quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

divulgação: DOSSIER DELEUZE - SIGNOS E ACONTECIMENTOS

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
SIGNOS E ACONTECIMENTOS
Entrevista realizada por Raymond Bellour* e François Ewald**
Raymond Bellour e François Ewald - Você acaba de publicar um novo livro: Le pli, Leibniz et Le Baroque. Poderia retraçar o itinerário que, de um estudo sobre Hume (Empirisme et subjectivité, 1953), o conduz hoje a Leibniz? Se seguirmos a cronologia dos seus livros, se poderia dizer que depois de uma primeira etapa consagrada a trabalhos da história da filosofia, que teria culminado com o Nietzsche (1962), você elaborou com Diferença e Repetição (1969), depois com os dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia (1972 e 1980), escritos com Félix Guattari, uma filosofia própria, cujo estilo é nada menos que universitário. Parece-nos hoje que, depois de ter escrito sobre pintura (Bacon) e sobre cinema, você retorna com uma abordagem mais clássica da filosofia. Você se reconheceria num tal caminho? É necessário reconhecera sua obra como um todo, uma unidade? Ou, ao contrário, você vê nela rupturas, transformações?
Gilles Deleuze - Três períodos, isso já estaria bem. Com efeito, eu comecei com livros de história da filosofia, mas todos os autores de que me ocupei tinham do meu ponto de vista alguma coisa em comum. E tudo isso tendia para a grande identidade Espinoza-Nietzsche.
A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva. É antes como a arte do retrato em pintura. Estes são retratos mentais, conceptuais. Como em pintura, é necessário fazer parecido, mas por meios que não são semelhantes, por meios diferentes: a semelhança deve ser produzida, e não um meio de reproduzir (nos contentaríamos aí em dizer novamente o que o filósofo disse). Os filósofos trazem novos conceitos, os expõem, mas não dizem, pelo menos completamente, a quais problemas estes conceitos correspondem. Por exemplo, Hume expõe um conceito original de crença, mas não diz porque, nem como o problema do conhecimento se coloca de forma a que o conhecimento seja um modo determinável de crença. A história da filosofia deve, não redizer o que diz um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessariamente, o que ele não dizia mas que, no entanto, está presente naquilo que ele diz.
A filosofia consiste sempre em inventar conceitos. Eu nunca tive preocupações no que diz respeito a um ultrapassamento da metafísica ou uma morte da filosofia. A filosofia tem uma função que permanece perfeitamente atual, criar conceitos. Ninguém o pode fazer em seu lugar. Logicamente que a filosofia sempre teve seus rivais, desde os «rivais» de Platão até o bufão de Zaratustra. Hoje é a informática, a comunicação, a promoção comercial que se apropria das palavras «conceito» e «criativo», e estes «conceituadores» constituem uma raça insolente que exprime o ato de vender como pensamento supremo capitalista, o cogito da mercadoria.
A filosofia sente-se pequena e só perante tais potências, mas se lhe acontecer de morrer, pelo menos será de rir. A filosofia não é comunicativa, nem contemplativa ou reflexiva: ela é, por natureza, criadora ou mesmo revolucionária na medida em que não cessa de criar novos conceitos. A única condição é de que eles tenham uma necessidade, mas também uma estrangeiridade, e eles as têm na medida em que correspondem a verdadeiros problemas. O conceito é o que impede o pensamento de ser uma simples opinião, um conselho, uma discussão, uma conversa. Todo o conceito é forçosamente um paradoxo. Uma filosofia, tentamos fazê-la, Félix Guattari e eu, no Anti-Edipo e no Mille Plateaux, sobretudo no Mille Plateaux que é um livro grande e propõe muitos conceitos. Não colaboramos, fizemos um livro e depois um outro, não no sentido de uma unidade mas de um artigo indefinido. Cada um de nós tinha um passado e um trabalho precedente: ele em psiquiatria, em política, em filosofia, já rico em conceitos, e eu - com Diferença e Re-petição e Lógica do sentido. Mas não colaboramos como duas pessoas. Éramos mais como dois riachos que se juntam para fazer «um» terceiro, que éramos nós. No fim de tudo, em «Filosofia» uma das questões sempre foi: como interpretar «filo»? Uma filosofia, isto foi então para mim um segundo período que eu não teria nunca começado e conseguido sem Félix.
Em seguida, suponhamos que haja um terceiro período onde se trata para mim de pintura e de cinema, de imagens aparentes. Mas estes são os livros de filosofia. E que o conceito, penso eu, comporta duas outras dimensões, as do percepto e do afeto. E isto que me interessa, e não as imagens. Os perceptos não são percepções, são conjuntos de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que as experimentam. Os afetos não são sentimentos, são estes devires que desbordam o que passa por eles (ele torna-se outro). Os grandes romancistas ingleses e americanos escrevem muitas vezes por perceptos, e Kleist e Kafka, por afetos. O afeto, o percepto e o conceito são três potências inseparáveis, elas vão da arte à filosofia e inversamente. O mais difícil, evidentemente, é a música. Há um esboço de análise no Mille Plateaux: o rittornello comporta as três potências. Tentamos fazer do rittornello um dos nossos conceitos fundamentais, em relação com o território e com a terra, o pequeno e o grande rittornello. Finalmente, todos estes períodos se prolongam e se misturam, vejo-os melhor agora neste livro sobre Leibniz e sobre a Prega. Será melhor dizer o que pretendo fazer em seguida.
