domingo, 12 de fevereiro de 2012

A COMUNIDADE DOS SEM COMUNIDADE

por Peter Pàl Pelbart
Para Jeanne-Marie Gagnebin
 Uma constatação trivial é evocada com insistência por vários pensadores contemporâneos, entre eles Toni Negri, Giorgio Agamben, Paolo Virno, Jean-Luc Nancy, ou mesmo Maurice Blanchot. A saber, de que vivemos hoje uma crise do "comum". As formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum, e asseguravam alguma consistência ao laço social, perderam sua pregnância e entraram definitivamente em colapso, desde a esfera dita pública, até os modos de associação consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais. Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a encenação política, os consensos econômicos consagrados, mas igualmente as recaídas étnicas ou religiosas, a invocação civilizatória calcada no pânico, a militarização da existência para defender a "vida" supostamente "comum", ou, mais precisamente, para defender uma forma­de-vida dita "comum". No entanto, sabemos bem que esta "vida" ou esta "forma-de­vida" não é realmente "comum", que quando compartilhamos esses consensos, essas guerras, esses pânicos, esses circos políticos, esses modos caducos de agremiação, ou mesmo esta linguagem que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um seqüestro.

Se de fato há hoje um seqüestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma, manipulação do comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas, transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais figurações do "comum" começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro espectro. Num outro contexto, Deleuze lembra que a partir sobretudo da segunda guerra mundial, os clichês começaram a aparecer naquilo que são: meros clichês, os clichês da relação, os clichês do amor, os clichês do povo, os clichês da política ou da revolução, os clichês daquilo que nos liga ao mundo – e é quando eles assim, esvaziados de sua pregnância, se revelaram como clichês, isto é, imagens prontas, pré-fabricadas, esquemas reconhecíveis, meros decalques do empírico, somente então pôde o pensamento liberar-se deles para encontrar aquilo que é "real", na sua força de afetação, com conseqüências estéticas e políticas a determinar.
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Ora, hoje, tanto a percepção do seqüestro do comum como a revelação do caráter espectral desse comum transcendentalizado se dá em condições muito específicas. A saber, precisamente num momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer na sua máxima força de afetação, e de maneira imanente, dado o novo contexto produtivo e biopolítico atual. Trocando em miúdos: diferentemente de algumas décadas atrás, em que o comum era definido mas também vivido como aquele espaço abstrato, que conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como espaço público ou como política, hoje o comum é o espaço produtivo por excelência. O contexto contemporâneo trouxe à tona, de maneira inédita na história pois no seu núcleo propriamente econômico e biopolítico, a prevalência do "comum". O trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles são fruto da emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que nos é mais comum, a saber a linguagem, e seu feixe correlato, a inteligência, os saberes, a cognição, a memória, a imaginação, e por conseguinte a inventividade comum. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a capacidade de comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar a memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes. Nesse contexto de um capitalismo em rede ou conexionista, que alguns chamam de rizomático,l pelo menos idealmente aquilo que é comum é posto para trabalhar em comum. Nem poderia ser diferente: afinal, o que seria uma linguagem privada? O que viria a ser uma conexão solipsista? Que sentido teria um saber exclusivamente auto-referido? Pôr em comum o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isto a linguagem, a vida, a inventividade. Mas essa dinâmica assim descrita só parcialmente corresponde ao que de fato acontece, já que ela se faz acompanhar pela apropriação do comum, pela expropriação do comum, pela privatização do comum, pela vampirização do comum empreendida pelas diversas empresas, máfias, estados, instituições, com finalidades que o capitalismo não pode dissimular, mesmo em suas versões mais rizomáticas.

SENSORIALIDADE ALARGADA

Se a linguagem, que desde Heráclito era considerada o bem mais comum, tornou-­se hoje o cerne da própria produção, é preciso dizer que o comum contemporâneo é mais amplo do que a mera linguagem. Dado o contexto da sensorialidade alargada, da circulação ininterrupta de fluxos, da sinergia coletiva, da pluralidade afetiva e da subjetividade coletiva daí resultante, o comum passa hoje pelo bios social propriamente dito, pelo agenciamento vital, material e imaterial, biofísico e semiótico, que constitui hoje o núcleo da produção econômica mas também da produção de vida comum. Ou
1) Cf. "Capitalismo rizomático", na Parte III, p. 96, deste livro.
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seja, é a potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, de produção de laço, de capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, como diz Maurizio Lazzarato na esteira de Tarde,2 que é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Por isso mesmo este comum é o visado pelas capturas e seqüestros capitalísticos, mas é este comum igualmente que os extrapola, fugindo-­lhe por todos os lados e todos os poros.
Sendo assim, seríamos tentados a redefinir o comum a partir desse contexto preciso. Parafraseando Paolo Virno, seria o caso de postular o comum mais como premissa do que como promessa, mais como um reservatório compartilhado, feito de multiplicidade e singularidade, do que como uma unidade atual compartida, mais como uma virtualidade já real do que como uma unidade ideal perdida ou futura. Diríamos que o comum é um reservatório de singularidades em variação contínua, uma matéria a-orgânica, um corpo-sem-órgãos, um ilimitado (apeiron) apto às individuações as mais diversas.
