para os colegas que estão empenhados na leitura de deleuze e guattari e que não tiveram acesso à cópia impressa do livro "O que é a filosofia?", sigo na postagem da sequência de textos, agora com o terceiro texto do capítulo FILOSOFIA: Os Personagens Conceituais
EXEMPLO V
O cogito de Descartes é criado como conceito, mas tem pressupostos. Não como um conceito supõe outros (por exemplo, "homem" supõe "animal" e "racional"). Aqui os pressupostos são implícitos, subjetivos, pré-conceituais, e formam uma imagem do pensamento: todo mundo sabe o que significa pensar. Todo mundo tem a possibilidade de pensar, todo mundo quer o verdadeiro... Há outra coisa além destes dois elementos: o conceito e o plano de imanência, ou imagem do pensamento que vai ser ocupada por conceitos de mesmo grupo (o cogito e os conceitos que a ele se ligam)? Há outra coisa, no caso de Descartes, além o cogito criado e da imagem pressuposta do pensamento? Há efetivamente outra coisa, um pouco misteriosa, que aparece em certos momentos, ou que transparece, e que parece ter uma existência fluida, intermediária entre o conceito e o plano pré-conceitual, indo de um a outro. No momento, é o Idiota: é ele que diz Eu, é ele que lança o cogito, mas é ele também que detém os pressupostos subjetivos ou que traça o plano. O idiota é o pensador privado por oposição ao professor público (o escolástico): o professor não cessa de remeter a conceitos ensinados (o homem-animal racional), enquanto o pensador privado forma um conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta (eu penso). Eis um tipo muito estranho de personagem, aquele que quer pensar e que pensa por si mesmo, pela "luz natural". O idiota é um personagem conceitual.
Podemos dar mais precisão à questão: há precursores do cogito? De onde vem o personagem do idiota, como ele apareceu, seria numa atmosfera cristã, mas em reação contra a organização "escolástica" do cristianismo, contra a organização autoritária da Igreja? Encontram-se traços dele já em Santo Agostinho? É Nicolau de Cusa quem lhe dá pleno valor de personagem conceituai? É a razão pela qual este filósofo estaria próximo do cogito, mas sem poder ainda fazê-lo cristalizar como conceito(1). Em todo caso, a história da filosofia deve passar pelo estudo desses personagens, de suas mutações segundo os planos, de sua variedade segundo os conceitos.
E a filosofia não pára de fazer viver personagens conceituais, de lhes dar vida. O idiota reaparecerá numa outra época, num outro contexto, ainda cristão, mas russo. Tornando-se eslavo, o idiota permaneceu o singular ou o pensador privado, mas mudou de singularidade. É Chestov que encontra em Dostoievski a potência de uma nova oposição do pensador privado e do professor público(2). O antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria por si mesmo: nessa expectativa, duvidaria de tudo, mesmo de 3 + 2 = 5; colocaria em dúvida todas as verdades da Natureza. O novo idiota não quer, de maneira alguma, evidências, não se "resignará" jamais a que 3 + 2 = 5, ele quer o absurdo — não é a mesma imagem do pensamento. O antigo idiota queria o verdadeiro, mas o novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do pensamento, isto é, criar. O antigo idiota queria não prestar contas senão à razão, mas o novo idiota, mais próximo de Jó que de Sócrates, quer que se lhe preste contas de "cada vítima da história", esses não são os mesmos conceitos. Ele não aceitará jamais as verdades da História. O antigo idiota queria dar-se conta, por si mesmo, do que era compreensível ou não, razoável ou não, perdido ou salvo, mas o novo idiota quer que lhe devolvam o perdido, o incompreensível, o absurdo. Seguramente não é o mesmo personagem, houve uma mutação. E, todavia, um fio tênue une os dois idiotas, como se fosse necessário que o primeiro perdesse a razão para que o segundo reencontrasse o que o outro tinha perdido a princípio, ganhando-a. Descartes na Rússia tornou-se louco?
Pode acontecer que o personagem conceitual apareça por si mesmo muito raramente, ou por alusão. Todavia, ele está lá; e, mesmo não nomeado, subterrâneo, deve sempre ser reconstituído pelo leitor. Por vezes, quando aparece, tem um nome próprio: Sócrates é o principal personagem conceitual do platonismo. Muitos filósofos escreveram diálogos, mas há perigo de confundir os personagens de diálogo e os personagens conceituais: eles só coincidem nominalmente e não têm o mesmo papel. O personagem de diálogo expõe conceitos: no caso mais simples, um entre eles, simpático, é o representante do autor, enquanto que os outros, mais ou menos antipáticos, remetem a outras filosofias, das quais expõem os conceitos, de maneira a prepará-los para as críticas ou as modificações que o autor lhes vai impor. Os personagens conceituais, em contrapartida, operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor, e intervém na própria criação de seus conceitos. Assim, mesmo quando são "antipáticos", pertencem plenamente ao plano que o filósofo considerado traça e aos conceitos que cria: eles marcam então os perigos próprios a este plano, as más percepções, os maus sentimentos ou mesmo os movimentos negativos que dele derivam, e vão, eles mesmos, inspirar conceitos originais cujo caráter repulsivo permanece uma propriedade constituinte desta filosofia. O mesmo vale, com mais forte razão, para os movimentos positivos do plano, os conceitos atrativos e os personagens simpáticos: toda uma Einfühlung filosófica. E freqüentemente, entre uns e outros, há grandes ambigüidades.