R.B e F.E - Não há pressa. Poderíamos, primeiro, falar sobre a sua vida? Não haverá uma relação qualquer entre bibliografia e biografia?
G.D - As vidas dos professores raramente são interessantes. Certamente existem as viagens, mas os professores pagam suas viagens com palavras, experiências, colóquios, mesas - redondas, falar, sempre falar. Os intelectuais têm uma cultura formidável, têm opinião sobre tudo. Eu não sou um intelectual porque não tenho cultura disponível, nenhuma reserva. O que sei, o sei somente pelas exigências de um trabalho atual, e se aí quiser voltar alguns anos depois terei que reaprender tudo. É muito agradável não ter opinião, nem idéias sobre tal ou tal ponto. Não sofremos de incomunicação mas, ao contrário, de todas as forças que nos obrigam a nos exprimir quando não temos grande coisa a dizer. Viajar é dizer qualquer coisa noutro lugar e voltar para dizer qualquer coisa aqui. A menos que não se volte, que se fique morando por lá. Eu também não sou muito inclina-do a viajar, é preciso não mexer demais, para não assustar os devires. Fui tocado por uma frase de Toynbee: «Os nômades são os que não se mexem, eles tornam-se nômades porque se recusam a partir».
Se você me quiser aplicar os critérios de bibliografia-biografia, posso dizer que escrevi o meu primeiro livro bastante cedo, e depois mais nada durante oito anos. Sei, no entanto, o que fazia, onde e como vivia durante esses anos, mas o sei abstratamente, como se um outro me contasse as lembranças nas quais acredito, mas que verdadeira-mente não tenho. E como um buraco na minha vida, um buraco de oito anos. E isto que me parece interessante nas vidas, os buracos que elas comportam, as lacunas, por vezes dramáticas e por vezes não. A maior parte das vidas comporta catalepsias ou espécies de sonambulismo sobre vários anos. E talvez nestes buracos que se faz o movi-mento, já que a questão é realmente saber como se faz o movimento, como perfurar o muro, para parar de bater com a cabeça. Talvez se trate de não mexer demais, de não falar demais: evitar os falsos movimentos, residir lá onde não há mais memória. Existe uma bela no-vela de Fitzgerald: alguém que passeia na cidade com um buraco de dez anos.
R.B e F.E - Esta crítica da palavra, você a faz notadamente sobre a televisão. Você falou sobre este assunto no prefácio que fez ao livro de Serge Dancy, Ciné-Journal. Mas, como é que o filósofo se comunica, como se deve comunicar? Os filósofos posteriores a Platão escrevem livros, exprimem-se pelo livro. Isto não mudou até os dias de hoje, onde, no entanto, vemos distinguirem-se dois tipos entre os que nomeamos ou que se nomeiam filósofos: há os que ensinam, que continuam ensinando, que ocupam uma cadeira universitária e que julgam isto importante. Há os que não ensinam, que talvez se recusem mesmo a ensinar, mas que procuram ocupar os meios de comunicação: os «novos filósofos». Parece necessário colocá-lo na primeira categoria - você fez mesmo um «trato» contra os «novos filósofos». O que é dar um curso para você? O que há neste exercício de insubstituível?
G.D - Os cursos foram toda uma parte da minha vida, eu os fiz com paixão. Isto não é de forma alguma o mesmo que conferências, porque eles implicam uma longa duração e um público relativamente constante, por vezes durante vários anos. E como um laboratório de pesquisas: faz-se cursos sobre o que se pesquisa e não sobre o que se sabe. É preciso preparar-se durante muito tempo para ter alguns minutos de inspiração. Fiquei contente em parar quando vi que era necessário preparar-se cada vez mais para ter somente uma inspiração mais dolorosa. E o futuro é sombrio uma vez que se torna cada vez mais difícil fazer pesquisa nas universidades francesas.
Os cursos são uma espécie de Sprechgesang, mais próximos da música que do teatro. Nada se opõe a que um curso seja um pouco como um concerto de rock. E necessário dizer que Vincennes (e isto continuou depois que fomos violentamente transferidos para Saint-Denis) reunia condições excepcionais. Em filosofia recusamos o princípio da «progressividade dos conhecimentos»: um mesmo curso se dirigia a estudantes de primeiro e último ano, a estudantes e a não-estudantes, a filósofos e a não-filósofos, a jovens e a velhos, e a pessoas de várias nacionalidades. Havia sempre jovens pintores ou musicistas, cineastas, arquitetos que demonstravam uma grande exigência de pensamento. Eram longas sessões, ninguém escutava tudo, mas cada um pegava aquilo de que tinha necessidade ou vontade, com o qual tinha alguma coisa para fazer, mesmo distante da sua disciplina. Houve um período de intervenções diretas, muitas vezes esquizofrênicas, depois veio a época dos cassetes, com os vigias de cassetes mas mesmo aí as intervenções se faziam de uma semana para a outra, sob forma de pequenos bilhetes, por vezes anônimos.
