sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O OLHAR DE UM CEGO - Em tempos de Direitos Humanos*

Não lembro exatamente o que foi da fala da então Deputada Maria do Rosário, no dia 26. 11. 2000, em sua palestra de lançamento do Relatório Azul 98/99, no Seminário Municipal Sobre Violência, que fez com que elaborasse este título O olhar de um cego, anotei-o, mas não anotei a referência que o suscitou... mas como a escrita advém sempre de qualquer lugar possível e dos restos que guardamos para depois, faço disso esta escrevinhação.
             Ferreira Gullar pergunta: “Se eu não olhasse, se eu não tivesse do mundo a apreensão pelo olhar, só o apreendesse pelo tato, pelos ouvidos, pelo olfato, pelo gosto, se eu não apreendesse assim, que noção eu teria por exemplo da manhã? O que seria a manhã, o amanhecer, o dia, o entardecer, a noite? Que visão teria eu dessa realidade, se eu não apreendesse o mundo pelo olhar? A textura, a corporeidade das coisas, dos objetos, é diferente se eu apenas os tocar com os dedos. Mas quando eu olho, a riqueza que a minha percepção recebe do olhar é uma coisa incomparável com relação à que os outros sentidos me permitem apreender”... se o cego faz da integração dos demais sentidos, que não o olhar, para ver o mundo e o vê... o que podemos fazer então da visão que temos formada por todos os sentidos?!
Lamentavelmente, o Relatório Azul veio, ao longo de sua existência, ficando cada vez maior; e cada vez maior, porque cada vez se constata mais atos e situações que ferem os direitos humanos, não apenas os direitos enquanto formalidade constituída, mas os direitos do indivíduo enquanto possibilidade efetiva de produção e efetivação das condições de cidadania; de produção, porque cidadania não é uma coisa que alguém possa nos dar, não é somente uma Constituição que garantirá, com direitos alinhavados juridicamente; cidadania é uma coisa que se produz, também, a partir do descontentamento que temos com a forma como o mundo está, e não através dum Estado assistencialista, paternalista e provedor.
            Perguntemo-nos, juntamente com Bertaso, que é Professor na UNICRUZ, quando o mesmo indaga “a quem o Estado, enquanto ordem normativa legítima de organização do poder social, está servindo?”, a quem afinal está servindo o sujeito contemporâneo, enquanto pretenso cidadão que entende a condição de cidadania como restrita às pessoas bem situados economicamente? Qual é a dimensão da implicação desse pretenso cidadão com as condições básicas de vida e de politização da coletividade?
              Somos o cego que sente “na pele” as dificuldades geradas pela atual conjuntura econômica social e política; que aguça o ouvido diante o grito e o murmúrio; que marca muitas de suas experiência pelo registro olfativo; que degusta gostos e palavras; mas que está impedido de enxergar; o cego, pela limitação física; nós, pela limitação política que temos com relação ao mundo em que vivemos, pois como diz João Ubaldo Ribeiro “A política não é uma coisa distinta de nós. É a condução de nossa própria existência coletiva, com reflexos imediatos sobre nossa existência individual, nossa prosperidade ou pobreza, nossa educação ou falta de educação, nossa felicidade ou infelicidade.”; dependemos, então, da integração de nossos sentidos para que possamos “ver” o que há para além do olhar que podemos ter; ou de saber “ler” –não apenas as letras, mas também o que se encontra para além das letras-, como narra-nos Saramago, ao falar do momento em que seu personagem Ricardo Reis, ido do Brasil a Portugal, depara-se com a morte de Fernando Pessoa e, ao visitar o cemitério tece elucubrações sobre a organização do mesmo, tal qual uma cidade fosse: “Passou Ricardo Reis adiante o jazigo que procurava, nenhuma voz o chamou, Pst, é aqui, e ainda há quem insista em afirmar que os mortos falam, ai deles se não tiverem uma matrícula, um nome na pedra, um número como as portas dos vivos, só para que saibamos encontrá-los valeu o trabalho de nos ensinarem a ler, imagine-se um analfabeto dos muitos que temos, era preciso trazê-lo, dizer-lhe com a nossa voz, é aqui, porventura nos olharia desconfiado, se estaríamos a enganá-lo, se por erro nosso, ou malícia, vai orar a Montecchio sendo Capuletto, a Mendes sendo Gonçalves”.     