O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os "heterônimos" do filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens. Eu não sou mais eu, mas uma aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares. O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificação abstrata, um símbolo ou uma alegoria, pois ele vive, ele insiste. O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais. E o destino do filósofo é e transformar-se em seu ou seus personagens conceituais, ao mesmo tempo que estes personagens se tornam, eles mesmos, coisa diferente do que são historicamente, mitologicamente ou comumente (o Sócrates de Platão, o Dioniso de Nietzsche, o Idiota de Cusa). O personagem conceitual é o devir ou o sujeito de uma filosofia, que vale para o filósofo, de tal modo que Cusa ou mesmo Descartes deveriam assinar "o Idiota", como Nietzsche assinou "o Anticristo" ou "Dioniso crucificado". Os atos de fala na vida comum remetem a tipos psicossociais, que testemunham de fato uma terceira pessoa subjacente: eu decreto a mobilização enquanto presidente da república, eu te falo enquanto pai... Igualmente, o dêictico filosófico é um ato de tala em terceira pessoa, em que é sempre um personagem conceitual que diz Eu: eu penso enquanto Idiota, eu quero enquanto Zaratustra, eu danço enquanto Dioniso, eu aspiro enquanto Amante. Mesmo a duração bergsoniana precisa de um corredor. Na enunciação filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas faz-se o movimento pensando-o, por intermédio de um personagem conceituai. Assim, os personagens conceituais são verdadeiros agentes de enunciação. Quem é Eu? é sempre uma terceira pessoa.
Invocaremos Nietzsche, porque poucos filósofos operaram tanto com personagens conceituais, simpáticos (Dioniso, Zaratustra) ou antipáticos (Cristo, o Sacerdote, os Homens superiores, o próprio Sócrates tornado antipático...). Poderíamos acreditar que Nietzsche renuncia aos conceitos. Todavia ele cria imensos e intensos conceitos ("forças", "valor", "devir", "vida", e conceitos repulsivos como "ressentimento", "má consciência"...), bem como traça um novo plano de imanência (movimentos infinitos da vontade de potência e do eterno retorno) que subvertem a imagem do pensamento (crítica da vontade de verdade). Mas jamais nele os personagens conceituais implicados permanecem subentendidos. É verdade que sua manifestação por si mesma suscita uma ambigüidade, que faz com que muitos leitores considerem Nietzsche como um poeta, um taumaturgo ou um criador de mitos. Mas os personagens conceituais, em Nietzsche e alhures, não são personificações míticas, nem mesmo pessoas históricas, nem sequer heróis literários ou romanescos. Não é o Dioniso dos mitos que está em Nietzsche, como não é o Sócrates da História que está em Platão. Devir não é ser, e Dioniso se torna filósofo, ao mesmo tempo que Nietzsche se torna Dioniso. Aí, ainda, é Platão quem começou: ele se torna Sócrates, ao mesmo tempo que faz Sócrates tornar-se filósofo. A diferença entre os personagens conceituais e as figuras estéticas consiste de início no seguinte: uns são potências de conceitos, os outros, potências de afectos e de perceptos. Uns operam sobre um plano de imanência que é uma imagem de Pensamento-Ser (número), os outros, sobre um plano de composição como imagem do Universo (fenômeno). As grandes figuras estéticas do pensamento e do romance, mas também da pintura, da escultura e da música, produzem afectos que transbordam as afecções e percepções ordinárias, do mesmo modo os conceitos transbordam as opiniões correntes. Melville dizia que um romance comporta uma infinidade de caracteres interessantes, mas uma única Figura original, como o único sol de uma constelação do universo, como começo das coisas, ou como um farol que tira da sombra um universo escondido: assim o capitão Ahab, ou Bartleby(3). O universo de Kleist é percorrido por afectos que o atravessam como flechas, ou que se petrificam subitamente, lá onde se erguem a figura de Homburg ou aquela de Pentesiléia. As figuras não têm nada a ver com a semelhança, nem com a retórica, mas são a condição sob a qual as artes produzem afectos de pedra e de metal, de cordas e de ventos, de linhas e de cores, sobre um plano de composição do universo. A arte e a filosofia recortam o caos, e o enfrentam, mas não é o mesmo plano de corte, não é a mesma maneira de povoá-lo; aqui constelação de universo ou afectos e perceptos, lá complexões de imanência ou conceitos. A arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos e perceptos.
Isto não impede que as duas entidades passem freqüentemente uma pela outra, num devir que as leva a ambas, numa intensidade que as co-determina. A figura teatral e musical de Don Juan se torna personagem conceitual com Kierkegaard, e o personagem de Zaratustra em Nietzsche já é uma grande figura de música de teatro. É como se de uns aos outros não somente alianças, mas bifurcações e substituições se produzissem. No pensamento contemporâneo, Michel Guérin é um daqueles que descobrem mais profundamente a existência de personagens conceituais no coração da filosofia; mas ele os define num "logodrama" ou numa "figurologia" que põe o afecto no pensamento(4). É que o conceito como tal pode ser conceito de afecto, tanto quanto o afecto, afecto de conceito. O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro, a tal ponto que certas extensões de um sejam ocupadas por entidades do outro. Em cada caso, com efeito, o plano e o que o ocupa são como duas partes relativamente distintas, relativamente heterogêneas. Um pensador pode portanto modificar de maneira decisiva o que significa pensar, traçar uma nova imagem do pensamento, instaurar um novo plano de imanência, mas, em lugar de criar novos conceitos que o ocupam, ele o povoa com outras instâncias, outras entidades, poéticas, romanescas, ou mesmo pictóricas ou musicais. E o inverso também. Igitur é precisamente um desses casos, personagem conceitual transportado sobre o plano de composição, figura estética transportada sobre um plano de imanência: seu nome próprio é uma conjunção. Esses pensadores são filósofos "pela metade", mas são também bem mais que filósofos, embora não sejam sábios. Que força nestas obras com pés desequilibrados, Hõlderlin, Kleist, Rim-baud, Mallarmé, Kafka, Michaux, Pessoa, Artaud, muitos romancistas ingleses e americanos, de Melville a Lawrence ou Miller, nos quais o leitor descobre com admiração que escreveram o romance do espinosismo... Certamente, eles não fazem uma síntese de arte e de filosofia. Eles bifurcam e não param de bifurcar. São gênios híbridos, que não apagam a diferença de natureza, nem a ultrapassam, mas, ao contrário, empenham todos os recursos de seu "atletismo" para instalar-se na própria diferença, acrobatas esquartejados num malabarismo perpétuo. Com mais forte razão, os personagens conceituais (como as figuras estéticas) são irredutíveis a tipos psicossociais, embora haja ainda aqui penetrações incessantes. Simmel e depois Goffman levaram muito longe o estudo destes tipos que parecem freqüentemente instáveis, nos enclaves ou nas margens de uma sociedade: o estrangeiro, o excluído, o migrante, o passante, o autóctone, aquele que retorna a seu país...(5). Não é por gosto de anedota. Parece-nos que um campo social comporta estruturas e funções, mas nem por isso nos informa diretamente sobre certos movimentos que afetam o Socius. Já nos animais, sabemos da importância dessas atividades que consistem em formar territórios, em abandoná-los ou em sair deles, e mesmo em refazer território sobre algo de uma outra natureza (o etólogo diz que o parceiro ou o amigo de um animal "eqüivale a um lar", ou que a família é um "território móvel"). Com mais forte razão, o hominídeo: desde seu registro de nascimento, ele desterritorializa sua pata anterior, ele a arranca da terra para fazer dela uma mão, e a reterritorializa sobre galhos e utensílios. Um bastão, por sua vez, é um galho desterritorializado.