Nunca disse a este público o que ele foi para mim, o que ele me deu. Nada se parecia jamais a discussões, e a filosofia não tem estritamente nada a ver com uma discussão, já se tem bastante dificuldade em compreender qual o problema que alguém coloca e como o coloca, é preciso somente enriquecê-lo, variar as condições, juntar, ligar, nunca discutir. Era como uma câmara de ecos, um círculo, onde uma idéia voltava como se ela tivesse passado por vários filtros. Foi aí que compreendi a que ponto a filosofia tinha necessidade, não somente de compreensão filosófica, por conceitos, mas de uma compreensão não-filosófica, a que opera por perceptos e afetos. Ambos são necessários. A filosofia está numa relação essencial e positiva com a não-filosofia: ela dirige-se diretamente aos não-filósofos. Peguem o caso mais espantoso, Espinoza: é o filósofo absoluto e a Ética é o grande livro do conceito. Mas, ao mesmo tempo, o filósofo mais puro é aquele que se dirige estritamente a toda a gente: não importa quem pode ler a Ética, ela se deixa penetrar suficientemente por es-te vento, este fogo. Ou então Nietzsche. Aí existe, ao contrário, um excesso de saber que mata o vivo na filosofia. A compreensão nãofilosófica não é insuficiente ou provisória, ela é uma das duas metades, uma das duas ajudas.
R.B e F.E - No prefácio de Diferença e Repetição você diz: «Está chegando o tempo onde não será praticamente mais possível escrever um livro de filosofia como se tem feito desde há muito tempo». Você acrescenta que a pesquisa de novos meios de expressões filosóficas, inaugurada por Nietzsche, deve ser continuada em relação com o desenvolvimento de «certas outras artes», como o teatro ou o cinema. Você cita Borges como modelo analógico de um tratamento da história da filosofia (como o fazia já Foucault em relação à sua própria atitude na introdução de As Palavras e as Coisas). Doze anos mais tarde, você diz dos quinze ««plateux»» de Mille Plateaux: podemos quase lê-los independentemente uns dos outros, somente a conclusão deve ser lida no final, ao longo de toda a conclusão se pegariam, numa roda louca, os números dos «plateaux» que a precedem. Como que por vontade de dever assumir ao mesmo tempo a ordem e a desordem, sem cedera nenhuma. Como você vê hoje esta questão de estilo da filosofia, da arquitetura, da composição de um livro de filosofia? E, deste ponto de vista, que significa escrever a dois? Escrever a dois, eis o que é excepcional na história da filosofia, tanto mais que não se trata de um diálogo. Como, porque escrevera dois? Como vocês procederam? Que exigência tinham em vocês mesmos? Quem é então o autor destes livros? Ou será que eles têm mesmo um autor?
G.D - Os grandes filósofos são também grandes estilistas. O estilo em filosofia é o movimento do conceito. Certamente que este não existe fora das frases, mas as frases não têm outro objetivo senão lhe dar vida, uma vida independente. O estilo é uma variação na língua, uma modulação, e uma tensão de toda a linguagem para o exterior. Em filosofia é como num romance: deve-se perguntar «o que é que vai acontecer?», «o que é que se passou?», somente os personagens são conceitos, e os meios, as paisagens, são espaços-tempos. Escreve-se sempre para dar a vida, para libertar a vida lá onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga. Para isto, é preciso que a linguagem não seja um sistema homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre heterogêneo: o estilo aqui rompido das diferenças de potenciais entre as quais qualquer coisa pode passar, se passar, surgir um clarão que saia da própria linguagem, e que nos faça ver e pensar o que permaneceria na sombra à volta das palavras, estas entidades de que apenas supomos a existência. Duas coisas se opõem ao estilo: uma língua homogênea, ou ao contrário quando a heterogeneidade é tão grande que se torna indiferença, gratuidade, e que nada de preciso passa entre os pólos. Entre uma principal e uma subordinada deve haver uma tensão, uma espécie de ziguezague, mesmo e sobretudo quando a frase tem um aspecto perfeitamente correto. Há um estilo quando as palavras produzem um clarão que vai de umas às outras, mesmo muito afastadas.
A partir daí, escrever a dois não causa nenhum problema especial, pelo contrário. Haveria aí problema se fôssemos exatamente duas pessoas, cada uma tendo a sua vida própria, suas opiniões próprias, e se propondo a colaborar e a discutir com o outro. Quando eu dizia que Félix e eu éramos antes como riachos queria dizer que a individuação não é necessariamente pessoal. Não estamos completamente seguros de sermos pessoas: uma brisa, um dia, uma hora do dia, um riacho, um lugar, uma batalha, uma doença ou uma individualidade não-pessoal. Eles têm nomes próprios. Nós os chamamos de «estidades». Eles se compõem como dois ribeiros, dois riachos. São eles que se exprimem na linguagem e aí rompem as diferenças, mas é a linguagem que lhes dá uma vida própria individual, e faz acontecer alguma coisa entre eles. Fala-se como todos ao nível da opinião, e diz-se «eu», eu sou uma pessoa, como se diz «o sol nasce». Mas nós não temos certeza disso, não é certamente um bom conceito. Félix e eu, e muitas outras pessoas como nós, não nos sentimos exatamente como pessoas. Temos antes uma individualidade de acontecimentos, o que não é de maneira nenhuma uma fórmula ambiciosa, já que as estidades podem ser modestas e microscópicas. Em todos os meus livros procurei a natureza do acontecimento, é um conceito filosófico, o único capaz de destruir o verbo ser e o atributo. Escrever a dois torna-se perfeitamente normal sob este ponto de vista. E suficiente que qualquer coisa passe, uma corrente que só carrega o nome próprio. Mesmo quando se escreve só, isto acontece sempre com um outro qualquer, que nem sempre é nominável.
