domingo, 26 de dezembro de 2010

divulgação: I - TEMPO DOS ANJOS - 5 - O ANJO DE SWEDENBORG

Escrito de Peter Pál Pelbart, em A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura/ Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993.
I - TEMPO DOS ANJOS - 5 - O ANJO DE SWEDENBORG
Na última página do imenso romance de Robert Musil, O homem sem qualidades, o anti-herói de nome Ulrich apanha da estante um livro e lê uma surpreendente descrição acerca dos anjos. O autor deste curioso texto sobre os anjos é Swedenborg, um visionário e místico sueco do século XVIII, célebre em sua época como cientista e teósofo, respeitado por Kant e Goethe, e fundador de uma seita que ainda hoje tem seguidores nos Estados Unidos. Swedenborg fez uma descrição tão minuciosa e segura da topografia do Céu e da natureza dos anjos que se tem a impressão, como diz Musil, que o autor está a nos descrever Estocolmo e seus habitantes (Robert Musil, O homem sem qualidades, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1989, p.859). O que diz Swedenborg de tão intrigante? Que os anjos, ao contrário dos homens, não conhecem as determinações do tempo, isto é, os dias, os meses, os anos. Tampouco conhecem a dimensão do amanhã, do ontem, do hoje. Quando nos ouvem falar em tempos, os anjos que nos acompanham (pois os anjos sempre acompanham os homens) entendem estados. Nós, homens, pensamos a partir do tempo, eles, anjos, pensam a partir dos estados, e vivem exclusivamente modificações de estados. Claro, também no Céu, como na Terra, os fenómenos se sucedem uns aos outros, porém com esta diferença crucial: os anjos não têm a menor opção de tempo e espaço. No seu mundo, que não é natural, porém espiritual, os movimentos acontecem mediante modificações de estado, e não através de deslocamentos espaciais. Para um anjo não existem distâncias a serem transpostas. O próprio Swedenborg relata uma experiência pessoal sua, a de ter sido alçado por Deus à esfera celeste e à consciência dos anjos, sendo conduzido por Ele através dos reinos do Céu até os astros do Universo, sem que o seu corpo se tivesse sequer movimentado. É dessa maneira que os anjos se movem. Por exemplo, se sentem desejo por alguém, imediatamente lhe ficam visíveis, pois se colocam através deste desejo em seu estado. Se sentem repulsa, logo se afastam, pois se afastam do seu estado. Da mesma forma, se vão de um paradeiro a outro em meio a um jardim ou um átrio, chegam mais depressa caso anseiem por isso, chegam mais devagar quando o anseio é menor.
Hoje podemos considerar extravagante a angelologia de Swedenborg, mas é inegável o interesse que oferecem esses anjos, seres que não conhecem o tempo nem o espaço, que só conhecem estados, que vivenciam apenas modificações de estado (Klossowski chamaria a isto de intensidades), que não sabem o que é um dia, nem um dia depois do outro, nem um amanhã, nem a eternidade de um tempo infinito, apenas a eternidade de um estado infinito. Anjos um pouco psicóticos: alheios à história, à sucessão cronológica, ao encadeamento temporal, à continuidade individual, sujeitos a transformações bruscas, deslocamentos repentinos, mudanças de estado inusitadas. Não nos deveria surpreender o fato de que Karl Jaspers tenha utilizado também estas descrições de angelologia sueca para formular seu diagnóstico psiquiátrico sobre Swedenborg, colocando-o lado a lado de outros três génios loucos, Van Gogh, Holderlin e Strindberg (Karl Jaspers, Stríndberg et Van Gogh, Swedenborg-Holderlin, Étude Psychiatrique Comparative, Paris, Minuit, 1953).
