Lei que limita o número de internações em manicômio completa dez anos, mas não reinsere doentes mentais na sociedade
por Fernanda Paola
Há dez anos foi aprovada no Brasil a lei n° 10.216, inspirada na similar italiana Basaglia, de 1978, que buscava redirecionar a política de atenção aos pacientes com transtornos mentais no país. Na prática, significa fechar gradualmente os hospitais psiquiátricos e abrir uma rede de modelo substitutivo para reinserir os doentes na sociedade.
“Serviços que estejam próximos do paciente, de sua família, sua casa, seu território – como chamamos na saúde mental”, conta em entrevista à CULT Gerardo de Araújo Filho, médico psiquiatra e diretor da AME-Psiquiatria (Ambulatório Médico de Especialidades) da Vila Maria, na Zona Norte da capital paulista. “Fazemos cerca de 6 mil atendimentos por mês, e temos em torno de 15 internações no mesmo período”, diz.
Mas as coisas não aconteceram conforme o planejado. No estado mais populoso do Brasil, de fato os hospitais foram sendo extintos, mas modelos substitutivos não foram abertos na mesma proporção. “Grande parte que virou morador de rua está na cracolândia ou em casa trancafiado”, explica Araújo Filho.
No estado de São Paulo só existe um ambulatório como o da Vila Maria. Há também o Centro de Atenção Psicossocial, as equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família e os leitos nos hospitais gerais, que, segundo Araújo Filho, são em número aquém do necessário. Abaixo, ele também fala da desgastante rotina de médico em um ambulatório psiquiátrico.
CULT – O fato de os doentes mentais não serem mais internados pode representar uma ameaça à segurança pública?
Gerardo de Araújo Filho – Não vejo dessa forma. O que percebemos é que, na medida em que conseguimos reinserir o paciente na sua família, no seu meio social, ele melhora da doença. Muito em razão de se sentir aceito. Mas, se você tirar o paciente do hospital e não der alternativa de acompanhamento, a coisa pode ficar muito grave.
Todos os pacientes podem ser reinseridos na sociedade?
Sim, se estivermos falando de transtornos psiquiátricos. Há pacientes com questão forense associada, em que a doença os levou a cometer um crime. E para isso existe uma estrutura à parte – o verdadeiro manicômio – que serve aos pacientes com transtornos que cometeram crimes. Existe até hoje. Não está nem sob a tutela da Secretaria da Saúde, e sim da Justiça.
Do ponto de vista sociológico, a lei de 2001 também abriu os olhos da sociedade para uma realidade escondida nos hospitais psiquiátricos.
O poeta Ferreira Gullar disse, em alguns artigos, que é contra a lei, porque as pessoas não saberiam – como ele – o que é conviver com familiares esquizofrênicos…
O que acontece é que, no Brasil, existe uma parte dos trabalhadores de saúde mental e dos políticos que, mal assessorada, deturpou a lei. Ela não diz em nenhum momento que é proibido internar, e sim que o tratamento deve acontecer, preferencialmente, em locais na comunidade.
Um paciente que necessite pode ser internado. Mas, se antes ficava no hospital por 30 anos ou mais, hoje as internações duram de 20 a 30 dias, o que é suficiente para conter o surto. Ferreira Gullar criticou a ala que acredita que o paciente nunca deve ser internado.
Os leitos hospitalares e serviços são suficientes para a população?
Não. Existem hoje pessoas desassistidas. Não sabemos o número porque nós, brasileiros, não temos esmero pela questão estatística. Mas tem uma grande parte que virou morador de rua, está na cracolândia ou em casa, trancafiado.
Há o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, que conta com médicos generalistas e enfermeiros que vão à casa das pessoas fazer um trabalho preventivo. Foram descobertas situações difíceis de acreditar – pessoas acorrentadas, trancadas, recebendo comida por debaixo da porta.
Os hospitais psiquiátricos foram progressivamente sendo fechados, mas não foram abertos serviços substitutivos na mesma velocidade.
O assassino confesso do cartunista Glauco foi considerado inimputável pela Justiça e vai cumprir pena de três anos em um hospital psiquiátrico. Como vê esse caso?