Como se vê, quando se concebe o comum como um tal fundo virtual, como vitalidade social pré-individual, como pura heterogeneidade não totalizável, ele nada tem que ver com as figuras midiáticas, políticas, imperiais que pretendem hipostasiá­-lo, representá-lo ou expropriá-lo. Daí porque a resistência hoje passa por um êxodo em relação a essas instâncias que transcendentalizam o comum, e sobretudo pela experimentação imanente das composições e recomposições que o perfazem.
 ÉTICA E ETOLOGIA
 Talvez o livro em que Deleuze melhor tenha percorrido essas duas vias, a da recusa das instâncias transcendentalizadas e a da experimentação desse comum imanente, juntamente com Guattari, seja Capitalismo e esquizofrenia. Contra Édipo ou a forma-Estado, contra o plano de organização transcendente, sua unidade e suas capturas, os autores invocam simplesmente o plano de consistência, o plano de composição, o plano de imanência. Num plano de composição, trata-se de acompanhar as conexões variáveis, as relações de velocidade e lentidão, a matéria anônima e impalpável dissolvendo formas e pessoas, estratos e sujeitos, liberando movimentos, extraindo partículas e afetos. É um plano de proliferação, de povoamento e de contágio. Num plano de composição o que está em jogo é a consistência com a qual ele reúne elementos heterogêneos, disparatados. Como diz a conclusão praticamente ininteligível de Mil platôs, o que se inscreve num plano de composição são os acontecimentos, as transformações incorporais, as essências nômades, as variações intensivas, os devires, os espaços lisos – é sempre um corpo sem órgãos. Seja como
2) LAZZARATO, Maurizio. Puissances de l'invention. Paris, Les empêcheurs de penser en rond, 2001.
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se queira chamá-lo, Corpo-sem-órgãos, Mecanosfera, Plano de consistência, Plano de imanência, a linhagem espinosista aqui é muito clara, e inteiramente assumida.
Num pequeno texto de Deleuze sobre Espinosa, de 1978, essa conexão fica ainda mais clara. Ali a substância ou a Natureza única são concebidas como um plano comum de imanência, onde estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos. Ao explicar este plano, Deleuze insiste num paradoxo: ele já é plenamente dado, e no entanto deve ser construído, para que se viva de uma maneira espinosista.
Eis o argumento. O que é um corpo, ou um indivíduo, ou um ser vivo, senão uma composição de velocidades e lentidões sobre um plano de imanência? Ora, a cada corpo assim definido corresponde um poder de afetar e ser afetado, de modo que podemos definir um indivíduo, seja ele animal ou homem, pelos afectos de que ele é capaz. Deleuze insiste no seguinte: ninguém sabe de antemão de que afectos é capaz, não sabemos ainda o que pode um corpo ou uma alma, é uma questão de experimentação, mas também de prudência. É essa a interpretação etológica de Deleuze: a Ética seria um estudo das composições, da composição entre relações, da composição entre poderes. A questão é saber se as relações podem compor-se para formar uma nova relação mais "estendida", ou se os poderes podem se compor de modo a constituir um poder mais intenso, uma potência mais "intensa". Trata-se então, diz Deleuze, das "sociabilidades e comunidades. Como indivíduos se compõem para formar um indivíduo superior, ao infinito? Como um ser pode tomar um outro no seu mundo, mas conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios?”3
A questão, de todas a mais candente, poderia ser traduzida do seguinte modo: de que maneira se dá a passagem do comum à comunidade, à luz dessa teoria das composições e da dupla ótica que ela implica? E em que medida essa comunidade responde a um só tempo ao comum e às singularidades que o infletem?

NOSTALGIAS DA COMUNIDADE

Antes de me lançar a algumas indicações de Deleuze a respeito do tema, cabe um desvio para situar a questão da comunidade num contexto mais amplo. Jean-Luc Nancy, em seu La communauté descoeuvrée,4 lembra que segundo a tradição teórica ocidental, lá onde há sociedade, perdeu-se a comunidade. Quem diz sociedade já diz perda ou degradação de uma intimidade comunitária, de tal maneira que a comunidade é aquilo que a sociedade destruiu. É assim que teria nascido o solitário, aquele que no interior da sociedade desejaria ser cidadão de uma comunidade livre e soberana, precisamente aquela comunidade que a sociedade arruinou. Rousseau, por exemplo,
3) DELEUZE, Gilles. Spinoza, philosophie pratique. Paris, Minuit, 1981, p. 164.
4) NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Paris, Christian Bougois, 1986, que acompanho de perto nesse comentário.
