sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

artigo sobre financiamento da Saúde


por José Carvalho de Noronha e Gustavo Souto de Noronha


“A sociedade burguesa se encontra diante de um dilema: ou avanço para o socialismo ou recaída na barbárie.” Friedrich Engels apud Rosa Luxemburgo (in: A Crise da Social-Democracia – Folheto Junius)
O Plano de Fundo

O dilema socialismo ou barbárie é de fundamental importância para qualquer discussão sobre a organização do Estado desde o século XIX. O padrão de produção, distribuição, acumulação e consumo hoje existente nas nações europeias e americanas do norte não é reproduzível para o conjunto das pessoas do mundo. Nos dias de hoje, já se consomem por ano as reservas de uma Terra e meia. Se os sete bilhões de habitantes da Terra adotassem o padrão de consumo dos Estados Unidos, seriam imediata- mente necessárias quatro Terras e meia! Vivenciamos uma crise ecológica sem precedentes e, como dizia Marx, a “produção capitalista só se desenvolve exaurindo as fontes originais de toda riqueza: a terra e o trabalhador”. Para evitar a barbárie, que, aliás, já se abate em várias partes do mundo, há que se agregar a defesa do planeta como parte indissociável da luta pelo socialismo.
Enquanto perdurou a ameaça do triunfo comunista com o “sucesso” soviético, o capitalismo europeu construiu estruturas de bem estar social. Este componente político também permitiu uma atuação maior do Estado na economia, sem asconstantes ameaças dos economistas do mercado. O fracasso soviético fez-se acompanhar da vitória do neoliberalismo e das ideias do Estado mínimo, e com elas a tentativa de desmonte de qualquer noção de proteção social.
A utopia da vida eterna

A busca da imortalidade está presente na história da humanidade desde seu alvorecer. Praticamente todas as religiões do passado e do presente, expressando a perplexidade com a finitude da vida humana, têm proposto soluções diversas para o que acontece depois que mor- remos. Rituais mágicos e religiosos também se ocuparam, se ocupam, e certamente se ocuparão dos modos de prolongar a vida na Terra.

As consideradas ciências, baseadas na razão, também se preocuparam com a vida de- pois da morte. O filósofo britânico John Gray publicou, em 2011, um livro intitulado A Co-missão da Imortalização, que tem como subtítulo “a ciência e a estranha busca de trapacear a morte”, onde visita essa tentativa com humor, concisão e abrangência. As ciências também se ocuparam de conseguir a imortalidade aqui na própria Terra, onde o alvorecer da química científica coincidiu com a busca da pedra filosofal e do elixir da longa vida. A Medicina, desde seu nascedouro, aparentemente deixando a busca da imortalidade para outros, sempre tratou de fazer com que a Morte, quando se apresentas- se, adiasse sua visita. Ocorre que ela sempre retornava.

Não bastasse o retorno da morte, sua ausência acarretaria problemas dramáticos, retrata- dos na literatura pelo escritor português José Saramago, no livro As intermitências da morte, onde narra o sucedido a partir de um dia quando, em Portugal, as pessoas simplesmente param de morrer. Outro escritor português, Gonçalo Tavares,publicou Uma viagem à Índia, à moda de uma epopeia lírica contemporânea, onde uma de suas estrofes canta:
“As várias gerações são egoístas, sem dúvida. Porque se os dias emperrassem numa geração específica - como roldana sem óleo que não avança -, estaríamos diante de uma magnífica raça eterna. O que muito faria contentes uns e incomodaria outros: aqueles que ainda não nasceram".
Tem a duração da vida um limite? Vários demógrafos têm se dedicado a analisar a evolução da duração da vida ao longo do tempo. Embora de maneira desigual, a esperança de vida ao nascer tem aumentado, fundamentalmente graças à redução da mortalidade na infância. Robine, demógrafo francês, em trabalho sobre a evolução secular da mortalidade em adultos, identificou uma idade modal de morte com relativa estabilidade que passa a ser detectável na Suécia aos fins do século XVIII, e na Suíça no século XIX, e se situa em tor- no dos 75 anos. O Japão, para os anos 1950, evidenciaria o que se- ria o fim da transição epidemiológica, situando a idade modal em torno dos 80 anos, bastante próxima da atual em todos os países do mundo desenvolvido.

