração de estudante por Hyppolite, ao qual, aliás, Empirismo e subjetividade foi dedicado. Para além da homenagem, essa obra é o primeiro texto em que Deleuze formula explicitamente a hipótese de uma “ontologia da pura diferença”, que constituirá, como se sabe, uma das teses essenciais de Diferença e repetição.
NT Jean Hyppolite, Genèse et structure de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel, Paris, Aubier-Montaigne, 1946.
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