Mas como são diferentes, estes anjos vistos por Swedenborg daqueles outros, filmados por Wim Wenders! Os que Wenders retrata em Asas do Desejo flutuando sobre Berlim banham-se na tediosa mesmice de uma eternidade vazia, testemunhas inefáveis do grande e metafísico bocejo divino. Ora, os anjos de Swedenborg, ao contrário, nada têm de entediados ou repetitivos. Talvez porque não estejam apenas observando o mundo; estão constantemente tornando-se outra coisa, sempre metidos em devir-alguma-coisa, em devir-algum-estado, em devir-algumestado-de-alguém-ou-de-alguma-coisa. Não são anjos metafísicos, especulativos, olheiros, eternitários. Não são anjos-filósofos, mas anjos crianças. Vivem as oscilações, os bruscos afastamentos e aproximações, as intensidades, uma disritmia, uma cronoilógica, descontinuidades, intempestividades, estados: devires bem próximos da loucura. Será isso que os torna tão deleuzeanos? Anjos deleuzeanos avant Ia lettre ...
Somos muito diferentes, nós, desses anjos de Swedenborg. Nós temos os minutos, as horas, a divisibilidade do tempo, sua calculabilidade, esta homogeneidade que alguns chamam de científica; temos os dias, os meses, as estações do ano, a sucessão do tempo, sua linearidade e continuidade, seu acúmulo, esta progressão que alguns chamam de histórica.
Ora, é precisamente Deleuze quem nos alerta para a diferença entre história e devir. Ou seja, para usar a terminologia de Swedenborg, Deleuze estaria sugerindo que é preciso pensar a diferença entre o tempo ou a continuidade do tempo, próprio dos homens, por um lado, e estados e modificações de estado, próprio dos anjos, por outro. Não creio estar exagerando ao dizer que a obra inteira de Deleuze, mas também — e talvez principalmente — a de Deleuze-Guattari consistiu num esforço incansável e generoso de espraiar essa distinção entre história e devir para além do domínio exclusivamente filosófico (ainda que sua explicitação nestes termos tenha sido tardia), fazendo-a incidir no campo da clínica, da estética, da política, da existência. Mas para que isso acontecesse era preciso que essa operação fosse também eminentemente filosófica. Pois a história corresponde a uma certa concepção do tempo, o devir a outra. Para diferenciá-los, é necessário poder trabalhar com duas concepções distintas do tempo, duas abordagens diferenciadas da temporalização. Está implícito, nesta operação, o abandono de uma certa concepção corrente do tempo, e sua subversão. A subversão de um conceito de tempo não é um luxo especulativo, mas uma espécie de necessidade, de urgência conceituai, que acompanha qualquer cirurgia subjetiva, histórica, cósmica. Mas deixemos falar um autor que definiu com precisão a relevância política de uma subversão na ideia do tempo, — o discreto estudioso de Walter Benjamin, Giorgio Agamben. Escreve ele: "A toda concepção de história está associada uma certa experiência do tempo, que lhe é inerente, que a condiciona e que se trata, precisamente, de revelar. Do mesmo modo, toda cultura é primeiramente uma certa experiência do tempo, e não há cultura nova sem transformação dessa experiência. Por isso, o primeiro objetivo de uma verdadeira revolução jamais é de "mudar o mundo", pura e simplesmente, mas também, e sobretudo, de "mudar o tempo". O pensamento político moderno, que concentrou sua atenção na história, não elaborou uma concepção de tempo correspondente. Mesmo o materialismo histórico omitiu-se, até o presente momento, de elaborar uma concepção de tempo que fosse à altura de sua concepção da história. Esta omissão, sem que ele desconfiasse, obrigou-o a recorrer a uma concepção do tempo que domina a cultura desde há séculos; de modo que coexistem nele uma concepção revolucionária da história e uma experiência tradicional do tempo. A representação vulgar do tempo, a de um continuum pontual e homogéneo, acabou desbotando o conceito marxista de história", conclui Agambe (Giorgio Agamben , Enfance et hisloire, Paris, Payot, 1989, p. 114). Embora o messianismo histórico de Benjamin cruze da forma mais surpreendente as subversões deleuzeanas, não é o momento aqui de seguir a análise de Agamben, de resto preciosa.
