domingo, 24 de julho de 2011

Para compor jardins

Acordei, hoje, saída de um sonho meio poético e meio burocrático. No sonho, eu tentava resolver uma situação intersetorial, com uma dada secretaria de governo. Era uma secretaria que existia para cuidar da questão dos jardins da comunidade e a pendenga que se tentava resolver era: compor ou fazer jardins? Acordei no meio disso e já saí compondo este escrito... sim, compondo!... porque quando me ocorre um assunto desses, passo o dia conversando com as palavras e com as idéias, até que sento e rabisco algo parecido com o que pensei.
Durante muito tempo usei da literatura para sobreviver subjetivamente, seja lendo ou escrevendo. Faz bem pouco tempo que vivo da literatura (não mais sobrevivo), tendo assumido no mundo, minha condição de preto-velho. Invento histórias. Conto coisas. Matuto até com as lesmas que me infernizam. Bebo cachaça como quem bebe água de vertente. Fumo palheiro e cachimbo pra espantar a desconcentração dos pensamentos. Cuspo com a saliva, as coisas de que não gosto. Oiço música pra distrair a seriedade das coisas. Gosto de lamber as palavras pra lhes provar o sabor!
Lembrei, com isso, de três professoras que tive no “primeiro grau”. Uma ensinava a fazer composição (de texto). Outra exigia-nos que fizéssemos redação. E outra (que mais me convenceu), ensinava que era necessário deixar compor (essa sabia que a relação com as palavras não pode ser burocrática e dura... deve ser livre... é a liberdade que nos possibilita compor!).
Essas coisas me vieram pros pensamentos, porque em duas noites seguidas, eu e uma amiga, tivemos tempo para nossas conversas ao pé do fogo (quase que o frio se foi embora sem que pudéssemos exercitar uma de nossas atividades preferidas, que é essa de sentar ao pé do fogo e passar horas falando das coisas da vida). E nessas conversações, só escapa da pauta, aquilo que tem que escapar, no mais, a labareda alumia tudo!
Pois ocorre que ontem aconteceu, em nossa comunidade, a entrega de mais casas do programa do governo federal, “minha casa, minha vida”, no Condomínio Vida Nova, bairro Jardim Petrópolis (Vila dos Funcionários) e falamos sobre isso, ao pé do fogo. Eu sempre defendo a idéia de que o governo deveria desengessar a forma como as casas populares são compostas e produzidas (já falo mais disso)... até tenho um devaneio: “minha choupana, minha vida”!
Minha amiga ficou contente em ver que os terrenos dessas casas, recém entregues, contam com pátio e espaço para fazer outras coisas, principalmente horta e jardim (é comum as habitações populares serem feitas em terrenos quase exatos ao tamanho das pequenas casas).
Afora as burocracias governamentais para operar esses programas, penso que haja um elemento fundamental para compor as habitações populares. Nunca ouvi falar de arquiteto ou engenheiro civil social (certamente existam, mas sou desinformada do assunto)... e são esses profissionais que acabam desenhando e fazendo os prédios públicos a partir de modelos engessados –assim como, as casas populares financiadas por programas habitacionais governamentais... se a academia os provocasse a produzirem outras cabeças, certamente seriam mais afeitos ao social e à coletividade.
Vejamos os prédios das escolas públicas (e não só das públicas): reproduzem um modelo engessado de educação (educação?????), a começar pelas duras e frias cadeiras e mesas pensadas para funcionar em espaços físicos quadrados ou retangulares; reproduzem, ainda, o modelo feito somente para aqueles que não têm dificuldades de acesso e deslocamento... sem contarmos, aqui, a “arquitetura” e a “engenharia” de que, de uma forma geral, é feita a própria educação, ou seja, para produção em série, engessamentos e formatação dos sujeitos às necessidades do mercado. Raramente se faz escola para a vida e para as singularidades.
Assimassim fico pensando nessas casas populares que são feitas, todas, da mesma e exata medida e formato, como se o fato de ser popular, as desprovesse de singularidade e impedisse o “popular” usuário de dizer de quantas quinas quer que seja feito o seu canto... nem quero considerar o argumento mercadológico de que um mesmo desenho prá todas as unidades habitacionais diminui o custo... não quero considerar esse argumento, pois penso que arquiteto e engenheiro que trabalhem com a coisa pública, devem ter formação e atuação social, portanto, devem olhar o sujeito para quem desenham a casa, como alguém que é feito de gentitude e não de sonhos formatados pelo mundo capitalístico. Portanto, acredito que em todo e qualquer programa habitacional poderíamos fazer a casa de cada um, do jeito que cada um queira, porque casa não é meramente o separatismo privatista que a dita como propriedade inviolável... casa é o lugar que abriga nossos devaneios (para lembrar Bachelard), contempla nossas incertezas, aconchega nossas lágrimas, ecoa nossas risadas e nos conforta de nosso nomadismo perdido (que eu, particularmente, não queria ter perdido!).
Nessa toada, ainda ao pé do fogo, estrebuchamos ainda uma outra questão: sobre o fato de que feitas as licitações ou outros procedimentos formais para a execução dessas obras públicas ou de interesse social, as empresas de nossa comunidade, ou não se habilitam (não demonstram interesse ou demonstram desinteresse), ou não ganham o processo (exatamente por desinteresse). Conhecemos, é claro, o argumento de alguns desses empresários para justificar o desinteresse: são obras que não propiciam lucro. Fico estupefata com esse argumento! Fico louca! Não entendo como pode acontecer de alguém esperar da comunidade em que vive, somente o lucro capitalístico, sem ao menos, olhar para o coletivo e para o social (é claro que entendo... estou só sublinhando minha indignação!)! Não podemos esquecer que o boom que a construção civil vive em nossa comunidade e de uma forma geral, há de acabar... acaba, pois finda a disponibilidade geográfica para a venda, assim como finda a demanda habitacional... já se foi o tempo em que se fazia imóveis para “investir”, explorando a necessidade dos desprovidos dos mesmos, em ter onde morar. Ainda haverá essa demanda, mas em menor escala, pois o tempo proverá a comunidade em sua necessidade por habitações.
Oraora, se não dá lucro, então não interessa?! E como é que empresas de fora da comunidade conseguem vir pra cá, executar as obras integralmente e ainda demonstrar o interesse em voltar? (é por isso que sou afeita ao nomadismo, pois sua fecundidade está em ir onde há vida, mesmo que seja necessário atravessar desertos!).
Dormi, ontem, com essa indignação me atazanando os pensamentos e isso me fez sonhar esse sonho bonito sobre compor jardins (e também, compor casas)... ou melhor, deixar compor jardins (lembrando minha professora)... eu, particularmente, não gosto de jardins pré-moldados... gosto de jardins subjetivados, que vão, aos poucos, agregando as plantas e sementes que forem chegando no seu chegado... gosto da produção de singularidades e de vivacidades... por essas e outras, penso que essa coisa das flores, dos jardins, das casas, das habitações, dos aconchegos, das poesias, das existências e de outros quetais, deveria ser assunto de interesse de Estado, mas antes, de interesse do coletivo e daqueles que se interessam pelas coisas do outro... quem quer só o lucro, quando não o tiver mais ou não tiver mais de onde tirá-lo, estará solito!
Para compor jardins e casas, há de se ter um mínimo de intimidade com as coisas da vida... essa é uma indecência que precisamos ter para ser gente... no mais, não se lucra nada mesmo!

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