Na Lógica do sentido, tentei uma espécie de composição serial. Mas Mille Plateaux é mais complexo: é que plateaux não é uma metáfora, são zonas de variação contínua, ou como voltas onde em cada uma se vigia ou sobrevoa uma região, e se fazem sinais uns aos outros. É uma composição indiana ou genovesa. E aí, me parece, que estamos mais próximos de um estilo, ou seja, de uma politonalidade.
R.B e F.E - A literatura está presente em toda a parte do seu trabalho, quase que de forma paralela à filosofia: a Apresentação de Sacher-Masoch, o pequeno livro sobre Proust (que não parou de ser enriquecido), uma grande parte da Lógica do sentido, tanto no corpo do livro (sobre Lewis Carroll) como nos anexos (sobre Klossowski, Michel Tournier, Zola), o livro sobre Kafka escrito com Guattari no prolongamento de O Anti-Edipo, um capítulo dos seus Dialogues com Claire Parnet (sobre a «superioridade da literatura anglo-americana»), fragmentos consideráveis de Mille Plateaux. A lista é longa. Mas isto não produz nada de comparável ao que fazem, em maior grau, os seus livros sobre cinema, e, em menor, a Logique de Ia sensation, ou seja, a partir do trabalho de um só pintor: ordenar, racionalizar uma forma de arte, um plano de expressão. Será que a literatura está demasiadamente próxima da filosofia, da sua expressão mesma, deforma que não pode senão acompanhar por inflexões o todo do seu movimento? Ou isto é devido a outras razões?
G.D - Não sei, não me parece que aí exista essa diferença. Eu teria sonhado com um conjunto de estudos sem título geral,Critique et Clinique. Isto não quer dizer que os grandes autores, os grandes artistas sejam doentes mesmo que sublimes, nem que se procure neles a marca de uma neurose ou de uma psicose como um segredo na sua obra, a chave da sua obra. Não são doentes, é exatamente o contrário, são médicos, bastante especiais. Por que Masoch dá o seu nome a uma perversão tão velha quanto o mundo? Não porque ele «sofra dela», mas porque ele lhe renova os sintomas, ele traça dela um quadro original fazendo do contrato o signo principal, e também ligando as condutas masoquistas à situação das minorias étnicas e ao papel das mulheres nestas minorias: o masoquismo torna-se um ato de resistência, inseparável de um sentimento das minorias. Masoch é um grande sintomatologista. Em Proust não é a memória que é explorada, são todas as espécies de signos, dos quais se torna necessário descobrir a natureza a partir do meio, o modo de emissão, a matéria, o regime. La Recherche é uma seriologia geral, uma sintomatologia dos mundos. A obra de Kafka é o diagnóstico de todas as potências diabólicas que nos esperam. Nietzsche o dizia, o artista e o filósofo são médicos da civilização. E forçoso que, se for o caso, eles não se interessem muito pela psicanálise. Há na psicanálise uma tal redução do segredo, uma tal incompreensão dos signos e dos sintomas, tudo se reduzindo ao que Lawrence chamava de «o pequeno segredo sujo».
Não é somente um caso de diagnóstico. Os signos reenviam aos modos de vida, às possibilidades de existência, são os sintomas de uma vida em jorro ou vazia. Mas o artista não pode se contentar com uma vida vazia, nem com uma vida pessoal. Não se escreve com o seu eu, sua memória ou suas doenças. No ato de escrever, há a tentativa de fazer da vida algo mais do que pessoal, de libertar a vida do que a aprisiona. O artista ou o filósofo têm muitas vezes uma saúde frágil, um organismo frágil,um equilíbrio mal assegurado, como Espinoza, Nietzsche, Lawrence. Mas não é a morte que os quebra, é antes o excesso de vida que viram, que experimentaram, que pensaram. Uma vida demasiadamente grande para eles, mas é por eles que «o signo está próximo»: o final de Zaratustra, o quinto livro da Ética. Escreve-se em função de um périplo futuro que ainda não tem linguagem. Criar não é comunicar mas resistir. Há um laço profundo entre os signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. E a potência de uma vida não-orgânica, aquela que ele pode captar numa linha de desenho, de escrita, de música. São estes organismos que morrem, não a vida. Não há nenhuma obra que não indique uma abertura para a vida, que não trace um caminho entre os pavimentos. Tudo o que eu escrevi era vitalista, pelo menos assim o espero, e constituía uma teoria dos signos e do acontecimento. Não creio que o problema se coloque de forma diferente na literatura e nas outras artes, simplesmente não tive ocasião de fazer para a literatura o livro que eu desejaria.
R.B e F.E - A psicanálise percorre ainda, servindo de base mais ou menos nítida, mesmo se de forma singular, Diferença e Repetição e Lógica do sentido. A partir de O Anti-Édipo, primeiro volume de Capitalismo e esquizofrenia, ela torna-se claramente o inimigo a abater. Mas, mais profundamente ainda, ela passa a ser, desde aí, a visão por excelência do que é necessário se desfazer para poder pensar qualquer coisa nova, quase que para poder pensar de novo. Como é que isto se passou? E por que O Anti- Edipo foi o primeiro grande livro filosófico da conjuntura de maio de 68, talvez o seu primeiro verdadeiro manifesto filosófico? Este livro diz claramente, e logo no início, que o futuro não está numa síntese freudomarxista qualquer. Ele liberta de Freud (de Lacan e suas estruturas), como se pode acre-ditar que os «novos filósofos» se libertarão em breve de Marx (e da Revolução). Como você entenderia isto que aparece como uma singular analogia?
