sábado, 25 de dezembro de 2010

divulgação: I - TEMPO DOS ANJOS - 4 - RAPSÓDIA HÚNGARA

Escrito de Peter Pál Pelbart, em A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura/ Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993.
I - TEMPO DOS ANJOS - 4 - RAPSÓDIA HÚNGARA
Um judeu-húngaro, refugiado de guerra, encontra-se nas cercanias de um parque de grande afluência; de repente, se vê ilhado junto a um famoso monumento erigido em homenagem à fundação de São Paulo. Cercado de carros e buzinas por todos os lados, o personagem não se abala: parece alheio à batalha da cidade, numa postura de altiva dignidade, que faz a velocidade parecer loucura, a pressa deselegância, o ruído desatino, o mundo névoa-nada. Na sua soberba quase socrática, transforma uma ilha plantada no meio de uma avenida em mirante privilegiado: de lá, lança sobre o torvelinho da cidade o seu sábio desprezo e pode enxergar, no formigamento humano circundante, apenas uma estranha afobação. Como nós, quando do avião, alçados à altitude do Céu, temos dificuldade em entender o sentido da agitação dos homens lá debaixo, espremidos nessas cidades que parecem querer desafiar a imensa e serena quietude da Terra.
A gagueira de Lászlo, a semiparalisia do corpo, a lentidão do gesto no toque do dinheiro, sua parada final ao lado do monumento, tudo isso faz pensar numa câmara lenta de minúsculas brusquidões, ou numa fotografia tremida, ou num disco riscado, em suma, numa espécie de frustração de um movimento. Pareceriam tentativas de greve contra um certo ritmo, contra uma certa velocidade, contra uma certa corrida do tempo, talvez até contra uma ideia do Cazuza de que o tempo não pára. E se Cazuza não tivesse razão? E se fosse possível de vez em quando parar o tempo, construindo pequenas barricadas contra sua impetuosidade, contra a violência intrínseca ao frenético regime temporal vigente? E se Lászlo fosse, como tantos outros loucos nossos, um grevista a mais, pertencente a este movimento "político" muito disseminado mas pouco visível, que opera através de paralisações parciais, descontinuidades, greves brancas, operações tartaruga, pequenas sabotagens em que se coloca em xeque certa economia do tempo? Num passado não muito remoto os que eram considerados imprestáveis para a produção e reprodução, confrontados a um ritmo socialmente convencionado, foram isolados e confinados, silenciados e reeducados. Ultimamente tem-se estimulado sua "inserção". Com isso, esses grevistas desordenados e frustres contra uma ordem produtiva acelerada passaram a ser reconduzidos, bem ou mal, e segundo suas possibilidades canhestras, ao ritmo societal. Mas o canhestro, que é o avesso, insiste e persiste, e às vezes, como nesse caso húngaro relatado por sua acompanhante terapêutica, mostra também o seu avesso.
A narradora, intrigadíssima com a imobilidade ilhada de Lászlo, ao lado do monumento onde ela o deixou depois de uma saída conjunta bem sucedida ao Ibirapuera, restitui a esse senhor de mais de 50 anos uma certa dignidade, um encanto misterioso, um sentido que nos cabe um pouco adivinhar, desdobrar, construir, multiplicar. Aí vão, com esse propósito, algumas perguntas abertas, inacabadas, que não visam "entender" o caso, nem sobrepor-se a ele, mas fazê-lo proliferar.
A primeira questão é se esse mirante da ilha, de onde a cidade se oferece ao olhar de Lászlo como o zumbido longínquo de um campo de batalha, nos é acessível. Ou seja, em que medida podemos nos construir um olho de Lászlo, subir com ele ao mirante da ilha, não só para conseguir acompanhá-lo "terapeuticamente", mas também para poder usufruir desse panorama que supomos ser o seu, para alcançar um novo estranhamento, um alheamento, como aquele que um pintor, um cineasta, um escritor, um estrangeiro nos oferecem, quando estranham nossa própria cidade, quando a diabolizam, ou colorem, ou deformam, ou ignoram, ou simplesmente a poetizam?