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seria o primeiro pensador da comunidade, que tinha a "consciência de uma ruptura (talvez irreparável) dessa comunidade". Ele foi seguido pelos românticos, por Hegel... "Até nós, diz Nancy, a história terá sido pensada sob fundo de [uma] comunidade perdida – [uma comunidade] a reencontrar ou a reconstituir." A comunidade perdida ou rompida pode ser exemplificada de várias formas, como a família natural, a cidade ateniense, a república romana, a primeira comunidade cristã, corporações, comunas ou fraternidades ... Sempre referida a uma era perdida em que a comunidade se tecia em laços estreitos, harmoniosos, e dava de si mesma, seja pelas instituições, ritos, símbolos, a representação de sua unidade. "Distinta da sociedade... a comunidade não é apenas a comunicação íntima de seus membros entre si, mas também a comunhão orgânica dela mesma com sua própria essência." Ela é constituída pelo compartilhamento de uma identidade, segundo o modelo da família e do amor.
O autor conclui que seria preciso desconfiar dessa consciência restrospectiva da perda da comunidade e de sua identidade, bem como do ideal prospectivo que essa nostalgia produz, uma vez que ela acompanha o Ocidente desde seu início. A cada momento de sua história ele se entrega a uma nostalgia de uma comunidade perdida, desaparecida, arcaica, deplorando a perda de uma familiaridade, de uma fraternidade, de uma convivialidade. O curioso é que a verdadeira consciência da perda da comunidade é cristã: a comunidade pela qual anseiam Rousseau, Schlegel, Hegel, Bakunin, Marx, Wagner ou Mallarmé se pensa como comunhão, no seio do corpo místico de Cristo. A comunidade seria o mito moderno da participação do homem na vida divina. O anseio de comunidade seria uma invenção tardia que visava responder à dura realidade da experiência moderna, da qual a divindade se retirava infinitamente (como o mostrou Hölderlin). A morte de Deus seria um modo de se referir à morte da comunidade, e traria embutida essa promessa de uma ressurreição possível, numa imanência comum entre o homem e Deus. Toda a consciência cristã, moderna, humanista da perda da comunidade vai nessa direção.
 A COMUNIDADE NUNCA EXISTIU
Ao que Nancy responde, simplesmente: La communauté n'a pas eu lieu. A comunidade nunca existiu. Nem nos índios Guayaqui, nem no espírito de um povo hegeliano, nem na cristandade. "A Gesellschaft (sociedade) não veio, com o Estado, a indústria, o capital, dissolver uma Gemeinschaft (comunidade) anterior." Seria mais correto dizer que a "sociedade", compreendida como associação dissociante das forças, das necessidades e dos signos, tomou o lugar de alguma coisa para a qual não temos um nome, nem conceito, e que mantinha uma comunicação muito mais ampla do que a do laço social (com os deuses, o cosmos, os animais, os mortos, os desconhecidos) e ao mesmo tempo uma segmentação muito mais definida, com efeitos mais duros (de solidão, inassistência, rejeição etc.). "A sociedade não se construiu 
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sobre a ruína de uma comunidade... a comunidade, longe de ser o que a sociedade teria rompido ou perdido, é o que nos acontece – questão, espera, acontecimento, imperativo – a partir da sociedade .... Nada foi perdido, e por esta razão nada está perdido. Só nós estamos perdidos, nós sobre quem o "laço social" (as relações, a comunicação), nossa invenção, recai pesadamente... "
Ou seja, a comunidade perdida não passa de um fantasma. Ou, aquilo que supostamente se perdeu da "comunidade", aquela comunhão, unidade, co-pertinência, é essa perda que é precisamente constitutiva da comunidade. Em outros termos, e da maneira mais paradoxal, a comunidade só é pensável enquanto negação da fusão, da homogeneidade, da identidade consigo mesma. A comunidade tem por condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a distância. Daí a condenação categórica do desejo de fusão comunial, pois implica sempre na morte ou no suicídio, de que o nazismo seria um exemplo extremo. O desejo de fusão unitária pressupõe a pureza unitária, e sempre se pode levar mais longe as exclusões sucessivas daqueles que não respondem a essa pureza, até desembocar no suicídio coletivo. Aliás, por um certo tempo, o próprio termo comunidade, dado o seqüestro de que foi objeto por parte dos nazistas, com seu elogio da "comunidade do povo", desencadeava um reflexo de hostilidade na esquerda alemã. Foram precisos vários anos para que o termo fosse desvinculado do nazismo e reconectado com a palavra comunismo.5 Em todo caso, a imolação, por meio ou em nome da comunidade, fazia a morte ser reabsorvida pela comunidade, com o que a morte tornava-se plena de sentido, de valores, de fins, de história. É a negatividade reabsorvida (a morte de cada um e de todos reabsorvida na vida do Infinito). Mas a obra de morte, insiste Nancy, não pode fundar uma comunidade. Muito pelo contrário: é unicamente a impossibilidade de fazer obra da morte que poderia fundar a comunidade.