O que significa então a subversão na ideia de tempo que permita operar a diferença entre história e devir? Recorde-se o que aconteceu nas ruas brasileiras a respeito do impeachment do presidente Fernando Collor. Um chamamento desastroso do primeiro mandatário para que o povo saísse às ruas em sua defesa com as cores verde-amarela, fez com que o negro tomasse conta das cidades. Jamais se viu tantas mocinhas gorduchas virando esbeltas, a pele rugosa tornando-se diáfana, a rua tomando um aspecto luxuoso, graças a uma única cor: o preto. Pareciam todos preparados para a mais elegante noitada. Ao mesmo tempo, os que foram surpreendidos pela passeata improvisaram um utensílio preto qualquer, trapo, malha, chinelo, bolsa, e os brandiram na mão como se fossem punhais. Na falta de outra coisa, o limpador de pára-brisa funcionando já bastava, pois era preto. Os jovens pintaram o rosto com tinta preta e branca, às vezes com faixas verdes e amarelas; as mais estranhas maquiagens davam a impressão de que se estava sobre um palco gigante, numa encenação monstruosa —o grande teatro cívico.Mas também todos os negrófilos se achegaram, punks das mais diversas seitas, com suas correntes, alfinetes, bótons, cabelos espetados ou carecas provocativas; anarquistas de todo tipo, igualmente alguns originalmente enlutados, para não falar nos sóbrios que sempre se escondem por trás do preto, sabe-se lá por quê, talvez para virarem um pouco invisíveis. E aos gritos, hinos, risos, danças, o carnavalesco debochado contagiou com uma graça juvenil uma multidão indignada. Mas não há como dizer que estava-se apenas protestando contra Collor. Criou-se ali uma dramaturgia política específica, um figurino inédito, uma coreografia particular, um ritual incomum, que fazia ressoar a elegância e o luto, a extravagância e a morbidez, a máscara e o corpo, o teatro e a vida, a tinta dos índios, a bandeira brasileira, o negro da alma, a lama tupiniquim. Uma produção coletiva que em nenhum momento hesitaríamos em classificar de rigorosamente estética, e cuja atmosfera era a da improvisação da arte, do gesto intempestivo que inventa uma nova composição com a rua, com as cores, com os corpos, com a cidade. Ali, por essas poucas horas, nessa irrupção criativa, cada qual fez de seu corpo uma obra de arte, um estandarte, cada um fez do seu rosto uma superfície de inscrição (para o lema Fora Collor) ou uma máscara; cada pessoa se transfigurou, assumiu um estado. Cada um embarcou em algum devir-negro, devir-índio, devir-punk, devir-saltimbanco, devir-mago, devir-noite.
Paralelamente, de algum modo a massa negra e debochada enganchou-se com todos os carnavais da história, com a indignação de todos os driblados e engabelados de todos os tempos, mas também com todos os enterros soturnos, bailes noturnos, concertos metaleiros, com todos os negros túneis da história.