G.D - É curioso, não fui eu que tirei Félix da psicanálise, foi ele que me tirou a mim. No meu estudo sobre Masoch e depois na Lógica do sentido, eu acreditava ter resultados sobre a falsa unidade sadomasoquista, ou então sobre o acontecimento, que não estavam de acordo com a psicanálise, mas que podiam se conciliar com ela. Ao contrário, Félix era e continuava a ser psicanalista, aluno de Lacan mas à maneira de um «filho» que já sabia que não havia conciliação possível. O Anti-Édipo é uma ruptura que se faz sozinha a partir de dois temas: o inconsciente não é um teatro mas uma fábrica, uma máquina de produção; o inconsciente não delira sobre o papai-mamãe, ele delira sobre as raças, as tribos, os continentes, a história e a geografia, sempre um campo social. Nós procurávamos uma concepção imanente, um uso imanente das sínteses do inconsciente, um produtivismo ou construtivismo do inconsciente. Então nos apercebemos que a psicanálise não tinha nunca compreendido o que queria dizer um artigo indefinido (uma criança...), um tornar-se (tornar-se animal, as relações com o animal), um desejo, um enunciado. O nosso último texto sobre a psicanálise é a propósito do Homem dos lobos, no Mille Plateaux. como ela é incapaz de pensar o plural ou o múltiplo, uma matilha e não um único lobo, um ossário e não um osso único.
A psicanálise nos parecia uma empresa fantástica para aprisionar o desejo em impasses, e para impedir as pessoas de dizerem o que elas tinham para dizer. Era um empreendimento contra a vida, um canto de morte, lei e castração, uma sede de transcendência, uma ordenação, uma psicologia (no sentido em que não há outra psicologia senão a do padre). Se este livro teve importância depois de 68, é com efeito porque ele rompia com as tentativas freudo-marxistas: não procurávamos distribuir nem conciliar os níveis, mas, pelo contrário, colocar sobre um mesmo plano uma produção que era ao mesmo tempo social e desejante, a partir de uma lógica dos fluxos. O delírio operava no real, não conhecíamos outro elemento que não o real, o imaginário e o simbólico pareciam-nos falsas categorias.
O Anti-Édipo era a univocidade do real, uma espécie de espinozismo do inconsciente. Ora, creio que 68 foi esta mesma descoberta. Os que tinham ódio de 68, ou que justificavam o descrédito, consideravam que era simbólico ou imaginário. Mas justamente nunca foi isso, era uma intrusão do real puro. Em todo caso, não vejo a menor analogia entre o empreendimento de O Anti-Édipo com relação a Freud e o dos «novos filósofos» com relação a Marx. Isso me espantaria. Se O Anti-Édipo pretende criticar a psicanálise, é em função de uma concepção de inconsciente que, boa ou má, ali está detalhada. Enquanto os novos filósofos, quando denunciam Marx, não fazem de modo algum uma nova análise do capital, que perde misteriosamente toda a sua existência com eles, eles denunciam as conseqüências políticas e éticas stalinistas que supõem decorrer a partir de Marx. Estão mais próximos daqueles que culpavam Freud de consequências imorais, o que não tem nada a ver com filosofia.
R.B e F.E - Você reivindica sempre a imanência: isto faz o seu pensamento parecer mais pessoal, é um pensamento sem falta e sem negação, que retira sistematicamente qualquer visão de transcendência, qualquer que seja a forma dela. Dá vontade de lhe perguntar: Isto é realmente verdadeiro, e como se torna possível? Tanto mais que, apesar desta imanência generalizada, seus conceitos permanecem sempre parciais e locais. Depois de Lógica do sentido, parece que você ficou preocupado em produzir uma bateria de conceitos em cada livro novo. Certamente que se observam migrações, recortagens. Mas, globalmente, o vocabulário dos livros sobre cinema não é o mesmo do de Logique de la sensation, que por sua vez não é o mesmo de Capitalismo e esquizofrenia etc. Como se, em lugar de se retomar para se precisar, se apurar, se complicar, se acumular em relação a eles mesmos, se assim se pode dizer, os seus conceitos devessem a cada vez formar um corpo próprio, um nível de invenção específico. Será que isto pressupõe que eles são inapropriados para qualquer retomada numa reformulação de conjunto? Ou será que se trata somente de produzir uma abertura máxima, sem prejudicar nada? E como isto se concilia com a imanência?
G.D - Montar um plano de imanência, traçar um campo de imanência, foi feito por todos os autores dos quais me ocupei (mesmo Kant quando denuncia o uso transcendente das sínteses, embora se limite à experimentação possível e não à experimentação real). O Abstrato não explica nada, deve ser ele mesmo explicado: não há universais, não há transcendência, não há Um, não há sujeito (nem objeto), não há Razão, há somente processos que podem ser de unificação, de subjetivação, de racionalização, mas nada mais. Estes processos operam em «multiplicidades» concretas, é a multiplicidade o verdadeiro elemento onde alguma coisa se passa. São as multiplicidades que povoam o campo da imanência, um pouco como as tribos povoam o deserto sem que ele deixe de ser um deserto. E o plano de imanência deve ser construído, a imanência é um construtivismo, cada multiplicidade assinalável é como uma região do plano. Todos os processos se produzem sobre um plano de imanência e numa multiplicidade assinalável: as unificações, subjetivações, racionalizações, centralizações não têm nenhum privilégio, trata-se muitas vezes de impasses ou de barreiras que impedem o crescimento da multiplicidade, o prolongamento ou o desenvolvimento das suas linhas, a produção do novo.