Ao desejo fusional, que da morte faz obra, contrapõe-se uma outra visão de comunidade, na contramão de toda nostalgia, de toda metafísica comunial. Segundo o autor não surgiu ainda uma tal figura de comunidade. Talvez isso queira dizer que aprendemos devagar que não se trata de modelar uma essência comunitária, mas antes de pensar a exigência insistente e insólita de comunidade, para além dos totalitarismos que se insinuam de todo lado, dos projetos técnico-econômicos que substituíram os projetos comunitários-comunistas-humanistas. Nesse sentido a exigência de comunidade ainda nos seria desconhecida, é uma tarefa, mesmo com as inquietudes pueris, por vezes confusas, de ideologias comuniais ou conviviais. Por que esta exigência de comunidade nos seria desconhecida? Pois a comunidade, na contramão do sonho fusional, é feita da interrupção, fragmentação, suspense, é feita dos seres singulares e seus encontros. Daí porque a própria idéia de laço social que se insinua na reflexão sobre a comunidade é artificiosa, pois elide precisamente esse entre. Comunidade como o compartilhamento de uma separação dada pela singularidade.
5) NANCY, J-L. La Communauté affrontée. Paris, Galilée, 2001, p. 26.
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Chegamos assim a uma idéia curiosa. Se a comunidade é o contrário da sociedade, não é porque seria o espaço de uma intimidade que a sociedade destruiu, mas quase o contrário, porque ela é o espaço de uma distância que a sociedade, no seu movimento de totalização, não pára de esconjurar. Em outras palavras, como diz Blanchot em seu livro La communauté inavouable,6 na comunidade já não se trata de uma relação do Mesmo com o Mesmo, mas de uma relação na qual intervém o Outro, e ele é sempre irredutível, sempre em dissimetria, ele introduz a dissimetria. Por um lado, então, o infinito da alteridade encarnada pelo Outro devasta a inteireza do sujeito, fazendo ruir sua identidade centrada e isolada, abrindo-o para uma exterioridade irrevogável, num inacabamento constitutivo. Por outro lado, essa dissimetria impede que todos se reabsorvam numa totalidade que constituiria uma individualidade ampliada, como costuma acontecer quando, por exemplo, os monges se despojam de tudo para fazer parte de uma comunidade, mas a partir desse despojamento tornam­-se possuidores de tudo, assim como no kibutz, ou nas formas reais ou utópicas de comunismo. Em contrapartida, está isso que já mal ousaremos chamar de comunidade, pois não é uma comunidade de iguais, e que seria antes uma ausência de comunidade, no sentido de que é uma ausência de reciprocidade, de fusão, de unidade, de comunhão, de posse. Essa comunidade negativa, como a chamou Georges Bataille, comunidade dos que não têm comunidade, assume a impossibilidade de sua própria coincidência consigo mesma. Pois ela é fundada, como diria ele, sobre o absoluto da separação que tem necessidade de afirmar-se para se romper até tornar-se relação, relação paradoxal, insensata. Insensatez que está numa recusa que talvez Bartleby, o personagem de Melville, dramatize da maneira mais extrema: a recusa de fazer obra. É ali onde a comunidade serve para ... nada. É ali, talvez, que ela comece a tornar-se soberana. Ousemos levar esse pensamento ao seu extremo, com todo o risco que ele comporta, já que não se trata aqui de transmitir uma doutrina, mas experimentar um feixe de idéias.
COMUNIDADE E SOBERANIA
 O que é soberano, rigorosamente falando? É aquilo que existe soberanamente, independente de qualquer utilidade, de qualquer serventia, de qualquer necessidade, de qualquer finalidade.7 Soberano é o que não serve para nada, que não é finalizável por uma lógica produtiva. Até literalmente, o soberano é aquele que vive do excedente extorquido aos outros, e cuja existência se abre sem limites, além de sua própria morte. O soberano é o oposto do escravo, do servil, do assujeitado, seja à necessidade, ao trabalho, à produção, ao acúmulo, aos limites ou à própria morte. O soberano
6)BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. Paris, Minuit, 1986.
7)BATAILLE, Georges. "La souveraineté", in Œuvres complètes, t. VIII. Paris, Gallimard, 1976.
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dispõe livremente do tempo e do mundo, dos recursos do mundo. É aquele cujo presente não está subordinado ao futuro, em que o instante brilha autonomamente. Aquele que vive soberanamente, se o pensarmos radicalmente, vive e morre do mesmo modo que o animal, ou um deus. É da ordem do jogo, não do trabalho. A sexualidade por exemplo é útil, portanto servil, já o erotismo é inútil, e neste sentido, soberano. Implica num dispêndio gratuito. Do mesmo modo o riso, a festa, as lágrimas, efusões diversas, tudo aquilo que contém um excedente. Bataille, em seu texto Essai sur la souveraineté, afirma que esse excedente tem algo da ordem do milagre, até mesmo do divino. Bataille chega a dar razão ao Evangelho, segundo o qual o homem não tem necessidade só de pão, ele tem fome de milagre. Pois o desejo de soberania, segundo Bataille, está em todos nós, até mesmo no operário, que com seu copo de cerveja participa por um instante ao menos, em algum grau, desse elemento gratuito e milagroso, desse dispêndio inútil e por isso glorioso. Isso pode ocorrer com qualquer um, na mesma medida, diante da beleza, da tristeza fúnebre, do sagrado ou até da violência. O mais difícil de entender para Bataille é que essas soberanias, que interrompem a continuidade encadeada do tempo, não têm objeto nem objetivo, dão em Nada, são Nada (Rien, não o Néant).