Ou seja, criou-se ali um espaço-tempo inédito (pois nunca o Brasil havia assistido a algo semelhante), porém um espaço-tempo com uma ressonância imemorial (todos os carnavais da história, o luto de todos os homens por todas as mortes de todos os séculos..)- Talvez seja o mais difícil de compreender, o inédito e ao mesmo tempo o imemorial, este instantâneo desenganchado de qualquer inserção encadeada no tempo e ao mesmo tempo o ancestral ilocalizado. Engendra-se aí uma espécie de temporalidade não localizada, não localizável, não deduzível ou desdobrável a partir do que precede (por isso mesmo não previsível, não programável, não dialetizável, não historicizável) — um tempo sem lugar, sem topos, a-tópico, utópico. É nesses momentos intempestivos que a suspensão da continuidade temporal vem interromper a mansa ou conflituosa sequência dos dias e noites. É nesses instantes de grande ou pequeno desvio que algo escapa à história, perturba a história, conturba a história. Um acontecimento atravessou feito um raio as ruas do Brasil, uma transformação de estados tomou conta das gentes, uma afirmação extemporânea disrompeu nossa tradição de contínua barbaridade política. Claro, no dia seguinte o Brasil não era mais o mesmo; pouco depois o Supremo Tribunal Federal aprovava o rito de impeachment proposto pela Câmara, o Congresso votou contra Collor, as instituições incorporaram e deglutiram rapidamente esta modificação, a História do Brasil teve alterado o seu curso. O acontecimento recaiu na história. No entanto, por um instante ele esteve acima da história, alçado numa autosuficiência, num autoposicionamento imanente que extrapolava
em muito tudo o que o poderia explicar ou situar, pois o que se forjou ali nas ruas não foi apenas a preparação do impedimento jurídico de um corrupto, mas a invenção de uma cena nova, embora imemorial, no repertório humano, esta dos corpos embandeirados numa soturna alegria tirando a história dos trilhos, exercendo a prática da interrupção (ou aceleração brusquíssima) do tempo, inventando uma festa sem tempos, uma festa de estados. Com isso, o Brasil, como os anjos de Swedenborg, simplesmente deixou de viver um dia depois do outro.
Não são sempre ruidosos os devires, assim como não são necessariamente espetaculares as interrupções temporais, bem como nem sempre são visíveis os acontecimentos. Muito pelo contrário, não raro são discretos, silenciosos, um pouco sem começo nem fim, no interstício das visibilidades, nos tempos mortos, nos buracos de uma vida, na iminência prolongada de uma espera ou lentidão. Seja como for, sempre fica a pergunta de como se articulam esses acontecimentos, devires, interrupções, com o curso da história, dessa história visível, formulável, com seus contornos definidos, suas progressões, seu sentido. Numa das mais belas questões feitas a Deleuze, o ex-terrorista italiano exilado na França, Toni Negri, especialista em Espinosa, faz o seguinte comentário (dirige-se diretamente a Deleuze): "Você sentiu os acontecimentos de 68 como o triunfo do Intempestivo, a realização da contra-efetuação. Já nos anos que antecederam 68, (...) o político é reconquistado por você como possibilidade, acontecimento, singularidade. Há curto-circuitos que abrem o presente para o futuro. E que modificam, portanto, as instituições." E aí vem a pergunta: "Qual política pode prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade"? (Gilles Deleuze, Conversações, op. cit.).
Prolongar na história o esplendor do acontecimento — a fórmula é belíssima. E a resposta de Deleuze não é menos magnífica: "os processos de subjetivação, isto é, as diversas maneiras pelas quais os indivíduos e as coletividades se constituem como sujeitos, só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mas naquele preciso momento eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde. [São] novos tipos de acontecimentos: acontecimentos que não se explicam pelos estados de coisas que os suscitam, ou nos quais eles tornam a cair. Eles se elevam por um instante, e é este momento que é importante, é a oportunidade que é preciso agarrar." Ora, se eles não se explicam pelo os que precede, é porque não estão encadeados, dialetizados, é porque obedecem a uma lógica outra da ruptura, que nada tem a ver com contradição, e sim com uma linha de fuga, uma invenção intempestiva, a criação inusitada, com aquilo que faz fugir a história e seus contornos. E a conclusão de Deleuze dá a essa ideia um desfecho inesperado: "Acreditar no mundo é o que mais nos falta, nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos."
Como prolongar o esplendor do acontecimento na história, como prolongar o devir na história? pergunta Negri. Deleuze responde: criando outros acontecimentos, outros devires. E especifica: criar acontecimentos é engendrar novos espaçostempos.
Diante de uma ideia assim enigmática, cabe-nos pacientar o pensamento. Para observar, primeiramente, que seria impossível engendrar novos espaços-tempos se nos mantivéssemos presos a uma representação vulgar, uniforme, homogénea, abstraia, linear, do tempo, numa cidade também vista como apenas um não-lugar de circulação, espaço vazio e homogéneo, geométrico. Pois de que modo se quer pensar novos espaçostempos
se vemos constantemente um homem sem qualidades circulando num espaço sem qualidades em meio a um tempo sem qualidades? O homem qualquer, num instante qualquer, num lugar qualquer — eis o melancólico niilismo que certos cineastas souberam retratar tão bem, que nós vivemos com uma complacência tão morna, que suportamos tão tolamente como se fora um destino inelutável.