Quando se invoca uma transcendência, pára-se o movimento para introduzir uma interpretação no lugar de experimentar. Bellour demonstrou-o bem no caso do cinema, para o fluxo das imagens. E, com efeito, a interpretação faz-se sempre em nome de alguma coisa que é suposto faltar. A unidade, é precisamente isto que falta à multiplicidade, como o sujeito, é este que falta no acontecimento («chove»). Certamente que há fenômenos de falta, mas é em função de um abstrato, do ponto de vista de uma transcendência, que seria somente aquela de um Eu, cada vez que se está impedido de construir um plano de imanência. Os processos são os devires, e estes não se julgam pelo resultado final, mas pela qualidade do seu curso e a potência da sua continuação: assim os tornar-se animais, ou as individuações não-subjetivas. Foi neste sentido que opusemos os rizomas às árvores ou -antes os processos de arborização como sendo limites provisórios que parariam um momento o rizoma e sua transformação. Não existem universais, somente singularidades. Um conceito não é um universal, mas um conjunto de singularidades, onde cada uma se prolonga até a vizinhança da outra.
Retomemos o exemplo do rittornello como conceito: ele está em relação como território. Há rittornellos no território, e que o marcam; mas também quando se procura encontrá-lo e se tem medo da noite; e ainda quando se o deixa, «adeus, eu parto...». E já como três posições diferenciais. Mas aí é porque o rittornello exprime a tensão do território com qualquer coisa de mais profundo, que é a Terra. Seja, mas a Terra é ainda a Desterritorializada, ela é inseparável de um processo de desterritorialização que é o seu movimento aberrante. Eis aqui um conjunto de singularidades que se prolongam umas nas outras, é um conceito que reenvia como tal a um acontecimento: um lied. Um canto sobe, se aproxima e se afasta. E isto que acontece no plano da imanência: as multiplicidades o povoam, as singularidades se conectam, os processos ou os devires se desenvolvem, as intensidades sobem ou descem.
Eu concebo a filosofia como uma lógica das multiplicidades (neste aspecto me sinto próximo de Michel Serres). Criar conceitos é construir uma região do plano, juntar uma região às precedentes, explorar uma nova região, preencher a falta. O conceito é um com-posto, um conglomerado de linhas, de curvas. Se os conceitos se de-vem renovar constantemente, é exatamente porque o plano de imanência se constrói por região, tem uma construção local, de proximidade em proximidade. E por isto que eles atuam por rompantes: no Mille Plateaux cada capítulo deveria ser um tal rompante. Mas isto não quer dizer que não sejam objeto de retomadas e de sistematização. Pelo contrário, há aí uma repetição como potência do conceito: é a ligação de uma região à outra. E esta ligação é uma operação indispensável, perpétua, o mundo como uma manta de retalhos. A sua dupla impressão, de um só plano de imanência e portanto os conceitos sempre locais, é então exata. O que substitui para mim a reflexão é o construtivismo. E o que substitui a comunicação é uma espécie de expressionismo. O expressionismo em filosofia tem o seu ponto mais alto com Ezpinoza e Leibniz. Um conceito de Outro, eu pensei encontrá-lo definindo-o como não sendo nem um objeto nem um sujeito(um outro sujeito), mas a expressão de um mundo possível. Alguém que tem dor de dentes, mas também um japonês que anda na rua, experimentam mundos possíveis. E eis que falam: falam-me do Japão, e é mesmo o japonês que me fala do Japão ou então ainda ele fala japonês: a linguagem neste sentido confere uma realidade ao mundo possível enquanto possível (se eu for ao Japão, pelo contrário, não se trata mais do possível). Mesmo desta maneira bem sumária, a inclusão dos mundos possíveis no plano de imanência faz do expressionismo o complemento do construtivismo.
R.B e F.E - Mas de onde vem esta necessidade de criar conceitos novos? Haveria assim um «progresso» em filosofia? Como você definiria as suas ocupações, a sua necessidade e mesmo o seu «programa» atualmente?
G.D - Suponho que haja uma imagem de pensamento que varia muito, que tem variado muito na história. Por imagem de pensamento, não entendo o método mas algo mais profundo, sempre pressuposto, um sistema de coordenadas, de dinamismos, de orientações: o que significa pensar, «se orientar no pensamento». De qualquer forma, está-se sobre o plano da imanência, mas para aí estabelecer verticalidades, se restabelecer a si mesmo, ou, ao contrário, se estender, correr ao longo de uma linha do horizonte, empurrar o plano cada vez mais longe? E quais as verticalidades que nos dão qualquer coisa a contemplar, ou então que nos fazem refletir ou comunicar? A menos que seja necessário suprimir toda a verticalidade como transcendência, e nos deitarmos sobre a terra abraçando-a, sem olhar, sem reflexão, privados de comunicação? E temos nós ainda conosco o amigo ou estamos sós, Eu=Eu, ou somos nós amantes, ou outra coisa ainda, e quais os riscos de se trair a si mesmo, de ser traído ou de trair? Não há um momento em que é preciso desconfiar até do amigo? Que sentido dar ao «Philos» de filosofia. E o mesmo sentido em Platão e no livro de Blanchot, L' Amitié, já que se trata sempre do pensamento? Depois de Empédocles há toda uma dramaturgia do pensamento.