É necessário ver como cada um, em toda idade, nas menores coisas, como nas maiores provações, procura um território para si, suporta ou carrega desterritorializações, e se reterritorializa quase sobre qualquer coisa, lembrança, fetiche ou sonho. Os ritornelos exprimem esses dinamismos poderosos: minha cabana no Canadá... adeus, eu estou partindo..., sim, sou eu, era necessário que eu retornasse... Não se pode mesmo dizer o que é primeiro, e todo território supõe talvez uma desterritorialização prévia; ou, então, tudo ocorre no mesmo tempo. Os campos sociais são nós inextrincáveis, em que os três movimentos se misturam; é necessário pois, para desmisturá-los, diagnosticar verdadeiros tipos ou personagens. O comerciante compra num território, mas desterritoriali-za os produtos em mercadorias, e se reterritorializa sobre os circuitos comerciais.
No capitalismo, o capital ou a propriedade se desterritorializam, cessam de ser fundiários e se reterritorializam sobre meios de produção, ao passo que o trabalho, por sua vez, se torna trabalho "abstrato" reterritorializado no salário: é por isso que Marx não fala somente do capital, do trabalho, mas sente a necessidade de traçar verdadeiros tipos psicossociais, antipáticos ou simpáticos, O capitalista, O proletário. Se se procura a originalidade do mundo grego, será necessário perguntar que espécie de território os gregos instauram, como se desterritorializam, sobre o que se reterritorializam e, para isso, isolar tipos propriamente gregos (por exemplo, o Amigo?). Não é sempre fácil escolher os bons tipos num momento dado, numa sociedade dada: assim, o escravo liberto como tipo de desterritorialização no império chinês Tcheu, figura do Excluído, do qual o sinólogo Tõkei fez o retrato detalhado. Acreditamos que os tipos psicossociais têm precisamente este sentido: nas circunstâncias mais insignificantes ou mais importantes, tornar perceptíveis as formações de territórios, os vetores de desterritorialização, o processo de reterritorialização.
Mas não há, também, territórios e desterritorializações que não são somente físicas e mentais, mas espirituais — não somente relativas, mas absolutas, num sentido a determinar mais tarde? Qual é a Pátria ou o Chão Natal invocados pelo pensador, filósofo ou artista? A filosofia é inseparável de um Chão Natal, do qual dão testemunho também o a priori, o inato ou a reminiscência. Mas por que esta pátria desconhecida, perdida, esquecida, fazendo do pensador um Exilado? O que é que vai lhe devolver um equivalente de território, como valendo um lar? Quais serão os ritornelos filosóficos? Qual é a relação do pensamento com a Terra? Sócrates, o Ateniense que não gosta de viajar, é guiado por Parmênides de Eléia quando é jovem, substituído pelo Estrangeiro quando envelheceu, como se o platonismo tivesse necessidade de dois personagens conceituais pelo menos(6). Que espécie de estrangeiro há no filósofo, com seu ar de retornar do país dos mortos? Os personagens conceituais têm este papel, manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações absolutas do pensamento. Os personagens conceituais são pensadores, unicamente pensadores, e seus traços personalísticos se juntam estreitamente aos traços diagramáticos do pensamento e aos traços intensivos dos conceitos. Tal ou tal personagem conceitual pensa em nós, e talvez não nos preexistia. Por exemplo, se dizemos que um personagem conceitual gagueja, não é mais um tipo que gagueja numa língua, mas um pensador que faz gaguejar toda a linguagem, e que faz da gagueira o traço do próprio pensamento enquanto linguagem: o interessante é então "qual é este pensamento que só pode gaguejar?". Por exemplo, ainda, se dizemos que um personagem conceitual é o Amigo, ou então que é o Juiz, o Legislador, não se trata mais de estados privados, públicos ou jurídicos, mas do que cabe de direito ao pensamento e somente ao pensamento. Gago, amigo, juiz não perdem sua existência concreta, ao contrário, assumem uma nova existência, como condições interiores do pensamento para seu exercício real, com tal ou tal personagem conceituai. Não são dois amigos que se exercem em pensar, é o pensamento que exige que o pensador seja um amigo, para que o pensamento seja partilhado em si mesmo e possa se exercer. É o pensamento mesmo que exige esta partilha de pensamento entre amigos. Não são mais determinações empíricas, psicológicas e sociais, ainda menos abstrações, mas intercessores, cristais ou germes do pensamento.