E depois, quando, trajados e ultrajados com essas novas cores, palavras, imagens ou traços, já não a reconhecemos, ficamos gratos pois conhecemos nela algo para além daquilo que nos devolve nossa especular familiaridade. Então, como cavalgar o ponto de vista de Lászlo, como atingir esse ponto que ele nos oferece e a partir do qual se descortina uma certa perspectiva, uma outra cidade? Como ver nele, nessa sua imobilidade repentina, o ponto de apoio fixo que o cameraman escolhe para fazer repousar seu visor, ou que o pintor escolhe para abrir seu cavalete, ou que o escritor escolhe para narrar uma cena, e que o louco escolhe para desconstruir/reconstruir sua cidade, e assim exprimi-la sob um certo ponto de vista? Como resgatar essa dimensão estética de um olhar louco sobre apólis, portanto olhar político, sem perder de vista o que está em jogo, do ponto de vista clínico, no acompanhamento? Como aderir e explorar o olhar surrealista de Lászlo, ao invés de considerar surrealista sua imobilidade?
A segunda questão, na continuidade desta, diz respeito à importância desta parada, desta imobilização, e sua diferença com uma paralisia. Várias vezes o farol vermelho obriga o carro da acompanhante a parar, mas Lászlo não desce (a não ser no monumento), não consegue mover-se nessas paradas, talvez porque não sejam paradas, mas apenas contenções de fluxo. O que é uma parada? Outro dia a TV mostrou um programa rodado numa tribo indígena, e tinha gente sentada, fazendo nada. Perguntei-me, num reflexo urbano, "o que será que essas pessoas estão esperando?" Como se a única medida de um acontecimento fosse o deslocamento. Não entendi de imediato que ali estava acontecendo um entardecer, ou um luto, ou apenas isso, a passagem do dia. Então, caberia perguntar-se sobre o estatuto do acontecimento, numa cena em que está claro que se em algum lugar está acontecendo alguma coisa, não é onde tudo se agita, mas precisamente ali, entre uma imobilidade de um louco e a de uma estátua, no alheamento, numa espécie de suspensão. É possível que justamente nessa suspensão do tempo, da velocidade, é que algo estivesse efetivamente se movendo. Esse então seria um acontecimento discreto, rarefeito, mas cheio de iminência, de suspense. Não o suspense de James Bond, e sim o suspense próprio a essa suspensão do tempo. Deleuze diz, ao explicar por que não gosta de viajar: é preciso não se agitar demais para não espantar os devires. Então, como ver nessas interrupções devires silenciosos? Como acolher esses buracos temporais sem sentir-se com isso aspirado por um buraco negro, ainda que nos defrontemos constantemente, no trato com a loucura, com buracos de ser e desfalecimentos ontológicos? É ainda Deleuze quem conta, quando perguntado numa entrevista sobre o que fez entre tal e tal ano, que não sabe, que foi um grande buraco na sua vida, e que esses buracos em geral são o que há de mais interessante na vida das pessoas, pois é aí que o movimento acontece. Há uma novela de Fitzgerald a respeito de um sujeito que vaga pela cidade com um buraco de dez anos.
O que se faz numa cidade com essas descontinuidades temporais, que impõem uma certa pulverização temporal? Num livro já antigo de Gaston Bachelard, chamado Dialética da Duração, há uma crítica à ideia de Bergson segundo a qual haveria uma continuidade do fluxo interno temporal. Bachelard diz que essa continuidade não existe, e deve ser constantemente construída. O curioso, contudo, é que Bachelard cita efusivamente um autor brasileiro, Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos, que em 1931 teria publicado no Rio de Janeiro, pela Sociedade de Psicologia e Filosofia, um livro intitulado A Ritmanálise. O leitor merece ser poupado do sistema absolutamente esdrúxulo que esse autor monta como proposta de substituição à psicanálise, mas o sugestivo, além do nome (do qual poderíamos apropriar-nos, desvirtuando-o), é a proposta de pensar o sujeito a partir de sua heterogeneidade rítmica. Penso que no contato com os loucos e no acompanhamento terapêutico isso é fundamental. Talvez o acompanhamento seja justamente isso, uma espécie de ritmanálise em que a cidade se oferece com seus milhões de ritmos, para que ritmos estrambólicos e a-ritmias frágeis dos milhares de Lászlo não sejam sufocados, nem orquestrados, mas conectados, ou simplesmente possíveis. Talvez nesse caso o ritmanalista, aquele que provoca um ato analítico do ponto de vista do tempo, da velocidade, do ritmo, seja o próprio paciente.