Bem, é claro que o mundo que vivemos, diz Bataille, é o da utilidade, do acúmulo, do encadeamento na duração, da operação subordinada, das obras úteis, em contraposição a essa dose de acaso, de arbitrário, de esplendor inútil, fasto ou nefasto, que já não aparece em formas rituais consagradas exteriormente, como em outros tempos, mas em momentos e estados difusos e subjetivos, de não servilidade, de gratuidade milagrosa, de dispêndio ou apenas de dissipação. Está em jogo, nessa soberania, uma perda de si, por trás da qual, como em Bartleby, fala uma recusa de servidão. Para jogar com as palavras, diríamos: Da Não-Servidão Involuntária. É algo dessa ordem que está em jogo na noção de soberania tal como ela foi pensada em Bataille, concepção que Habermas considera herdeira de Nietzsche e precursora de Foucault. 8
 MAIO DE 68 E O DESEJO DE COMUNIDADE
Seria preciso retomar agora ao tema da comunidade, tendo por pano de fundo
8) HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modemidade. São Paulo, Martins Fontes, 2000, capo VIII: "Entre erotismo e economia geral". Deixamos de lado aqui, obviamente, toda discussão do sentido clássico, político ou jurídico, da noção de soberania. A respeito, cf. em NEGRI, Antonio. O poder constituinte (Rio de Janeiro, DP&A, 2002). Numa nota de rodapé, Negri classifica o ensaio de Bataille sobre a soberania como misterioso e potentíssimo (p. 38n). Confrontar também com as considerações de Agamben sobre a necessidade de abandonar o conceito de soberania, que garante a indiferença entre direito e violência (Cf. Moyens sans fin. Paris, Payot, 1995, p. 124), ou sobre o equívoco de base de Bataille, ao tentar pensar a vida nua como figura soberana, inscrevendo-a na esfera do sagrado Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2002, p. 119).
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essa idéia nada convencional, pois contraria nossa tradição produtivista e comunicacional, tanto de soberania quanto de comunidade. Poderíamos acompanhar o belo comentário feito por Maurice Blanchot sobre Maio de 68, logo na seqüência de suas observações a respeito da obra de Bataille sobre a comunidade impossível, a comunidade ausente, a comunidade negativa, a comunidade dos que não têm comunidade.
Depois de uma descrição da atmosfera de Maio de 68, que inclui a comunicação explosiva, a efervescência, a liberdade de fala, o prazer de estar junto, uma certa inocência, a ausência de projeto, Blanchot se refere à recusa de tomar o poder ao qual se delegaria alguma coisa – é como se fosse uma declaração de impotência. Como uma presença que, para não se limitar, aceita não fazer nada, aceita estar lá, e depois ausentar-se, dispersar-se. Ao descrever o caráter incomum desse "povo" que se recusa a durar, a perseverar, que ignora as estruturas que poderiam dar-lhe estabilidade, nesse misto de presença e ausência, ele escreve: "É nisso que ele é temível para os detentores de um poder que não o reconhece: não se deixando agarrar, sendo tanto a dissolução do fato social quanto a indócil obstinação em reinventá-lo numa soberania que a lei não pode circunscrever, já que ela a recusa" ... 9 É essa potência impotente, sociedade a-social, associação sempre pronta a se dissociar, dispersão sempre iminente de uma "presença que ocupa momentaneamente todo o espaço e no entanto sem lugar (utopia), uma espécie de messianismo não anunciando nada além de sua autonomia e sua inoperância", 10 o afrouxamento sorrateiro do liame social, mas ao mesmo tempo a inclinação àquilo que se mostra tão impossível quanto inevitável – a comunidade.
Blanchot, nesse ponto, diferencia a comunidade tradicional, a da terra, do sangue, da raça, da comunidade eletiva. E cita Bataille: "Se esse mundo não fosse constantemente percorrido pelos movimentos convulsivos dos seres que se buscam um ao outro ... , ele teria a aparência de uma derrisão oferecida àqueles que ele faz nascer". Mas o que é esse movimento convulsivo dos seres que se buscam um ao outro? Seria o amor, como quando se diz comunidade dos amantes? Ou o desejo, conforme o assinala Negri, ao dizer: "O desejo de comunidade é o espectro e a alma do poder constituinte – desejo de uma comunidade tão real quanto ausente, trama e modo de um movimento cuja determinação essencial é a exigência de ser, repetida, premente, surgida de uma ausência"?11 Ou se trata de um movimento que não suporta nenhum nome, nem amor nem desejo, mas que atrai os seres para jogá-los uns em direção aos outros, segundo seus corpos ou segundo seu coração e seu pensamento, arrebatando-os à sociedade ordinária?12 Há algo de inconfessável nessa estranheza, que não podendo ser comum, é não
9) BLANCHOT, M. La communautée inavouable, op. cit., p. 57.