            E, por analfabetismo humano e político, muitas vezes à beira do caminho deixamos todos aqueles sonhos que um dia nos disseram que para sempre perseguiremos... o sonho de ser alguma coisa/ de ser alguém quando crescer; o sonho de ter uma letra mais bonita; de saber fazer poesia; de conseguir escrever um texto com introdução/desenvolvimento/conclusão, como nos ensinaram, incansavelmente, nossas professoras de português; o sonho de conhecer um daqueles cientistas de que nos falavam os professores... um daqueles que, no imaginário de nossa infância, faziam o mundo acontecer porque renunciavam a tudo para passar o tempo a decifrar os segredos do mundo!
           Sempre nos ensinaram que abandonamos alguns sonhos para inventar outros, para podermos viver, para buscarmos a promessa do encontro sempre adiado daquilo que possa nos sustentar... esquecemos, um pouco, as misérias do mundo, porque estamos lidando com nossas próprias misérias, isso se torna maior que a nossa capacidade de ver o mundo... deixamos pra viver depois, porque hoje estamos esperando o porvir e sabemos produzir o devir!
            E queremos ser humanos quando os humanos demonstram tudo o que pode vir de um humano... queremos explicar porque as pessoas não podem ser feitas todas da mesma fôrma... queremos fazer poesia quando o mundo cai e ficamos, ainda, tentando segurar... e cantamos alguma canção enquanto disfarçamos a alegria de ter encontrado alguma coisa que procurávamos muito... nos apaixonamos pelas pessoas as mais incertas! Inventamos formas de poder/ inventamos formas de ver a vida, criamos recheio para a nossa existência e, muitas vezes, esquecemos que há muitas outras existências a serem consideradas.
            Seguimos formas assépticas de viver a vida... alimentação saudável e na hora certa... mínimo de oito horas diárias de sono, com quarto arejado e cama confortável... roupas confortáveis... banhos diários... exercícios físicos regulares... trabalhar  num lugar que nos garanta as condições, pelo menos mínimas, para o exercício profissional, com salário regular e justo, com ambiente saudável e construtivo!
Somos assépticos e fascistas... não queremos saber da diversidade... não queremos saber daqueles que vivem a vida de forma diversa da nossa... queremos levar nossos assépticos cães (empedigrados) a cagar nos canteiros das praças e nos gramados dos vizinhos, mas não queremos que cães vadios dos nômades caguem em nossas calçadas e em nossos gramados... queremos repousar nossas cansadas bundas em lugares em que bundas vadias e nômades não tenham repousado seu ócio... queremos ter uma praça só nossa, que não seja pública (de todo e qualquer um)... queremos andar nossos passos em caminhos que não tenham sido palmilhados por insanas e nômades existências!
            Somos assépticos/ de uma assepsia burguesa surpreendente até que nos damos por achados, em meio ao meio/ ao eixo de nosso trabalho asséptico, lidando com um mundo completamente diferente do nosso; um mundo que a academia não nos avisou que encontraríamos; um mundo de pessoas que não têm o que comer, nem hora, nem dia para fazê-lo; um mundo de pessoas que não têm onde dormir, e quando têm... não queremos nem imaginar como seja... e das roupas, nem se fale... muitas vezes são roupas de marca, dessas marcadas por campanhas do agasalho realizadas por pessoas que acham que amontoar seres humanos num ginásio seja um fato de dar inveja; um mundo de pessoas que já não veem diferença em estar ou não banhado e que fazem exercícios físicos regulares porque andar é o mais comum quando já não temos nada para deixar à beira do caminho; um mundo onde a maioria das pessoas não têm trabalho e o nosso próprio trabalho é precário diante a dimensão da precariedade do mundo daqueles que não têm trabalho... um mundo que o capitalismo não avisou que ia produzir, para além do munda daqueles que estão muito bem incluídos no gordo ideário dominante!
             E quando ainda queremos sonhar algum sonho, nem que seja para deixar à beira do caminho, deparamo-nos com a crueza da vida de cada um... como de uma senhora que, morando sozinha, fechada em sua casa, já alucinando depois de passar vários dias sem comer, expelindo todos os produtos que seu corpo ainda conseguia produzir, escamando a pele envelhecida e desidratada, sem banho, com seus olhos remelentos, com sua urina ressequida em sua roupa sem marca e suja... aquela senhora, que não estava conseguindo articular suas idéias, pede um tempinho a mais para organizar seu pensamento e diz que necessita de um companheiro... não um companheiro para fazer “aquilo”, mas para poder espantar a solidão, para poder acordar cedo, conversar e ter alguém com quem pudesse “fazer planos”... já dizia alguém que morremos um pouco quando perdemos a capacidade de sonhar... mas podemos viver um pouco se tivermos lugar em nossos sonhos para aqueles que ainda sonham e também para os que não vivem de sonhos, mas do hoje que se apresenta... nem que seja para fazer planos ou para encher nossos caminhos de sonhos que nos levam a outros sonhos e à vida!