A imagem do pensamento é como que o pressuposto da filosofia, ela a precede, não se trata de uma compreensão não-filosófica, mas de uma compreensão pré-filosófica. Há várias pessoas para quem pensar é «discutir um pouco». Está certo que é uma imagem idiota, mas mesmo os idiotas têm uma imagem do pensamento, e é somente trazendo à luz estas imagens que se pode determinar as condições da filosofia. Então nós fazemos do pensamento a mesma imagem que Platão ou mesmo que Descartes ou Kant? A imagem não se transforma seguindo disciplinas imperiosas, que sem dúvida exprimem determinismos externos, mas ainda mais, um devir do pensamento? Podemos nós ainda pretender que procuramos o verdadeiro, nós que nos debatemos no não-sentido?
É a imagem do pensamento que guia a criação dos conceitos. Ela é como um grito, enquanto que os conceitos são cantos. À questão: Existe um progresso em filosofia? torna-se necessário responder um pouco como Robbe-Grillet para o romance: não há nenhuma razão para fazer filosofia como Platão a fez, não porque ultrapassamos Platão, mas, ao contrário, porque Platão não é ultrapassável e não há nenhum interesse em recomeçar o que ele fez para sempre. Só temos uma alternativa: ou a história da filosofia ou enxertar Platão em problemas que não são mais platônicos.
Este estudo das imagens da poesia, se chamaria noologia, seriam os prolegômenos da filosofia. E o verdadeiro objeto de Diferença e Repetição, a natureza dos postulados na imagem do pensamento. E estive obcecado por esta questão na Lógica do sentido, onde a altura, a profundidade e a superfície são coordenadas do pensamento; retomo-a em Proust e os signos, uma vez que Proust opõe toda a potência dos signos à imagem grega e depois nós a reencontramos, com Félix, em Mille Plateaux, porque o rizoma é a imagem do pensamento que se estende sob a das árvores. Nesta questão não temos um modelo, nem mesmo um guia, mas um referente, um cruzamento a operar sem cessar: é o estado dos conhecimentos sobre o cérebro.
Há uma relação privilegiada da filosofia com a neurologia, vêmo-lo nos associacionistas, em Schopenhauer ou Bergson. O que nos inspira hoje não são os computadores, é a microbiologia do cérebro: este apresenta-se como um rizoma, grama em vez de uma árvore, an uncertain system(N.T) com mecanismos probabilitários, semialeatórios, quânticos. Não se trata de pensarmos a partir do conhecimento que temos do cérebro, mas de um pensamento totalmente novo marcado no cérebro das suturas desconhecidas, que o torce, o dobra ou o fende. Milagre de Michaux a este respeito. Novas conexões, novas freagens, novas sinapses, é o que a filosofia mobiliza criando conceitos, mas é também toda uma imagem onde a biologia do cérebro descobre com os seus meios próprios a semelhança material objetiva ou os materiais de potência.
O que me interessa no cinema é que o écran possa ser um cérebro, como no cinema de Resnais ou de Syberberg. O cinema não procede unicamente com encadeamentos por cortes racionais, mas com desencadeamentos sobre cortes irracionais: não é a mesma imagem do pensamento. O que havia de interessante no início dos vídeos era a impressão que alguns davam de operar por conexões e hiatos que não eram mais os da véspera, mas também não os do sonho nem mesmo do pesadelo. Um instante, e eles afloraram qualquer coisa que estava no pensamento. E tudo o que quero dizer: uma imagem secreta do pensamento inspira pelos seus desenvolvimentos, bifurcações e mutações a necessidade constante de criar novos conceitos, não em função de um determinismo externo mas em função de um devir que leva consigo os próprios problemas.
R.B e EE - O seu livro anterior era consagrado a Foucault. Tratava-se de história da filosofia? Por que Foucault? Quais as relações que as suas duas filosofias têm uma com a outra? Já em Foucault você introduziu a noção de prega. Existe uma relação Foucault-Leibniz?
G.D - Foucault é um grande filósofo, e também um espantoso estilista. Ele recortou de outra forma o saber e o poder e encontrou entre eles relações específicas. Com ele a filosofia tomou um sentido novo. Depois ele introduziu o processo de subjetivação como terceira dimensão dos «dispositivos», como terceiro termo distinto que recoloca os saberes e remaneja os poderes: ele abre assim toda uma teoria e uma história dos modos de existência, a subjetivação grega, as subjetivações cristãs... seu método repudia os universais e descobre os processos sempre singulares que se produzem nas multiplicidades. O que mais me influenciou foi a sua teoria do enunciado, porque ela implica uma concepção da linguagem como conjunto heterogêneo em desequilíbrio, e permite pensar a formação de novos tipos de enunciados em todos os domínios. A importância de sua obra «literária», de crítica literária e artística, só irá aparecer quando os artigos forem reunidos; um texto como La Vie des hommes infiâmes é uma obra-prima de comicidade e de beleza, existindo em Foucault qualquer coisa que está muito próxima de Tchekhov.
