Publicada há 50 anos, obra de Michel Foucault defende
que a loucura é uma construção histórica e cultural
por Joel Birman
Defendida como tese de doutorado em 1961 e publicada como livro no mesmo ano pela editora francesa Plon, a obra de Foucault já tem a duração de 50 anos. Se foi intitulada inicialmente como Loucura e Desrazão – História da Loucura na Idade Clássica, em contrapartida, na edição de 1972, pela Gallimard, o livro foi publicado com o título História da Loucura na Idade Clássica, que permanece até hoje.
A formulação desse livro foi a contrapartida do impasse em que se encontrava a psiquiatria nos anos 1950, na medida em que o estatuto de destruição dos enfermos mentais pela longa internação asilar estava em pauta.
Com efeito, a condição asilar dos internados evocava a recente experiência dos campos de concentração nazistas, tanto na tradição europeia quanto na norte-americana. Daí porque foi no mesmo contexto histórico em que Foucault publicou sua obra inaugural que o psiquiatra Szasz publicou O Mito da Doença Mental (1961) e o antropólogo Goffman publicou Asilos (1959), ambos nos Estados Unidos.
Logo em seguida iniciou-se o movimento antipsiquiátrico, nas suas diferentes modalidades discursivas e políticas, que colocou em questão o estatuto do internamento dos loucos e a concepção da loucura como enfermidade mental.
Não obstante esse a priori histórico e social, o livro de Foucault tem uma especificidade teórica que o distingue dos demais, pois inaugurou um novo estilo de pensar no campo da filosofia, no qual criticava a tradição universitária instituída pela conjugação da filosofia de Nietzsche com o discurso teórico da história, situada esta na escala da longa duração.
Foi por esse viés que Foucault construiu inicialmente a arqueologia do saber e posteriormente a genealogia do poder, para concluir seu percurso teórico pela realização de uma estilística da existência.
Nesse contexto, passou a formular que o que fizera desde o início de seu percurso teórico foram problematizações nas quais as diferentes problemáticas que escolheu como objeto de pesquisa – a razão, a vida e a morte, o discurso, a punição, a sexualidade e o sujeito – tinham um alcance estratégico para a leitura dos pontos cruciais que constituíram a tradição ocidental, iniciada no Renascimento e desdobrando-se na modernidade.
Portanto, a História da Loucura na Idade Clássica foi o pontapé inicial conduzido por Foucault na longa epopeia filosófica de suas problematizações, centrando-se na oposição razão e desrazão.
O livro transformou-se num clássico, não necessariamente para a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, cuja recepção foi marcada pela ambiguidade e pela crítica, mas pelas ciências humanas, as ciências sociais e a filosofia – que reconheceram positivamente seu potencial crítico, de maneira que pôde contribuir para a renovação desses discursos teóricos.
Pressupostos filosóficos
Por que houve resistência dos saberes do campo psi a essa obra?
Antes de mais nada, porque ela rompeu com suas certezas, na medida em que Foucault sustentava que a loucura era uma construção eminentemente histórica e cultural, rompendo assim com uma leitura naturalista dela.
Além disso, indicava como as diferentes leituras sobre a loucura se inscreviam em pressupostos filosófico, moral, religioso e científico que regulariam as práticas sociais sobre ela, e que era isso que deveria ser colocado em evidência numa arqueologia da loucura.
Dito de outra maneira, o que Foucault ressaltou foi como a
experiência da loucura foi objeto de silêncio e de exclusão social como seu correlato; necessário seria realizar a arqueologia desse silêncio. Para isso, portanto, seria preciso percorrer os diferentes momentos constitutivos desse silenciamento para indicar como a loucura foi transformada numa experiência sem sujeito, sem verdade e marcada pela ausência da obra.
Assim, o que estaria em pauta nesse projeto seria assinalar que a loucura foi transformada pela psiquiatria em doença mental somente no século 19, como também criticar o gesto libertário dos loucos por Pinel. Este e aquele supunham efetivamente uma transformação social e política fundamental, mas que não foram necessariamente na direção de constituir uma sociedade democrática, como suporiam posteriormente Gauchet e Swain em A Prática do Espírito Humano – A Instituição Asilar e a Revolução Democrática (1980).
Foi por causa disso que Henri Ey, referência maior da psiquiatria francesa de então, denominou de psiquiatricida a intenção teórica de Foucault, num colóquio de 1969 intitulado “Concepção Ideológica da História da Loucura” (Évolution Psychiatrique, tomo 36, fascículo 2, 1971).
Da mesma forma, Ellenberger, em A Descoberta do Inconsciente (1972), não podia aceitar que a loucura não se inscrevesse no registro da natureza, não obstante suas diferentes leituras sociais e culturais.
Entre Bosch e Erasmo
No entanto, para Foucault algo se transformou na recepção social da experiência da loucura de maneira fundamental, entre as telas inquietantes de Bosch e o discurso teórico de Erasmo em Elogio à Loucura.
Se no primeiro registro a loucura era figurada de maneira ameaçadora, no segundo ela já estaria domesticada. O que estaria em pauta, portanto, seria a descontinuidade entre o tempo da livre circulação da loucura no espaço social – e onde esta era enunciada como fonte de verdade – e o tempo posterior no qual a loucura não teria mais qualquer referência ao sujeito e à verdade, caracterizando-se como ausência de obra.
Foi no intervalo entre esses dois marcos que a razão teria sido constituída. Enunciou-se assim a grande ousadia teórica de Foucault, que articulou intimamente a constituição da filosofia moderna e a configuração do registro da desrazão, na medida em que aquela, com o cogito de Descartes, forjou a razão e seu correlato, qual seja, o discurso da ciência.