Quem avalia esses casos são os psiquiatras forenses – forense é toda medicina a serviço da lei. O advogado de defesa alega que o cliente tem problemas das faculdades mentais e pede uma perícia psiquiátrica. O grande objetivo do psiquiatra, nesse caso, é saber se na hora do crime o paciente estava com o juízo perfeito da realidade.
Na esquizofrenia, o sintoma principal é o delírio. No momento do crime, se o psiquiatra conseguir provar que ele estava fora do juízo da realidade (porque tem momentos em que o paciente está delirando e outros em que não está), ou sob efeito de drogas, é chamado inimputável.
Então, o paciente vai para um manicômio, o que muitas vezes é pior do que ir para a cadeia. No Brasil, a pena máxima são 30 anos, no manicômio a pessoa pode passar a vida inteira. Periodicamente, receberá avaliações psiquiátricas para medir sua periculosidade, e muitos psiquiatras não querem assumir a responsabilidade de colocar a pessoa de volta nas ruas.
Esta é uma das atividades mais inglórias da prática psiquiátrica, quando o juiz pergunta: “Você acha que fulano pode cometer algum crime daqui para a frente?”.
Ainda são usados tratamento de choque e camisa de força?
Camisa de força não existe mais. A eletroconvulsoterapia (ECT) tem uma aura triste sobre ela, em função da ditadura e de vários casos em que foi usada sem o devido cuidado – o paciente quebra dentes, fica desmemoriado.
Ela ainda é feita hoje em dia para pacientes extremamente resistentes a qualquer tipo de medicação. Só que é realizada em centro cirúrgico, com anestesia geral e monitoramento e seguindo critérios médicos e éticos extremamente rigorosos, sob a fiscalização do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Regional de Medicina.
As sessões acontecem dia sim, dia não, de duas a três vezes por semana, no total de seis. Em duas semanas a pessoa melhora bem e recebe alta. Hoje é tratamento, antigamente era punição.
Os casos que diagnostica são, em geral, genéticos ou sociais?
Não existe uma causa única. Temos fatores genéticos e ambientais – causas sociais – juntos. Por exemplo, filhos de mãe com esquizofrenia têm dez vezes mais chances de desenvolver a doença.
Estudos europeus mostraram que, ao separar gêmeos univitelinos, filhos de mãe ou pai com esquizofrenia, colocando um em uma casa estruturada – com bons recursos financeiros, onde existam harmonia e carinho – e outro na periferia – sem muitos recursos –, o primeiro não desenvolveu a doença, o segundo, sim.
É necessário um fator ambiental – violência, problemas financeiros, de relacionamento, drogas, bullying – para desencadear o transtorno mental em pessoas que tenham predisposição genética. Em meus 11 anos como psiquiatra, nunca vi alguém surtar quando tudo à sua volta está bem. Sempre tem um fator que é o estopim.
Quais são as drogas aplicadas em casos mais graves?
No caso dos psicóticos, avançamos muito, principalmente depois dos antipsicóticos de segunda geração. As medicações novas produzem muito menos efeitos colaterais. A top é a Clozapina – o problema dela é que, em 1% dos casos, zera os glóbulos brancos –, que é o penúltimo recurso. Se não melhora com ela, damos eletroconvulsoterapia.
Juntamente com o medicamento, deve-se fazer terapia. É a melhor combinação. Porque você trata a questão biológica e a questão individual.
Sente-se pessoalmente afetado por seu trabalho diário?
O trabalho desperta em você uma angústia muito grande. Lidar com transtorno mental é algo extremamente desgastante, por isso os profissionais da área fazem terapia. Eu faço.
A diferença do transtorno mental para outras doenças da medicina é a intensidade. Com as outras doenças você consegue ter um diagnóstico categórico. Com transtornos mentais é contínuo, gradativo, não existe sim ou não. Há pessoas que a gente vê em nosso dia a dia que manifestam alguns traços, são mais esquisitas, e que para ter o diagnóstico às vezes falta meio passo.
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