Mesmo se a palavra "absoluto" se revela exata, não diremos que as desterritorializações e reterritorializações do pensamento transcendem as psicossociais, mas tampouco que se reduzem a elas ou são delas uma abstração, uma expressão ideológica. É antes uma conjunção, um sistema de remissões ou de substituições perpétuas. Os traços dos personagens conceituais têm, com a época e o meio históricos em que aparecem, relações que só os tipos psicossociais permitem avaliar. Mas, inversamente, os movimentos físicos e mentais dos tipos psicossociais, seus sintomas patológicos, suas atitudes relacionais, seus modos existenciais, seus estatutos jurídicos, se tornam suscetíveis de uma determinação puramente pensante e pensada que os arranca dos estados de coisas históricos de uma sociedade, como do vivido dos indivíduos, para fazer deles traços de personagens conceituais, ou acontecimentos do pensamento sobre o plano que ele traça ou sob os conceitos que ele cria. Os personagens conceituais e os tipos psicossociais remetem um ao outro e se conjugam, sem jamais se confundir. Nenhuma lista de traços dos personagens conceituais pode ser exaustiva, já que dela nascem constantemente, e que variam com os planos de imanência. E, sobre um plano dado, diferentes gêneros de traços se misturam para compor um personagem. Presumimos que haja traços páticos (pathiques): o Idiota, aquele que quer pensar por si mesmo, e é um personagem que pode mudar, tomar um outro sentido. Mas também um Louco, uma espécie de louco, pensador cataléptico ou "múmia" que descobre, no pensamento, uma impotência para pensar. Ou então um grande maníaco, um delirante, que procura o que precede o pensamento, um Já-Aí, mas no seio do próprio pensamento... Tem-se freqüentemente aproximado a filosofia e a esquizofrenia; mas, num caso, o esquizofrênico é um personagem conceitual que vive intensamente no pensador e o força a pensar, no outro é um tipo psicossocial que reprime o vivo e lhe rouba seu pensamento. E os dois, por vezes, se conjugam, se enlaçam como se, a um acontecimento forte demais, respondesse um estado vivido por demais difícil de suportar.
Há traços relacionais: "o Amigo", mas um amigo que só tem relação com seu amigo através de uma coisa amada portadora de rivalidade. São o "Pretendente" e o "Rival", que disputam a coisa ou o conceito, mas o conceito precisa de um corpo sensível inconsciente, adormecido, o "Jovem" que se acrescenta aos personagens conceituais. Não estamos já sobre um outro plano, pois o amor é como a violência que força a pensar, "Sócrates amante", ao passo que a amizade pediria somente um pouco de boa vontade? E como impedir uma "Noiva" de assumir, por sua vez, o papel de personagem conceituai, com o risco de perdê-la, mas não sem que o próprio filósofo "se torne" mulher? Como diz Kierkegaard (ou Kleist, ou Proust), não vale uma mulher mais do que o amigo competente? E que acontece se a própria mulher se torna filósofa, ou então um "casal", que seria interior ao pensamento e faria de "Sócrates casado" o personagem conceituai? A menos que sejamos reconduzidos ao "Amigo", mas depois de uma provação forte demais, uma catástrofe indizível, portanto em mais um novo sentido, num mútuo desamparo, numa mútua fadiga que formam um novo direito do pensamento (Sócrates tornado judeu). Não dois amigos, que comunicam e se relembram conjuntamente, mas passam ao contrário por uma amnésia ou uma afasia capazes de fender o pensamento, de dividi-lo em si mesmo. Os personagens proliferam e bifurcam, se chocam, se substituem...(7).
Há traços dinâmicos: se avançar, trepar, descer são dinamismos de personagens conceituais, saltar à maneira de Kierkegaard, dançar como Nietzsche, mergulhar como Melville são outros, para atletas filosóficos irredutíveis uns aos outros. E se nossos esportes hoje estão em plena mutação, se as velhas atividades produtoras de energia dão lugar a exercícios que se inserem, ao contrário, sobre feixes energéticos existentes, não é somente uma mutação no tipo, são outros traços dinâmicos ainda que se introduzem num pensamento que "desliza" com novas matérias de ser, vaga ou neve, que fazem do pensador uma espécie de surfista como personagem conceituai; renunciamos, então, ao valor energético do tipo esportivo, para sublinhar a diferença dinâmica pura que se exprime num novo personagem conceitual.
Há traços jurídicos, na medida em que o pensamento não cessa de exigir o que lhe cabe de direito, e de enfrentar a Justiça desde os pré-socráticos: mas seria o poder do Pretendente, ou mesmo do Queixoso, tal como a filosofia o retira do tribunal trágico grego? E não será, por muito tempo, proibido ao filósofo ser Juiz, ele que, no máximo, será doutor recrutado a serviço da justiça de Deus, enquanto ele próprio não for acusado? Surge um novo personagem conceituai, quando Leibniz faz do filósofo o Advogado de um deus ameaçado em toda a parte? E os empiristas, o estranho personagem que lançam, com o Inquiridor? É Kant que faz enfim do filósofo um Juiz, ao mesmo tempo que a razão forma um tribunal; mas é o poder legislativo de um juiz determinante, ou o poder judiciário, a jurisprudência de um juiz reflexionante? Dois personagens conceituais muito diferentes. A menos que o pensamento não inverta tudo, juizes, advogados, queixosos, acusadores e acusados, como Alice, sobre um plano de imanência em que a Justiça se iguala à Inocência, em que o Inocente se torna o personagem conceitual que não tem mais de se justificar, uma espécie de criança-jogador, contra a qual não se pode mais nada, um Espinosa que não deixou subsistir nenhuma ilusão de transcendência. Não é necessário que o juiz e o inocente se confun-dam, isto é, que os seres sejam julgados de dentro: de maneira alguma em nome da Lei ou dos Valores, nem mesmo em virtude de sua consciência, mas pelos critérios puramente imanentes de sua existência ("para além do Bem e do Mal, isto ao menos não quer dizer para além do bom e do mau..."). Há com efeito traços existenciais: Nietzsche dizia que a filosofia inventa modos de existência ou possibilidades de vida. É por isso que bastam algumas anedotas vitais para fazer o retrato de uma filosofia, como Diógenes Laércio soube fazê-lo escrevendo o livro de cabeceira ou a lenda dourada dos filósofos, Empédocles e seu vulcão, Diógenes e seu tonei. Objetar-se-á a vida muito burguesa da maioria dos filósofos modernos; mas a liga das meias de Kant não é uma anedota vital adequada ao sistema da Razão(8)? E o gosto de Espinosa pelos combates de aranhas deriva do fato de que reproduzem, de maneira pura, relações de modos no sistema da Ética entendida como etologia superior. E que estas anedotas não remetem simplesmente a um tipo social ou mesmo psicológico de um filósofo (o príncipe Empédocles ou o escravo Diógenes), elas manifestam, antes, os personagens conceituais que o habitam. As possibilidades de vida ou os modos de existência não podem inventar-se, senão sobre um plano de imanência que desenvolve a potência de personagens conceituais. O rosto e o corpo dos filósofos abrigam estes personagens que lhes dão freqüentemente um ar estranho, sobretudo no olhar, como se algum outro visse através de seus olhos. As anedotas vitais contam a relação de um personagem conceitual com animais, plantas ou rochedos, relação segundo a qual o próprio filósofo se torna algo de inesperado, e adquire uma amplitude trágica e cômica que ele não teria sozinho. Nós, filósofos, é por nossos personagens que nos tornamos sempre outra coisa, e que renascemos como jardim público ou zoológico.