A terceira questão é mais complexa: diz respeito à relação entre a imobilidade espacial e temporal e a memória. Poderia ser formulada da seguinte forma: Será que parar o tempo é parar no tempo? Lá sobre o mirante da ilha, olhando para os pecados de Sodoma e Gomorra e paralisado como Lote, suponhamos que Lászlo não estivesse mesmo ali, no Ibirapuera, mas em algum outro lugar do passado, numa outra Sodoma, nazista, ou apenas no desbravamento bandeirante a que faz alusão o monumento, ou ainda na melancólica Budapest. Suponhamos que esse buraco temporal estivesse então habitado não por um vazio, mas por um excesso encavalado de passados, de passados de guerra, por exemplo. A propósito, desse ponto de vista, da parada num tempo remoto de guerra, pode-se dizer que todos os loucos são refugiados de guerra. Os refugiados de guerra, judeus ou não, têm uma relação especial com a memória. Não conseguem esquecer, não suportam lembrar, sobrevivem numa economia libidinal bélica, crispados por um perigo de aniquilamento mas também, para compensar, donos de uma ferina indiferença e coragem, estranha habilidade e humor, mesmo no atracamento com a morte. Às vezes não se entende como um louco sobrevive atravessando o trânsito do jeito que o faz, com essa serena displicência, largada e ágil como um gato. Táticas de sobrevivência. Entre elas está também a de simular o morto, a de conviver pacificamente com cenas de guerra passadas que se entrelaçam às presentes a ponto de tornar indiferente a cronologia etc. Mas aqui a questão seria: Como conviver com um refugiado de guerra aceitando esses blocos de passado que tomam o presente, mas não para paralisá-lo, e sim para abastecê-lo? Deleuze fala de lençóis de passado, como se diz lençóis de água; poderiam ser fontes que alimentam o presente, ao invés de encharcá-lo?
Quando um Rastafari diz Babilónia, quando um paciente diz Machu Pichu, quando um narcoléptico como o do filme Rapazes de programa vê, no meio de uma crise de desfalecimento, sua cidade natal Idaho, que lugar dar a isso que não seja só o de lembranças, regressões, ou mesmo, em outros casos, o da repetição? Como pode o passado virar potência? Quer dizer, quando olhamos Lászlo e nos perguntamos onde está ele nesse intervalo imóvel, e se por um instante brincamos com a hipótese-pergunta: em que passado foi que ele parou, se é que ele parou em algum passado? Lógico, não sabemos, jamais saberemos, e não se trata de adivinhar, mas de explorar também essa possibilidade, a de que paradas temporais, se são irrupções afetivas do passado, não sejam obrigatoriamente prisões ou refúgios, mas eventualmente grandes janelas futuristas, com excepcionais poderes de expressão, conexão, evocação. Como acontece na transfiguração estética de uma fixação natal, através da invenção de uma forma. Como é possível, então, nessa circulação urbana que evoca tanta coisa, fazer o passado virar futuro?
Essas três questões um pouco rapsódicas (uma sobre a estética e a política embutidas no suposto olhar do louco, outra sobre o sentido cronopolítico dessas paradas, verdadeiras barricadas no tempo, e sua positividade ritmanalítica, e a última sobre o passado futurista), embora distintas, têm um pano de fundo comum. Uma cidade é, por excelência, o espaço da regulação e ordenação dos fluxos, fluxos de pessoas, viaturas, palavras, mercadorias, ondas de rádio e TV, dinheiro etc. Como conseguir que um Lászlo, na sua insubordinação contra o sentido e a velocidade habitual desses fluxos, não só sobreviva, mas também manifeste sua densidade singular? Talvez entendendo que ele está tocando outra música, ou compondo um ritmo novo, ou inventando um instrumento inusitado. E aí, por mais que ele soe desafinado na orquestra da cidade, seria preciso "acompanhá-lo", musicalmente.
Junho/1992
cooperação.sem.mando

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