10) Idem, p. 57.
11)NEGRI, A. O poder constituinte, op. cit., p. 38.
12)BLANCHOT, op. cit., p. 79.
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obstante o que funda uma comunidade, sempre provisória e sempre já desertada. Alguma coisa entre a obra e a inoperância ...
Talvez é o que tenha interessado a Jean-Luc Nancy, requalificar uma região que já nenhum projeto comunista ou comunitário carregava. Repensar a comunidade em termos distintos daqueles que na sua origem cristã, religiosa, a tinham qualificado (a saber, como comunhão), repensá-la em termos da instância do "comum", com todo o enigma aí embutido e a dificuldade de compreender esse comum, "seu caráter não dado, não disponível e, nesse sentido, o menos "comum" do mundo". 13 Repensar o segredo do comum que não seja um segredo comum.14 O desafio obrigou o autor a um deslocamento, a saber, falar mais em estar-em-comum, estar-com, para evitar a ressonância excessivamente plena que foi ganhando o termo comunidade, cheia de substância e interioridade, ainda cristã (comunidade espiritual, fraternal, comunial) ou mais amplamente religiosa (comunidade judaica, 'umma) ou étnica, com todos os riscos fascistizantes da pulsão comunitarista. Mesmo a comunidade inoperante, como a havia chamado Nancy em seus comentários a partir de Bataille, com sua recusa dos Estados-nação, partidos, Assembléias, Povos, companhias ou fraternidades, deixava intocado esse domínio do comum, e o desejo (e a angústia) do ser-comum que os fundamentalismos instrumentalizam crescentemente.
O SOCIALISMO DAS DISTÂNCIAS
 Que esse tema seja mais do que uma obsessão individual de um autor, atesta-o sua presença recorrente entre pensadores dos anos 60-70. Em curso ministrado no Collège de France em 1976-77, por exemplo, Roland Barthedera ser seu "fantasma", mas que, visivelmente, não é apenas um fantasma individual, e sim o de uma geração. Por fantasma Barthes entende a persistência de desejos, o assédio de imagens que insistem num autor, por vezes ao longo de toda uma vida, e que se cristalizam numa palavra. O fantasma que Barthes confessa ser o seu, fantasma de vida, de regime, de gênero de vida, é o "viver-junto". Não o viver-­a-dois conjugal, nem o viver-em-muitos segundo uma coerção coletivista. Algo como uma "solidão interrompida de maneira regrada", um "pôr em comum distâncias", "a utopia de um socialismo das distâncias", 16 na esteira do "páthos da distância" evocado por Nietzsche.
Barthes refere-se com mais precisão a seu "fantasma", ao evocar a leitura de uma descrição de Lacarrière sobre conventos situados no monte Athos. Monges com
13)NANCY, J.-L. La communautée affrontée, op. cit., p. 38
14)Idem, p. 41.
15)BARTHES, Roland. Comment vivre-ensemble. Paris, Seuil Imec, 2002.
16)Idem.
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 uma vida em comum e, ao mesmo tempo, cada um seguindo seu ritmo próprio. "Idiorritmia" (idios: próprio, ruthmos: ritmo). Nem o cenobitismo, forma excessiva da integração, nem o eremitismo, forma excessiva da solidão negativa. A idiorritmia como forma mediana, idílica, utópica.17
O fantasma do viver-junto (ou sua contrapartida: o viver-só) está muito presente em toda a literatura. Por exemplo o viver-junto em A montanha mágica, de Thomas Mann, ao mesmo tempo fascinante e claustrofóbico, ou o viver-só no Robinson Crusoé, de Daniel Defoe. Ou a biografia de alguns pensadores, como é o caso de Espinosa, que no final da vida se retira para Voorburg, perto de Haia, onde aluga um quarto e de vez em quando desce para conversar com seus hospedeiros – verdadeiro anacoreta, comenta Barthes, ao chamar a atenção para o desejo de criar uma estrutura de vida que não seja um aparelho de vida. Em todo caso é um modo de fugir ao poder, negá-lo ou recusá-lo (anachorein, em grego: retirar-se para trás). Hoje um tal anseio poderia ser traduzido em termos de distanciamento da gregariedade, com figurações políticas inusitadas.