EXEMPLO VI
Mesmo as ilusões de transcendência nos servem, e fornecem anedotas vitais. Pois, quando nós nos vangloriamos de encontrar o transcendente na imanência, nada fazemos senão recarregar o plano de imanência com a própria imanência: Kierkegaard salta fora do plano, mas o que lhe é "restituído" nesta suspensão, nesta parada de movimento, é a noiva ou o filho perdidos, é a existência sobre o plano de imanência(9). Kierkegaard não hesita em dizê-lo: no que concerne à transcendência, um pouco de "resignação" bastaria, mas é necessário, além disso, que a imanência seja devolvida. Pascal aposta na existência transcendente de Deus, mas o que se aposta, aquilo sobre o que se aposta, é a existência imanente daquele que crê que Deus exista. Só esta existência é capaz de cobrir o plano de imanência, de adquirir um movimento infinito, de produzir e de reproduzir intensidades, ao passo que a existência daquele que crê que Deus não existe cai no negativo. Aqui mesmo se poderia dizer o que François Jullien diz do pensamento chinês: a transcendência é nele relativa e não representa mais do que uma "absolutização da imanência"(10). Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham necessidade de valores transcendentes que os comparariam, os selecionariam e decidiriam que um é "melhor" que o outro. Ao contrário, não há critérios senão imanentes, e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria, sobre um plano de imanência; é rejeitado o que não traça nem cria. Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independente do Bem e do Mal, e de todo valor transcendente: não há nunca outro critério senão o teor da existência, a intensificação da vida. É o que Pascal e Kierkegaard sabem bem, eles que são bons em movimentos infinitos, e que tiram do Antigo Testamento novos personagens conceituais capazes de fazer frente a Sócrates. O "cavaleiro da fé" de Kierkegaard, aquele que salta ou o apostador de Pascal, aquele que lança os dados são os homens de uma transcendência ou de uma fé. Mas não cessam de recarregar a imanência: são filósofos, ou antes os inter-cessores, os personagens conceituais que valem por estes dois filósofos, e que não se preocupam mais com a existência transcendente de Deus, mas somente com possibilidades imanentes infinitas que traz a existência daquele que crê que Deus existe.
O problema mudaria se fosse um outro plano de imanência. Não que aquele que crê que Deus não existe pudesse então ser vencedor, já que ele pertence ainda ao antigo plano como movimento negativo. Mas, sobre o novo plano, poderia acontecer que o problema dissesse respeito, agora, à existência daquele que crê no mundo, não propriamente na existência do mundo, mas em suas possibilidades em movimentos e em intensidades, para fazer nascer ainda novos modos de existência, mais próximos dos animais e dos rochedos. Pode ocorrer que acreditar neste mundo, nesta vida, se tenha tornado nossa tarefa mais difícil, ou a tarefa de um modo de existência por descobrir, hoje, sobre nosso plano de imanência. É a conversão empirista (temos tantas razões de não crer no mundo dos homens, perdemos o mundo, pior que uma noiva, um filho ou um deus...). Sim, o problema mudou.
O personagem conceitual e o plano de imanência estão em pressuposição recíproca. Ora o personagem parece preceder o plano, ora segui-lo. É que ele aparece duas vezes, intervém duas vezes. Por um lado, ele mergulha no caos, tira daí determinações das quais vai fazer os traços diagramáticos de um plano de imanência: é como se ele se apoderasse de um punhado de dados, no acaso-caos, para lançá-los sobre uma mesa. Por outro lado, para cada dado que cai, faz corresponder os traços intensivos de um conceito que vem ocupar tal ou tal região da mesa, como se esta se fendesse segundo os resultados. Com seus traços personalísticos, o personagem conceitual intervém pois entre o caos e os traços diagramáticos do plano de imanência, mas também entre o plano e os traços intensivos dos conceitos que vêm povoá-lo. Igitur.
Os personagens conceituais constituem os pontos de vista segundo os quais planos de imanência se distinguem ou se aproximam, mas também as condições sob as quais cada plano se vê preenchido por conceitos do mesmo grupo. Todo pensamento é um Fiat, emite um lance de dados: construtivismo. Mas é um jogo muito complexo, porque o ato de lançar é feito de movimentos infinitos reversíveis e dobrados uns sobre os outros, de modo que a queda só ocorre em velocidade infinita, criando as formas finitas que correspondem às ordenadas intensivas destes movimentos: todo conceito é uma cifra que não preexistia. Os conceitos não se deduzem do plano, é necessário o personagem conceitual para criá-los sobre o plano, como para traçar o próprio plano, mas as duas operações não se confundem no personagem, que se apresenta ele mesmo como um operador distinto.