James Fries, médico, introduziu, em 1980, a ideia da “Compressão da Morbidade”, sugerindo que o aumento da esperança de vida se faria acompanhar de um encurtamento da extensão da vida com morbidade. Ele acreditava que as mesmas forças que resultaram na diminuição da mortalidade estariam associadas a uma menor incidência de doenças crônicas e a um aumento da idade de início dessas doenças. Entretanto, inúmeros estudos desde meados dos anos 70 têm demonstrado que isso não ocorre. Uma pessoa que morre aos 65 anos, por infarto agudo do miocárdio, por exemplo, consome bem menos serviços e produtos de saúde do que se sobreviver ao infarto e vier a falecer de câncer aos 90 anos.
A redução da mortalidade não se acompanha necessariamente de uma redução da incidência, e aumenta o número de sobreviventes portadores de problemas de saúde que estarão sujeitos à ocorrência de problemas de saúde adicionais. Fará sentido a bus- ca incessante por tecnologias de prolongamento exaustivo de nossas vidas? Como trazer aos dias de hoje aqueles que, como na África subsaariana, mal chegam aos 52 anos? E os bolsões de miseráveis que ainda vivem entre nós e em vários países de renda média?

Os gastos em saúde

O debate sobre o financia- mento da saúde deve partir, portanto, da premissa de que quanto mais saúde um povo tem, mais assistência médica ele precisa. Como corolário, quanto maior o gasto em saúde hoje, maior ele será amanhã. As medidas preventivas são necessárias e boas porque nos permitem viver mais e melhor, não porque barateiam os gastos globais do sistema.

Ponto relevante é o custo dos tratamentos. Quantas pessoas poderiam ser tratadas de diabetes ou hipertensão com o que se gasta para tornar viável um recém-nascido de 450 gramas? Com apenas um quarto dos cerca de 160 milhões de reais que o Ministério da Saúde gastou, em 2009, para aliviar os sinto- mas de 4.700 pacientes com artrite reumatoide ou psoríase com a droga adalimumabe, cujo uso ainda não está inteiramente consagrado, seriam tratados, e em sua maioria curados, todos os 73.000 casos novos de tuberculose pulmonar identificados naquele ano. Isso ilustra a equivocada noção de que os recursos existentes para a saúde são suficientes, mas mal geridos. Escolhas de eficiência podem obrigar a discussão de soluções finais à moda nazista. Não quer dizer que maior eficiência e eficácia não sejam necessárias, entretanto os ganhos dessa natureza são marginais.

O Homo ricus
Cacá Diegues publicou uma crônica na revista Piauí, intitulada A Evolução das Espécies por Seleção Artificial, onde trata do aparecimento, no futuro, do Homo ricus, desenvolvido a partir de uma parcela da população que tem acesso a serviços avançadíssimos de terapia genética na fronteira tecnológica dissociada dos demais Homo sapiens. Os “lucros com esta se tornaram de tal modo elevados que os laboratórios deixaram de fabricar os medicamentos convencionais” para os homens comuns. O uso do planeta pelos mais ricos e a não construção de um sistema público universal de saúde que forneça à toda a população os produtos e ser- viços de saúde mais avançados certamente transformará a divi- são de classes na divisão de espécies sugerida por Diegues.

A escolha
Da forma como hoje está colocado o debate sobre gastos públicos em saúde, os gestores públicos são cotidianamente submetidos a escolhas de Sofia, decidindo quem deve vi- ver e quem deve morrer. Toda- via, jamais é dito claramente para a sociedade que os impostos que deveriam financiar a saúde, educação e outros gastos governamentais são na realidade destinados ao sistema financeiro. Os encargos financeiros cor- responderam em 2010 a uma apropriação de 41,90% de toda a despesa do governo federal. A seguridade social, dentro da qual estão inseridos os gastos de saúde, apropriou-se de 40,08% das despesas (3,71% na Assistência Social, 31,14% na Previdência Social e 5,22% na Saúde). Como sabemos, há quem chame esses gastos destinados ao sistema financeiro de “bolsa banqueiro”...

Qual seria, então, o cenário se não for revertida essa lógica? Como os recursos destinados à saúde são insuficientes para atender à demanda, teríamos que construir câmaras de gás para os cidadãos que atingissem uma determinada idade em que o seu custo em saúde seria excessivo – 75 anos, por exemplo –, a não ser para aqueles abasta- dos que fossem capazes de cobrir privadamente seus gastos. Ou ainda, editaríamos um decreto estabelecendo que bebês com menos de um quilo, salvo com cobertura privada, seriam deixados para morrer. Não demoraria que alguém propusesse a esterilização em massa das camadas mais pobres, chegando-se à solução final para a pobreza: a eliminação física dos pobres – e junto com eles a contenção do gasto em saúde com estas pessoas. Ou pior, como Diegues escreve a certa altura, “Os decadentes Homo sapiens seguiam espalhados em desordem pelo planeta, vagando pelas áreas mais pobres dos continentes, com famílias numerosas e sobrevivência cada vez mais curta.” Até que finalmente “por di- versão e esporte, os Homo ricus passaram a caçar os Homo sapiens...” Será essa nossa escolha?

* José Carvalho de Noronha é médico sanitarista, doutor em Saúde Coletiva e pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica da Fundação Oswaldo Cruz.

* Gustavo Souto de Noronha é economista e superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Estado do Rio de Janeiro.

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