Em face disso, corno engendrar novos espaços-tempo, senão operando no mais fundo do tempo esta intervenção tão prática, pragmática, de liberar os estados de dentro dos tempos, de reencontrar no mais fundo da alma do "homem qualquer" um anjo de Swedenborg asfixiado...? É preciso acrescentar que quem contempla esta cena com compaixão quase divina é o anjo de Wenders? A eternidade vazia observa o devir saltando de dentro da história...
Os gregos já entendiam que ao lado de Chronos — esse tempo da medida, que fixa coisas e pessoas, que desenvolve uma forma e determina um sujeito, que constitui um 'tempo pulsado' (que é o mais conhecido por nós, pois se assemelha à concepção vulgar ou histórica que temos do tempo) —, há um outro tempo, que eles chamam de Aion, que é um tempo sem medida, tempo indefinido, que não cessa de dividir-se quando chega, sempre já ali (o imemorial) e ainda não-ali (o inédito), sempre cedo demais e tarde demais, o tempo do "algo vai suceder" e simultaneamente o "algo acabou de acontecer", esse tempo dojorrar do tempo, bifurcado, tempo não métrico, não pulsado, feito de pura velocidade, tempo flutuante que vemos na psicose, na poesia, no sonho, nas catástrofes, em alguns videoclips, nas grandes e micro-rupturas, coletivas ou individuais; tempo do devir, diríamos, se não soubéssemos, já a esta altura, que o devir não é o tempo, nem o tempo irregular, nem mesmo o tempo efémero contraposto a uma suposta eternidade, nem a finitude travestida e castração, porém outra coisa, algo como a produção de velocidades e lentidões...
Por comodidade e hábito dizemos ainda "tempo", embora já saibamos que este tempo não é mais cronológico, e não está referido a um movimento centrado, com suas invariantes (ponto de gravidade, pontos privilegiados por onde passa o móvel, ponto de fixidez em relação ao qual ele se move). Aqui, ao contrário, as aberrações do movimento ganham independência em relação aos invariantes, e temos um tempo não cronológico, mas crónico, que produz movimentos descentrados, com anomalias, aberrações nada acidentais porque constitutivas, essenciais. A este tempo liberado de sua subordinação ao movimento centrado, Deleuze deu, em certa ocasião, o nome de tempo puro, mas que é também o devir na sua inocência sem centro, na sua potência de produção do falso, do desajuste, das metamorfoses, da confluência de universos ou tempos incompossíveis. Deleuze fez uma linda análise da passagem de um regime cronológico para um regime crónico no cinema, através dos cristais de tempo, indicando algumas das mutações do pensamento em que isso implica (Gilles Deleuze, A imagem-tempo, op. cit. Estes temas estão desenvolvidos também em Mille Plateaux, juntamente com Cuattari, Paris, Minuit, 1980, sobretudo no capítulo "Devenir-intense, devenir-animal, devenir imperceptible", bem como num escrito mais antigo de Deleuze, intitulado "Do Aion", capítulo de Lógica do sentido, trad. Luís Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 1982).
De qualquer modo, se é esta a subversão temporal implícita na ideia de devir, já é possível ao menos entender por que, embora aquilo que o devir produz recaia sempre na história, e possa assim formar um passado suscetível de ser lembrado e reativado, o devir mesmo nunca provém da história. O devir é trans-histórico, sub-histórico, supra-histórico, espacial, geográfico, intensivo, não está preso a coordenadas prévias de um pulsar do tempo, por isso é ele quem cria suas coordenadas (por exemplo a de um tempo flutuante, tempo não pulsante, tempo crónico), produzindo aberrações, desequilíbrios, conjunção de incompossíveis... Para usar termos mais consagrados e às vezes até banalizados, produzindo a diferença, o novo.