Os planos são inumeráveis, cada um com curvatura variável, e se agrupam ou se separam segundo os pontos de vista constituídos pelos personagens. Cada personagem tem vários traços, que podem dar lugar a outros personagens, sobre o mesmo plano ou sobre um outro: há uma proliferação de personagens conceituais. Há uma infinidade de conceitos possíveis sobre um plano: eles ressoam, ligam-se através de pontes móveis, mas é impossível prever o jeito que assumem em função das variações de curvatura. Eles se criam por saraivadas e não cessam de bifurcar. O jogo é tanto mais complexo quanto os movimentos negativos infinitos são envolvidos nos positivos sobre cada plano, exprimindo os riscos e perigos que o pensamento enfrenta, as falsas percepções e os maus sentimentos que o envolvem; há também personagens conceituais antipáticos, que colam estreitamente nos simpáticos e dos quais estes não chegam a se desgrudar (não é somente Zaratustra que está impregnado por "seu" macaco ou seu bufão, Dioniso que não se separa do Cristo, mas Sócrates que não chega a se distinguir de "seu" sofista, o filósofo crítico que não pára de conjurar seus maus duplos); há enfim conceitos repulsivos enlaçados nos atrativos, mas que desenham, sobre o plano, regiões de intensidade baixa ou vazia, e que não cessam de se isolar, de desconjuntar, de romper as conexões (a transcendência ela mesma não tem "seus" conceitos?). Mas, mais ainda que uma distribuição vetorial, os signos de planos, de personagens e de conceitos são ambíguos, porque se dobram uns nos outros, se enlaçam ou se avizinham. É por isso que a filosofia opera sempre lance por lance.
A filosofia apresenta três elementos, cada um dos quais responde aos dois outros, mas deve ser considerada em si mesma: o plano pré-filosófico que ela deve traçar (imanência), o ou os personagens prófilosóficos que ela deve inventar e fazer viver (insistência), os conceitos filosóficos que ela deve criar (consistência). Traçar, inventar, criar, esta é a trindade filosófica. Traços diagramáticos, personalísticos e intensivos. Há grupos de conceitos, caso eles ressoem ou lancem pontes móveis, cobrindo um mesmo plano de imanência que os une uns aos outros. Há famílias de planos, caso os movimentos infinitos se dobrem uns nos outros e componham variações de curvatura ou, ao contrário, selecionem variedades não componíveis.
Há tipos de personagens segundo suas possibilidades de encontro, mesmo hostil, sobre um mesmo plano e num grupo. Mas é freqüentemente difícil determinar se é o mesmo grupo, o mesmo tipo, a mesma família.Para isso é necessário todo um "gosto".
Como nenhum dos elementos se deduz dos outros, é necessário uma co-adaptação dos três. Chamase gosto esta faculdade filosófica de co-adaptação, e que regra a criação de conceitos. Se se chama Razão ao traçado do plano, Imaginação à invenção dos personagens, Entendimento à criação de conceitos, o gosto aparece como a tripla faculdade do conceito ainda indeterminado, do personagem ainda nos limbos, do plano ainda transparente. É por isso que é necessário criar, inventar, traçar, mas o gosto é como que a regra de correspondência das três instâncias que diferem em natureza. Não é certamente uma faculdade de medida. Não se encontrará nenhuma medida nestes movimentos infinitos que compõem o plano de imanência, estas linhas aceleradas sem contorno, estes declives e curvaturas, nem nestes personagens sempre excessivos, por vezes antipáticos, ou nestes conceitos de formas irregulares, de intensidades estridentes, de cores tão vivas e bárbaras que podem inspirar uma espécie de "desgosto" (notadamente nos conceitos repulsivos). Todavia, o que aparece em todos os casos como gosto filosófico é o amor do conceito bem feito, chamando "bem feito" não a uma moderação do conceito, mas a uma espécie de novo lance, de modulação, em que a atividade conceitual não tem limite nela mesma, mas somente nas duas outras atividades sem limites. Se os conceitos preexistissem já prontos, teriam limites a observar; mas mesmo o plano "pré-filosófico" só é assim nomeado porque se o traça como pressuposto, e não porque ele existiria antes de ser traçado. As três atividades são estritamente simultâneas e não têm relações senão incomensuráveis. A criação de conceitos não tem outro limite senão o plano que eles vêm povoar, mas o próprio plano é ilimitado, e seu traçado só se confunde com os conceitos por criar, que deve juntar, ou com os personagens por inventar, que deve entreter. É como em pintura: mesmo para os monstros e os anões, há um gosto segundo o qual eles devem ser bem feitos, o que não quer dizer neutralizados, mas que seus contornos irregulares devem ser postos em relação com uma textura da pele ou um fundo da Terra, como matéria germinal com a qual eles parecem brincar. Há um gosto pela cor que não vem moderar a criação de cores num grande pintor mas, ao contrário, conduz a criação até o ponto em que as cores desposam suas figuras feitas de contornos, e seu plano feito de fundos uniformes(*No original, aplat (N. dos T.), curvaturas, arabes-cos. Van Gogh só conduz o amarelo até o ilimitado inventando o homem-girassol, e traçando o plano das pequenas vírgulas infinitas. O gosto pelas cores testemunha, ao mes mo tempo, o respeito necessário a sua aproximação, a longa espera pela qual é necessário passar, mas também a criação sem limite que as faz existir. O mesmo ocorre com o gosto dos conceitos: o filósofo só se aproxima do conceito indeterminado com temor e respeito, hesita muito em se lançar, mas só pode determinar o conceito criando-o sem medida, um plano de imanência tendo como única regra que traça e como único compasso os personagens estranhos que ele faz viver. O gosto filosófico não substitui a criação de conceitos, nem a modera, é, ao contrário, a criação de conceitos que faz apelo a um gosto que a modula.
A livre criação de conceitos determinados precisa de um gosto do conceito indeterminado. O gosto é esta potência, este ser-em-potência do conceito: não é certamente por razões "racionais ou razoáveis" que tal conceito é criado, tais componentes escolhidos. Nietzsche pressentiu esta relação da criação de conceitos com um gosto propriamente filosófico, e se o filósofo é aquele que cria conceitos, é graças a uma faculdade de gosto como um "sapere" instintivo, quase animal — um Fiat ou um Fatum que dá a cada filósofo o direito de aceder a certos problemas, como um sinete marcado sobre seu nome, como uma afinidade da qual suas obras promanam(11).
Um conceito está privado de sentido enquanto não concorda com outros conceitos, e não está associado a um problema que resolve ou contribui para resolver. Mas importa distinguir os problemas filosóficos e os problemas científicos. Não se ganharia grande coisa, dizendo que a filosofia coloca "questões", já que as questões são somente uma palavra para designar problemas irredutíveis aos da ciência.