O COMUM E A SINGULARIDADE QUALQUER
 Temos disso um belo exemplo com Giorgio Agamben, em seu livro intitulado A comunidade que vem.18 Ali ele recorda a bela frase de Heráclito: Para os despertos um mundo único e comum é, mas aos que estão no leito cada um se revira para o seu próprio. O Comum para Heráclito era o Logos. A expropriação do Comum numa sociedade do espetáculo é a expropriação da linguagem. Quando toda a linguagem é seqüestrada por um regime democrático-espetacular, e a linguagem se autonomiza numa esfera separada, de modo tal que ela já não revela nada e ninguém se enraiza nela, quando a comunicatividade, aquilo que garantia o comum, fica exposta ao máximo e entrava a própria comunicação, 19 atingimos um ponto extremo do niilismo. Como desligar-se dessa comunicatividade totalitária e vacuizada? Como desafiar aquelas instâncias que expropriaram o comum, e que o transcendentalizaram? É onde Agamben evoca uma resistência vinda, não como antes, de uma classe, um partido, um sindicato, um grupo, uma minoria, mas de uma singularidade qualquer, do qualquer um, como aquele que desafia um tanque na Praça Tienanmen, que já não se define por sua pertinência a uma identidade específica, seja de um grupo político ou de um movimento social. É o que o Estado não pode tolerar, a
17)Segundo Barthes. a idiorritmia pode ser buscada mais nas formas scmi-anacoréticas, do monasticismo oriental, em todo caso anteriores ao século 4. De fato, em 380, por meio do Édito de Teodósio, o eremitismo, o anacoretismo c a idiorritmia foram liquidados – eram considerados marginal idades perigosas, resistentes às estruturas religiosas de poder que se instalavam. Com a queda de Tessalônica, em 1430, a idiorritmia assisle a um renascimento, e sobrevive até os dias de hoje.
18)AGAMBEN, G. La communauté qui vient. Paris, Seuil, 1990.
19)AGAMBEN, G. Moyens sans fin: notes sur la politique. Paris, Payot/Rivages, 1995, p. 95.
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singularidade qualquer que o recusa sem constituir uma réplica espelhada do próprio Estado na figura de uma formação reconhecível. A singularidade qualquer, que não reivindica uma identidade, que não faz valer um liame social, que constitui uma multiplicidade inconstante, como diria Cantor. Singularidades que declinam toda identidade e toda condição de pertinência, mas manifestam seu ser comum – é a condição, diz Agamben, de toda política futura. Bento Prado Jr., referindo-se a Deleuze, utilizou uma expressão adequada a uma tal figura: o solitário solidário.
 BLOOM
Recentemente uma publicação anônima inspirada em Agamben contrapunha à comunidade terrível que se anuncia por toda parte, feita de vigilância recíproca e frivolidade, uma comunidade de jogo.20 Uma tal comunidade baseia-se numa nova arte das distâncias, no espaço de jogo entre desertores, que não elide a dispersão, o exílio, a separação, mas a assume a seu modo, mesmo nas condições as mais adversas do niilismo, mesmo nessa vida sem forma do homem comum, aquele que perdeu a experiência, e com ela a comunidade, mas a comunidade que nunca houve, como disse Nancy, pois esta comunidade que ele supostamente perdeu é aquela que nunca existiu a não ser sob a forma alienada das pertinências, de classe, de nação, de meio, recusando sempre aquilo que a comunidade teria de mais próprio, a saber, a assunção da separação, da exposição e da finitude, como o havia postulado Bataille.
À vida sem forma do homem comum, nas condições do niilismo, o grupo de Tiqqun deu o nome de Bloom21. Inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um tipo humano recentemente aparecido no planeta, e que designa essas existências brancas, presenças indiferentes, sem espessura, o homem ordinário, anônimo, talvez agitado quando tem a ilusão de que com isso pode encobrir o tédio, a solidão, a separação, a incompletude, a contingência – o nada. Bloom designa essa tonalidade afetiva que caracteriza nossa época de decomposição niilista, o momento em que vem à tona, porque se realiza em estado puro, o fato metafísico de nossa estranheza e inoperância, para além ou aquém de todos os problemas sociais de miséria, precariedade, desemprego etc. Bloom é a figura que representa a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiáveis e substituíveis. Pouco importam os conteúdos de vida que se alternam e que cada um visita em seu turismo existencial, o Bloom é já incapaz de alegria assim como de sofrimento, analfabeto das emoções de que recolhe ecos difratados. Nessa existência espectral, de algum modo se insinua uma estratégia de resistência,
20)Revista Tiqqun. Paris, 2001.
21)TIQQUN. Théorie du Bloom. Paris, La Fabrique, 2000 e a revista Tiqqun, 2001.
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em que o Bloom subtrai ao poder (biopoder, sociedade do espetáculo) aquilo sobre o qual este quereria se exercer. O Bloom é o desejo de não viver, de ser nada, ele é o nada mascarado, que assim desmonta a pretensão do biopoder de fazê-lo viver. Bloom é o homem sem qualidades, sem particularidades, sem substancialidade do mundo, o homem enquanto homem, o anti-herói presente na literatura do século passado, de Kafka a Musil, de Melville a Michaux e Pessoa – é o homem sem comunidade. É onde intervém a possibilidade que o Bloom queira o que ele é, que ele se reaproprie de sua impropriedade, que assuma o exílio, a insignificância, o anonimato, a separação e a estranheza não como circunstâncias poéticas ou apenas existenciais, mas também políticas.