Se à luz disso tudo retomamos a distinção entre história e devir, ganha densidade o dito de Foucault, segundo o qual a história não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir. Ela não nos dá nossa identidade, mas na distância que tomamos dela liberamos nossa diferença. A história, diz Deleuze no mesmo sentido, é apenas o conjunto das condições quase negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa à história. Sem a história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a questão toda, acrescenta Deleuze, é saber, investigar, onde aparecem os germes de um novo modo de existência, comunitário ou individual. Experimentação de algo que escapa à história, eis uma fórmula que poderia soar enigmática caso não fosse colocada sob esse prisma temporal desenvolvido acima. O que escapa à história não é o eterno, mas o que Nietzsche chamou de intempestivo ou inatual, Foucault de atual, Deleuze de devir, ou acontecimento. Pouco importam os nomes, o que interessa é que é nesse nível que se engendra o nascente. É sempre a partir de uma linha de fuga, que é portanto também uma linha de fuga temporal, na medida em que rompe uma temporalidade e faz fugir a história, que se instaura um acontecimento, um novo espaço-tempo.
A criação de novos espaços-tempos, distantes deste espaçotempo homogéneo que nos é oferecido pelas laminações da tecnociência, das tecnocidades, das tecnosubjetividades, e que se dá sempre a partir do intempestivo, das linhas de fuga ativas, pode ocorrer numa passeata, num grupo psicoterápico ou expressivo, num laboratório científico, na página em branco que enfrenta um poeta insone, num mocó de meninos de rua, na percepção alterada de um drogadito, num surto, num filme, numa batalha, numa brisa, num ritual, numa paixão, numa crise económica... E no entanto, quando tudo isso é submetido às formas mais codificadas de informação, às formas mais serializadas do mercado, às formas mais universalizantes de subjetivação capitalística, nós o perdemos de vista, nós o tornamos equivalente, nós o submetemos a um mesmo modo homogeneizante de temporalização-espacialização, com o que o reterritorializamos.
Foi uma das maiores contribuições de Deleuze-Guattari, esta arte fina de detectar, por debaixo desta homogeneização generalizada, os espaços-tempos distintos, percebê-los, diferenciá-los, cultivá-los. O que significa também produzi-los. Eis quatro exemplos tomados ao acaso. Um tríptico de Bacon, diz Deleuze, é um imenso espaço-tempo que reúne todas as coisas mas introduz entre elas as distâncias de um Saara, os séculos de um Aion (Gilles Deleuze, Francis Bacon, Logique de Ia sensation. Paris, Ed. de Ia Différence, 1981, p. 56). Cada variedade de cobre recenseada na Suméria é uma hecceidade de espaço-tempo; o jogo chinês go, com suas estratégias de distribuição das peças num espaço aberto, num movimento perpétuo sem direções preestabelecidas, e portanto em tudo contraposto ao xadrez e suas regras imperiais, instaura um outro espaço-tempo, diz Mille Plateaux. O desejo investindo na percepção, como ocorre com as drogas, é um outro espaço-tempo (Gilles Deleuze, "Duas questões" in SaúdeLoucura 3, António Lancetti (org.), São Paulo, Hucitec, 1992). Poderíamos multiplicar indefinidamente estes exemplos.
Caberia acrescentar que esta questão da criação de espaçostempos diferenciados é da maior importância na clínica institucional. Os trabalhadores de saúde mental, no trato com os psicóticos, por exemplo, estão constantemente confrontados com anjos de Swedenborg, com devires. A tentação é levá-los de volta ao tempo da história. Simultaneamente, nas suas intervenções analíticas estão sempre provocando aberrações temporais, que desembocam na criação de novos espaços-tempos.