Como os conceitos não são proposicionais, eles não podem remeter a problemas que concerniriam às condições extensionais de proposições assimiláveis às da ciência. Se insistimos, de qualquer modo, em traduzir o conceito filosófico em proposições, só podemos fazê-lo na forma de opiniões mais ou menos verossímeis, e sem valor científico. Mas topamos assim com uma dificuldade, que os gregos já enfrentavam.
É mesmo o terceiro caráter pelo qual a filosofia passa por uma coisa grega: a cidade grega promoveu o amigo ou o rival como relação social, ela traça um plano de imanência, mas também faz reinar a livre opinião (doxa). A filosofia deve então extrair das opiniões um "saber" que as transforma e que também se distingue da ciência. O problema filosófico consiste em encontrar, em cada caso, a instância capaz de medir um valor de verdade das opiniões oponíveis, seja selecionando umas como mais sábias que as outras, seja fixando a parte que cabe a cada uma. Tal foi sempre o sentido do que se chama dialética, e que reduz a filosofia à discussão interminável12. Vemo-lo em Platão, no qual os universais de contemplação supostamente medem o valor respectivo das opiniões rivais, para elevá-las ao saber; é verdade que as contradições subsistentes em Platão, nos diálogos ditos aporéticos, forçam já Aristóteles a orientar a pesquisa dialética dos problemas na direção dos universais de comunicação (os tópicos). Em Kant ainda, o problema consistirá na seleção ou na partilha das opiniões opostas, mas graças a universais de reflexão, até que Hegel tenha a idéia de se servir da contradição das opiniões rivais, para delas extrair proposições supra-científicas, capazes de se mover, de se contemplar, se refletir, se comunicar em si mesmas e no absoluto (proposição especulativa, em que as opiniões se tornam os momentos do conceito). Mas, sob as mais altas ambições da dialética, e qualquer que seja o gênio dos grandes dialéticos, recaímos na mais miserável condição, a que Nietzsche diagnosticava como a arte da plebe, ou o mau gosto em filosofia: a redução do conceito a proposições como simples opiniões; a submersão do plano de imanência nas falsas percepções e nos maus sentimentos (ilusões da transcendência ou dos universais); o modelo de um saber que constitui apenas uma opinião pretensamente superior, Urdoxa; a substituição dos personagens conceituais por professores ou chefes de escola. A dialética pretende encontrar uma discursi-vidade propriamente filosófica, mas só pode fazê-lo, encadeando as opiniões umas às outras. Ela pode ultrapassar a opinião na direção do saber, a opinião ressurge e persiste em ressurgir. Mesmo com os recursos de uma Urdoxa, a filosofia permanece uma doxografia. É sempre a mesma melancolia que se eleva das Questões disputadas e dos Quodlibets da Idade Média, em que se aprende o que cada doutor pensou, sem saber porque ele o pensou (o Acontecimento), e que se encontra em muitas histórias da filosofia nas quais se passa em revista as soluções, sem jamais saber qual é o problema (a substância em Aristóteles, em Descartes, em Leibniz...), já que o problema é somente decalcado das proposições que lhe servem de resposta.
Se a filosofia é paradoxal por natureza, não é porque toma o partido das opiniões menos verossímeis, nem porque mantém as opiniões contraditórias, mas porque se serve das frases de uma língua standard para exprimir algo que não é da ordem da opinião, nem mesmo da proposição. O conceito é bem uma solução, mas o problema ao qual ele responde reside em suas condições de consistência intensional, e não, como na ciência, nas condições de referência das proposições extensionais. Se o conceito é uma solução, as condições do problema filosófico estão sobre o plano de imanência que ele supõe (a que movimento infinito ele remete na imagem do pensamento?) e as incógnitas do problema estão nos personagens conceituais que ele mobiliza (que personagem precisamente?). Um conceito como o de conhecimento só tem sentido com relação a uma imagem do pensamento a que ele remete, e a um personagem conceitual de que precisa; uma outra imagem, um outro personagem exigem outros conceitos (a crença, por exemplo, e o Inquiridor). Uma solução não tem sentido independentemente de um problema a determinar em suas condições e em suas incógnitas, mas estas não mais têm sentido independentemente das soluções determináveis como conceitos. As três instâncias estão umas nas outras, mas não são de mesma natureza, coexistem e subsistem sem desaparecer uma na outra. Bergson, que contribuiu tanto para a compreensão do que é um problema filosófico, dizia que um problema bem colocado era um problema resolvido. Mas isso não quer dizer que um problema é somente a sombra ou o epifenômeno de suas soluções, nem que a solução é apenas a redundância ou a conseqüência analítica do problema. Significa, antes, que as três atividades que compõem o construcionismo não cessam de se alternar, de se recortar, uma precedendo a outra e logo o inverso, uma que consiste em criar conceitos, como caso de solução, outra em traçar um plano e um movimento sobre o plano, como condições de um problema, outra em inventar um personagem, como a incógnita do problema. O conjunto do problema (de que a própria solução faz parte) consiste sempre em construir as duas outras quando a terceira está em curso. Nós vimos como, de Platão a Kant, o pensamento, o "primeiro", o tempo recebiam conceitos diferentes, capazes de determinar soluções, mas em função de pressupostos que determinavam problemas diferentes; pois os mesmos termos podem aparecer duas vezes, e mesmo três vezes, uma vez nas soluções como conceitos, outra vez nos problemas pressupostos, uma outra vez num personagem como intermediário, intercessor, mas a cada vez sob uma forma específica irredutível. Nenhuma regra e sobretudo nenhuma discussão dirão a princípio se é o bom plano, o bom personagem, o bom conceito, pois é cada um deles que decide se os dois outros deram certo ou não; mas cada um deles deve ser construído por sua conta: um criado, o outro inventado, o outro traçado. Constroem-se problemas e soluções dos quais se pode dizer "Deu certo... Não deu certo...", mas somente na medida de e segundo suas co-adaptações. O construtivismo desqualifica toda discussão, que retardaria as construções necessárias, como denuncia todos os universais, a contemplação, a reflexão, a comunicação, como fontes do que se chama de "falsos problemas", que emanam das ilusões que envolvem o plano. É tudo o que se pode dizer de antemão. Pode acontecer que acreditemos ter encontrado uma solução, mas uma nova curvatura do plano, que não tínhamos visto de início, vem relançar o conjunto e colocar novos problemas, uma nova série de problemas, operando por empuxos sucessivos e solicitando conceitos futuros, por criar (nós nem mesmo sabemos se não é antes um novo plano que se destaca do precedente). Inversamente, pode acontecer que um novo conceito venha insinuar-se como uma cunha entre dois conceitos que acreditávamos vizinhos, solicitando por sua vez, sobre a mesa de imanência, a determinação de um problema que surge como uma espécie de ponte. A filosofia vive assim numa crise permanente. O plano opera por abalos, e os conceitos procedem por saraivadas, os personagens por solavancos. O que é problemático, por natureza, é a relação das três instâncias.