* * *
Ora, feito esse desvio, já estamos em condições de voltar a Deleuze, não só à sua perspectiva teórica, mas talvez mais importante, também ao seu tom. A propósito do Bartleby, de Melville, aquele escriturário que a tudo responde que "preferiria não" (precursor do Bloom?), o autor comenta: a particularidade deste homem é que ele não tem particularidade nenhuma, é o homem qualquer, o homem sem essência, o homem que se recusa a fixar-se em alguma personalidade estável. Diferentemente do burocrata servil (que compõe a massa nazista, por exemplo), no homem comum tal como ele aparece aqui se expressa algo mais do que um anonimato inexpressivo: o apelo por uma nova comunidade.22 Não aquela comunidade baseada na hierarquia, no paternalismo, na compaixão, como o seu patrão gostaria de lhe oferecer, mas uma sociedade de irmãos, a comunidade dos celibatários. Deleuze detecta entre os americanos, antes mesmo da independência, essa vocação de constituir uma sociedade de irmãos, uma federação de homens e bens, uma comunidade de indivíduos anarquistas no seio da imigração universal. A filosofia pragmatista americana, em consonância com a literatura americana que Deleuze tanto valoriza, lutará não só contra as particularidades que opõem o homem ao homem, e alimentam uma desconfiança irremediável de um contra o outro, mas também contra o seu oposto, o Universal ou o Todo, a fusão das almas em nome do grande amor ou da caridade, a alma coletiva em nome da qual falaram os inquisidores, como na famosa passagem
22)É de se perguntar se algo semelhante não se insinua na reflexão de Max Horkheimer sobre o fim do indivíduo na sociedade de massas. Ele reconhece nos indivíduos um elemento de "especificidade (singularidade)", um "elemento de particularidade do ponto de vista da razão", que estaria desde a primeira infância totalmente reprimido ou absorvido. Ao exemplificar esse elemento irredutível, no final de seu ensaio "Ascensão e declínio do indivíduo", ele evoca a resistência dos anônimos, sugerindo que "o núcleo da verdadeira individualidade" é a resistência: "Os verdadeiros indivíduos de nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação em sua resistência à conquista e à opressão. Os mártires anônimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta por nascer". In O eclipse da razão. Rio de Janeiro, Labor, respectivamente pp. 158 e 172. Devo a Jeanne-Marie Gagnebin a indicação desta passagem, bem como a de várias outras utilizadas neste capítulo, no rastro de uma interlocução discreta e amiga.
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de Dostoievski, e por vezes os revolucionários. Deleuze pergunta, então: o que resta às almas quando não se aferram mais a particularidades, o que as impede então de fundir-se num todo? Resta-lhes precisamente sua "originalidade", quer dizer um som que cada uma emite quando põe o pé na estrada, quando leva a vida sem buscar a salvação, quando empreende sua viagem encarnada sem objetivo particular, e então encontra o outro viajante, a quem reconhece pelo som. Lawrence dizia ser este o novo messianismo ou o aporte democrático da literatura americana: contra a moral européia da salvação e da caridade, uma moral da vida em que a alma só se realiza pondo o pé na estrada, exposta a todos os contatos, sem jamais tentar salvar outras almas, desviando-se daquelas que emitem um som demasiado autoritário ou gemente demais, formando com seus iguais acordos e acordes, mesmo fugidios. A comunidade dos celibatários é a do homem qualquer e de suas singularidades que se cruzam: nem individualismo nem comunialismo.
CONCLUSÕES
 Neste percurso ziguezagueante, percorremos a comunidade dos celibatários, a comunidade dos sem comunidade, a comunidade negativa, a comunidade ausente, a comunidade inoperante, a comunidade impossível, a comunidade de jogo, a comunidade que vem, a comunidade da singularidade qualquer – nomes diversos para uma figura não fusional, não unitária, não totalizável, não filialista de comunidade. Resta saber se essa comunidade pode ser pensada, tal como o sugere Negri, como uma ontologia do comum. A resposta está insinuada na primeira parte desse texto: nos termos de Deleuze, a partir de Espinosa e sobretudo em seu trabalho conjunto com Guattari, e nas condições atuais de um maquinismo universal, a questão é a do plano de imanência já dado, e ao mesmo tempo, sempre por construir. Na contramão do sequestro do comum, da expropriação do comum, da transcendentalização do comum, trata-se de pensar o comum ao mesmo tempo como imanente e como em construção. Ou seja, por um lado ele já é dado, a exemplo do comum biopolítico, e por outro está por construir, segundo as novas figuras de comunidade que o comum assim concebido poderia engendrar.
Esse pequeno itinerário pode servir para descobrirmos comunidade lá onde não se via comunidade, e não necessariamente reconhecer comunidade lá onde todos vêem comunidade, não por um gosto de ser esquisito, mas por uma ética que contemple também a esquisitice e as linhas de fuga, novos desejos de comunidade emergentes, novas formas de associar-se e dissociar-se que estão surgindo, nos contextos mais auspiciosos ou desesperadores. 
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