E qual é o segredo da criação de novos espaços-tempos, numa instituição ou fora dela? Há razões para supor que isso passe pelo ritornelo. Sucintamente, trata-se do seguinte. O ritornelo é essa ritmação expressiva que encadeia melodicamente componentes heterogéneos, e assim constitui um território existencial, um universo. O ritornelo age sobre o que o rodeia, ao mesmo tempo em que extrai daí vibrações, decomposições, transformações. Nesse sentido o ritornelo, dizem Deleuze-Guattari, é um prisma, é "um cristal de espaço-tempo". Como então criar, numa instituição, vários ritornelos, vários cristais de espaço-tempo, para que proliferem os espaços-tempos? Não será esta a arte do tratamento barroco de uma instituição, à qual se referiu Guattari em seu último livro Caosmose?
Que o ritornelo seja esta esponja que absorve, compõe e ritma componentes diversos, entende-se. Mas a surpresa filosofica vem quando Deleuze-Guattari postulam que "o ritornelo fabrica o tempo". "Não existe o tempo apriori, mas o ritornelo é a forma a priori do tempo, que fabrica a cada vez tempos diferentes" (Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille Plateaux, op. cit., p. 430-1). Talvez aí esteja uma das ideias mais radicais a respeito do tempo contidas neste livro: o ritornelo como o a priori, mas a priori que necessariamente é histórico, geográfico, territorial, natal, espacial etc. Os desdobramentos desse escândalo teórico são muitos e mereceriam um estudo à parte.
Por ora, basta-nos ilustrar parte destas reflexões com um depoimento do carnavalistajoãozinho Trinta. Convidado pelos lacanianos para uma conversa e indagado sobre que ideia se fazia do Brasil, respondeu: "Não será o Brasil um coração por onde vai passar tudo? Eu vou ser mais claro. A civilização chinesa: tudo ali é chinês. Por quê? Porque a civilização chinesa se fez num tempo e num espaço chineses, eles nem sabiam que existiam outros lugares. O Japão, a mesma coisa. A civilização grega se fez no tempo e no espaço gregos. E todas as outras civilizações, a europeia... Aí, de repente, a nossa civilização é um tempo e um espaço cósmicos, no sentido de que hoje, sobre nós, aqui no Brasil, se despeja tudo. Nós estamos num tempo e num espaço abertos."22 Joãozinho Trinta, Psicanálise Beija-flor.Joãozinho Trinta e os analistas do Colégio, Rio de Janeiro, Aoutra, 1985, p. 20). Essa citação merece ser deixada como se deixa um presente, sem comentários.
Podemos concluir que a produção de um novo espaço-tempo não pode ser remetida para um radical e escatológico porvir além do tempo. A revolução, se ainda se quiser utilizar este termo, não está lá longe, no fim da história, no topo do tempo. Daí o desprezo de Deleuze pelo "futuro da revolução". O que importa é a imanência do devir revolucionário das pessoas, que são essas transformações de estado, essas criações de espaçostempos, esses acontecimentos que nos liberam de nossa história, de nossa mesmice, de nossa identitária continuidade. Mas também de nossa estrutura eternitária, ou da fragmentária instantaneidade sem espessura que caracteriza este nosso regime tecnocientífico.
O "devir revolucionário das pessoas" tal como foi exposto acima, inspirado em Deleuze, está trançado ao tempo da história, mas não se confunde com ela. Sua virtualidade está estendida aí, no meio da história, na sua superfície, como que alçada numa suspensão sempre incerta, inesperada, oferecida. Exige, para ser atualizada e explorada, uma ininterrupta desobstrução, para que tanto no plano individual de uma subjetividade como no plano coletivo, os colapsos temporais tragam o acontecimento, os devires pulem da história e se multipliquem, os espaços-tempos heterogéneos proliferem. E isto para que atinjam o esplendor que lhes permita alterar o curso da história, mas sobretudo inventar para nós novas formas de viver, de subjeti-var-nos, de insubordinar-nos, afirmando assim nosso próprio e demiúrgico esplendor.
Outubro/1992
cooperação.sem.mando

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