Não se pode dizer, de antemão, se um problema está bem colocado, se uma solução convém, se é bem o caso, se um personagem é viável. É que cada uma das atividades filosóficas não encontra critério senão nas outras duas, é por isso que a filosofia se desenvolve no paradoxo. A filosofia não consiste em saber, e não é a verdade que inspira a filosofia, mas categorias como as do Interessante, do Notável ou do Importante que decidem sobre o sucesso ou o fracasso. Ora, não se pode sabê-lo antes de ter construído. De muitos livros de filosofia, não se dirá que são falsos, pois isso não é dizer nada, mas que são sem importância nem interesse, justamente porque não criam nenhum conceito, nem trazem uma imagem do pensamento ou engendram um personagem que valha a pena. Só os professores podem pôr "errado" à margem, e...; mas os leitores podem ter ainda assim dúvidas sobre a importância e o interesse, isto é, a novidade do que se lhes dá para ler. São categorias do Espírito. Um grande personagem romanesco deve ser um Original, um Único, dizia Melville; um personagem conceitual também. Mesmo antipático, ele deve ser notável; mesmo repulsivo, um conceito deve ser interessante. Quando Nietzsche construía o conceito de má consciência, podia ver nele o que há de mais asqueroso no mundo, nem por isso gritava menos: é aí que o homem começa a se tornar interessante!, e considerava, com efeito, que acabava de criar um novo conceito para o homem, que convinha ao homem, em relação com o novo personagem conceitual (o sacerdote) e com uma nova imagem do pensamento (a vontade de potência apreendida sob o traço negativo do niilismo)...(13).
A crítica implica novos conceitos (da coisa criticada), tanto quanto a criação mais positiva. Os conceitos devem ter contornos irregulares, moldados sobre sua matéria viva. Que é desinteressante por natureza? Os conceitos inconsistentes, o que Nietzsche chamava de os "informes e fluidos borrões de conceitos" — ou então, ao contrário, os conceitos por demais regulares, petrificados, reduzidos a uma ossatura? Os conceitos mais universais, os que são apresentados como formas ou valores eternos são, deste ponto de vista, os mais esqueléticos, os menos interessantes. Não fazemos nada de positivo, mas também nada no domínio da crítica ou da história, quando nos contentamos em agitar velhos conceitos estereotipados como esqueletos destinados a intimidar toda criação, sem ver que os antigos filósofos, de que são emprestados, faziam já o que se queria impedir os modernos de fazer: eles criavam seus conceitos e não se contentavam em limpar, em raspar os ossos, como o crítico ou o historiador de nossa época. Mesmo a história da filosofia é inteiramente desinteressante se não se propuser a despertar um conceito adormecido, a relançá-lo numa nova cena, mesmo a preço de voltá-lo contra ele mesmo.
(1) Sobre o Idiota (o profano, o privado ou o particular, por oposição ao técnico e ao sábio) em suas relações com o pensamento, Nicolau de Cusa, Idiota (Obras Escolhidas por M. de Gandillac, Ed. Aubier). Descartes reconstitui os três personagens, sob o nome de Eudoxo, o idiota, Poliandro, o técnico, e Epistemon, o sábio público: La recherche de Ia vérité par Ia lumière naturelle (Oeuvres Philosophiques, Ed. Alquié, Garnier, II). Sobre as razões pelas quais Nicolau de Cusa não chega a um cogito, cf. Gandillac, p. 26.
(2) É primeiro de Kierkegaard que Chestov empresta a nova oposição: Kierkegaard et Ia philosophie existentielle, Ed. Vrin.
(3) Melville, Le grana escroc, Ed. de Minuit, cap. 44.
(4) Michel Guérin, La terreur et Ia pitié, Ed. Actes Sud.
(5) Cf. as análises de Isaac Joseph, que invoca Simmel e Goffman: Le passant considérable, Librairie des Méridiens.(6) Sobre o personagem do estrangeiro em Platão, J.-F. Mattéi, L'é-tranger et le simulacre, P.U.F.
(7) Não se busque aqui senão alusões sumárias: à ligação de Eros e da philia nos gregos; ao papel da Noiva e do Sedutor em Kierkegaard; à função noética do Casal segundo Klossowski (Les lois de 1'hospitalité, Gallimard); à constituição da mulher-filósofa segundo Michelle Le Doeuff (Uétude et le rouet, Ed. du Seuil); ao novo personagem do Amigo em Blanchot.
(8) Sobre este aparelho complexo, cf. Thomas de Quincey, Les derniers jours d'Emmanuel Kant, Ed. Ombres.
(9) Kierkegaard, Crainte et tremblement, Ed. Aubier, p. 68.
(10) François Jullien, Procès ou création, Ed. du Seuil, pp. 18, 117.
(11) Nietzsche, Musarion-Ausgabe, XVI, p. 35. Nietzsche invoca freqüentemente um gosto filosófico, e faz derivar o sábio de "sapere" ("sa-piens", o degustador, "sisyphos", o homem de gosto extremamente "sutil"): La naissance de Ia philosophie, Gallimard, p. 46.
(12) Cf. Bréhier, "La notion de problème en philosophie", Études de philosophie antique, P.U.F.
(13) Nietzsche, Généalogie de Ia morale, I, § 6.
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