            Sonhos como o de Dona Edith, uma senhora de 66 anos que contava-me empolgada que voltou a estudar, que não encontrou seu histórico escolar e então está fazendo seus estudos desde a primeira série e que quer continuar estudando para encontrar um emprego, pois está aposentada e seus rendimentos são muito baixos, e também tem poucas ocupações, sempre foi dona-de-casa, agora cuida de seu pequeno apartamento, freqüenta um grupo de terceira idade e está estudando para conseguir um emprego ... e tem colega tão ou mais velhos que ela, estudando também! Talvez ela pudesse simplesmente querer curtir sua velhice precoce, mas em seu imaginário é um emprego que pode lhe fazer movimentar a vida... que o seja!
            Percebemos então que muita gente já entendeu que política não é o mero exercício eleitoreiro, mas que é, sim, a atuação de cada um de nós, em todos os nossos dias, em todas as horas, em todas as nossas ações... e damo-nos conta de que essa cidade está fervendo, está pipocando porque as pessoas estão aprendendo a exercitar a difícil ação de fazer política ativa e não a política alienante da passividade, da espera quatrianual por alguém que dê uma cesta básica, a tampa de uma panela por vir, o sapato de um par incerto, por alguém que diga que tudo o que foi feito nos quatro anos anteriores não vale nada e que o que vale seja a promessa estéril do ideal pessoal.
            Não é das verdades e mentiras, dos feitos e não feitos de cada candidato eleito que queremos saber, mas sim do lugar que cada cidadão está tendo na vida da cidade, de qual seja a promessa de vida em seu coração; não é da cobrança de ações de um Estado inócuo, assistencialista e provedor, que queremos saber!
            Queremos saber daqueles que sabem que passamos anos e anos acreditando nas caveiras de burro enterradas e que agora podemos falar disso, porque as pessoas podem passar uma vida emudecidas mas no momento em que conseguirem falar uma vez, jamais deixarão de fazê-lo! Queremos saber daqueles que sabem falar a fala do coletivo (em toda a sua diversidade), e não daqueles que acreditam que podem nos dizer o que e quando devemos falar!
            Queremos saber das Donas Edith que ainda acreditam na vida; das que querem aprender a escrever e ler; das que ainda sonham; das que já desistiram e necessitam de que alguém lhes toque lá no fundinho onde escondem as esperanças apagadas; das que querem que seus esforços, por mais insignificantes que possam parecer, façam parte da vida da cidade; das que não têm e-mail e que querem poder ler as cartas que recebem e escrever outras de volta; das que não têm emprego e que querem trabalhar; das que não têm comida, mas que querem comer sempre e não somente no período eleitoral; das que não se prestam à prostituição eleitoral; das que têm e das que não têm voz!
             E como dizia o velho Marx as abelhas constróem colmeias tão perfeitas que poderiam envergonhar a mais de um mestre-de-obras. Mas o pior mestre-de-obras é superior à melhor abelha porque, antes de executar a construção, ele a projeta em seu cérebro"... a política vem de dentro das gentes... o pensar e o fazer de cada um diz daquilo que somos no imenso mundo que é bem maior do que as coisas que cabem em nossa pequena história!
* Este é um escrito produzido em tempos idos... talvez 1999 ou 2000... e que retomo, revisando-o, pela pertinência de algumas questões que têm nos ocupado cá por estas plagas.

2 comentários:

  1. Maria Luiza, lembra que tu tinhas ficado de postar o texto do Seminário que eu farei no primeiro encontro do grupo em março?
    Já tem 12 pessoas inscritas.
    Bjussss
    Ju

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  2. olá, ju! durante o final de semana postarei o texto. as gurias já tinham solicitado por email. tenho que catar em meus arquivo. abração

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