Assim, o que Foucault procurou demonstrar, em sua arqueologia do silêncio da loucura, foi que existia uma relação estrutural entre a emergência histérica do cogito cartesiano nas Meditações (1641) e a construção dos hospitais gerais, para onde o soberano enviava todos aqueles inscritos no registro da desrazão: loucos, vagabundos, blasfemadores, heréticos, traidores etc.
Com efeito, foi com o estabelecimento do campo da razão que o da desrazão foi instituído, já que Descartes, nas Meditações, excluía a loucura do registro do pensamento. Portanto, para a loucura não seria possível enunciar o “penso, logo existo”, pois não existiria naquela nem sujeito nem tampouco verdade.
O desdobramento disso foi a exclusão da loucura do espaço social que perdurou durante séculos em nossa tradição, até bem recentemente.
Nessa perspectiva, Foucault formulou a existência de duas tradições face à loucura, quais sejam: a crítica e a trágica. Se pela primeira aquela seria objeto de desconfiança, pois não existiria nela nem sujeito, nem verdade, na segunda a loucura seria marcada pela criatividade e pela possibilidade de produção de obra.
Foi então a tradição crítica que se instituiu no século 17 e que se desdobrou na constituição da psiquiatria no final do século 18. Em contrapartida, a tradição trágica manteve-se sempre marginal nos registros da literatura (Holderlin e Nerval), da dramaturgia (Strindberg e Artaud), da pintura (Van Gogh e Goya) e da filosofia (Nietzsche), em que sujeito e verdade puderam efetivamente se conjugar.
Terceira margem da loucura
É claro que Foucault pretendeu enunciar a tradição trágica numa terceira margem, para parafrasear Guimarães Rosa, fazendo então a elegia dos marginalizados pela história do Ocidente. Por isso mesmo, a literatura e a tradição artística foram os verdadeiros herdeiros da tradição trágica na modernidade.
Da mesma forma, foi por causa disso que Foucault empreendeu posteriormente uma genealogia da punição, em Vigiar e Punir (1974),
e uma genealogia da sexualidade
baseada no dispositivo da confissão, em A Vontade do Saber (1976).
Além disso, Foucault inscreveu a constituição da psicanálise no registro da tradição crítica, na medida em que Freud teria tido a genialidade de perceber que o dispositivo asilar estaria centrado na figura do alienista.
Assim, descartando-se das figuras do enfermeiro e do guarda, Freud inventou o espaço psicanalítico centrado na transferência, de forma que as alienações e as desalienações do sujeito se realizariam desde então em referência ao personagem taumatúrgico do analista, em continuidade com o dispositivo psiquiátrico do tratamento moral.
Como indicou devidamente Elisabeth Roudinesco, em “Leituras da História da Loucura (1961-1986)”, no colóquio comemorativo dos 30 anos da publicação do livro (Penser la Folie, Galilée, 1991), a obra de Foucault pegou a psiquiatria de calças curtas, pois não realizava até então obras de história da psiquiatria, e sim apenas hagiografias dos psiquiatras libertadores da loucura.
A obra magistral de Foucault teve assim o efeito de constituir uma historiografia psiquiátrica baseada em arquivos consistentes. A mesma formulação seria válida para a história da psicanálise, que teve na obra de Roudinesco sua grande realização.
Debate com Derrida
Contudo, o grande debate sobre a obra de Foucault realizou-se no campo da filosofia, tendo em Derrida o maior crítico. Assim, numa conferência realizada em 1963, no Collège de Philosophie, intitulada “Cogito e História da Loucura”, Derrida não aceitou o pecado metafísico de Foucault de inscrever a filosofia de Descartes em sua arqueologia da desrazão.
Ele sustentou assim que, com a figura do gênio maligno, o cogito cartesiano estaria presente na experiência da loucura, de forma que o “penso, logo existo” poderia ser dito em qualquer circunstância. Além disso, formulou que a dita obra de Foucault apenas pôde ser escrita com a invenção da psicanálise, na medida em que essa deslocou a figura da loucura em nossa tradição, com a formulação do conceito do inconsciente.
Foucault interpelou Derrida em 1972, em “Resposta a Derrida”, afirmando entre outras coisas que, quando formulou a História da Loucura na Idade Clássica, estava rompendo com a tradição filosófica de que Derrida era o porta-voz em sua crítica, na medida em que retirara do discurso filosófico qualquer superioridade
teórica sobre os demais discursos e que procurara colocar em evidência, com o conceito de “episteme”, a existência de um inconsciente do saber.
Derrida retomou a crítica a Foucault, em 1991, em “Fazer Justiça a Freud”, indicando as múltiplas ambiguidades de Foucault face à psicanálise.
Pode-se afirmar então que a obra de Foucault sobre a loucura foi não apenas um livro-acontecimento, mas continua viva, pelas inúmeras polêmicas que provocou e ainda provoca.
Além disso, mesmo que o estatuto da internação da doença mental tenha sido colocado em questão com as curtas internações, a minoridade do louco e sua relação com a verdade estão ainda em pauta, quando as camisas de força bioquímicas passaram a regular a experiência da loucura na atualidade e onde o discurso da loucura é francamente interditado.
Sob essa perspectiva, Foucault, numa passagem célebre de seu livro, sublinha que seria preciso fazer justiça a Freud, pois na narrativa de suas histórias clínicas e em particular no caso Schreber inscreveu a loucura no campo do discurso.
Assim, apesar de suas críticas, Foucault também escutou a formulação de Freud de que o delírio, como discurso, seria uma “tentativa de cura” e que, nessa medida, a psicanálise se inscreveria na tradição trágica sobre a loucura.
Não seria essa “tentativa de cura” que estaria hoje interditada com as camisas de força bioquímicas?
Joel Birman é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e professor-adjunto do Instituto de Medicina Social da Uerj
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