O livro que eu fiz não é de história da filosofia, é um livro que eu gostaria de ter feito com ele, com a idéia que eu tinha dele e a minha admiração por ele. Se este livro pudesse ter tido um valor poético, teria sido o que os poetas chamam de «túmulo». As minhas diferenças são muito secundárias: o que ele chamava de dispositivo, e que Félix e eu chamamos de agenciamento, não tem as mesmas coordenadas, já que ele constituía seqüências históricas originais enquanto que nós damos mais importância aos componentes geográficos, territorialidades e movimentos de desterritorialização. Nós sempre gostamos de uma história universal, o que ele detestava. Mas para mim era uma confirmação indispensável poder seguir o que ele fazia. Ele foi muitas vezes mal compreendido, o que não o aborrecia mas o perturbava. Ele dava medo, que é o mesmo que dizer que ele impedia somente pela sua existência a impudicícia dos imbecis. Foucault preenchia a função da filosofia definida por Nietzsche, «aborrecer a estupidez». Nele o pensamento é como que um mergulho que sempre traz alguma coisa à luz. E um pensamento que é feito de pregas, e de repente se solta como uma mola. No entanto não creio que Leibniz tenha tido uma influência particular sobre ele. Mas uma frase de Leibniz assenta-lhe particularmente bem: «Eu me acreditava chegando ao porto, e me encontrava atirado em pleno mar». Os pensa-dores como Foucault atuam por crises, espasmos, há neles qualquer coisa de sísmico.
A última via aberta por Foucault é extremamente rica: os processos de subjetivação não têm nada a ver com a «vida privada», mas designam a operação pela qual os indivíduos ou as comunidades se constituem como sujeitos, à margem dos saberes constituídos e dos poderes estabelecidos, que passam a dar lugar a novos saberes e no-vos poderes. E por isso que a subjetivação vem em terceiro, sempre em «destacado», numa espécie de prega, repregueamento ou pregueamento. Foucault assinala nos gregos o primeiro movimento de subjetivação, pelo menos no Ocidente, quando o homem libertado supõe que deve ser «mestre de si mesmo» se quiser ser capaz de comandar os outros. Mas as subjetivações são muito diversas, e daí o interesse de Foucault pelo cristianismo: este seria atravessado por alguns processos individuais (anacoretas) ou coletivos (ordens, comunidades), sem falar das heresias e das estruturas, e a regra não seria mais o controle de si. Talvez seja mesmo preciso dizer que, em muitas formações sociais, não são os mestres, mas antes os excluídos da sociedade que constituem os lugares de subjetivação: por exemplo, o escravo libertado que se queixe de ter perdido todo o status social na ordem estabelecida, e que estará na origem de novos poderes. O lamento tem uma grande importância não só poética, mas histórica e social, porque ele exprime um movimento, de subjetivação («Pobre de mim...»): há toda uma subjetivação elegíaca. O sujeito nasce nas lamentações tanto quanto na exaltação. Foucault estava fascinado pelos movimentos de subjetivação que se desenham hoje nas nossas sociedades: quais são os processos modernos que estão produzindo a subjetividade? Então, quando se fala de um retorno ao sujeito em Foucault, é porque não se está vendo de forma alguma o problema que ele coloca. Aí, também, não vale a pena discutir.
R.B e F.E - Com efeito, vêem-se bem em O Anti-Édipo pedaços da história universal, com a distinção das sociedades codificadas, dos estados sobrecodificantes, e do capitalismo que descodifica os fluxos. Depois, no Mille Plateaux, você retoma este tema e introduz uma oposição das máquinas de guerra nômades e dos Estados sedentários: você propõe uma «nomadologia». Mas será que existem posições políticas daí decorrentes? Você fez parte do G.I.P.(NT) com Foucault, você apoiou a candidatura de Coluche; você tomou posição a favor da Palestina. Mas depois de 68 você parece mais «silencioso», muito mais que Guattari. Você ficou afastado do movimento dos direitos humanos, da filosofia do Estado de direito. Isto é por escolha, reticências, decepção? Não há um papel do filósofo na cidade?
G.D - Se trata de reconstituir transcendências ou universais, de restabelecer um sujeito de reflexão portador de direitos, ou de instaurar uma intersubjetividade de comunicação, não se trata de uma grande invenção filosófica. Querem fundar um «consenso», mas o consenso é uma regra ideal que não tem nada a ver com a filosofia. Dir-se-ia uma filosofia-promoção, muitas vezes dirigida contra a U.R.S.S. Ewald mostrou como os direitos do homem não se contentavam com um sujeito de direito, mas colocavam problemas jurídicos bastante interessantes. E, em muitos casos, os Estados que espezinham os direitos do homem são uma espécie de excrescências ou dependências daqueles que deles reclamam, que se diriam duas funções complementares.
Não se pode pensar o Estado senão em relação com aquilo que o ultrapassa, o mercado mundial único, e com aquilo que ele ultra-passa, as minorias, os devires, as «pessoas». E o dinheiro que reina naquilo que o ultrapassa, é ele que comunica, e o que nos falta atual-mente não é certamente uma crítica ao marxismo, é uma teoria moderna do dinheiro que fosse tão boa quanto a de Marx e que a prolongasse (os banqueiros estariam mais aptos a fornecer elementos que os economistas, se bem que o economista Bernard Schmitt tenha avançado neste domínio). E, naquilo que ele ultrapassa, são os devires que escapam ao controle, as minorias que não cessam de ressuscitar e de levantar a cabeça. Os devires não são de forma alguma a mesma coisa que a história: mesmo estrutural, a história pensa geralmente em termos de passado, presente e futuro. Dizem-nos que as revoluções acabam mal, que o seu futuro engendra monstros: é uma velha idéia, não se esperava Stalin, e era verdadeiro de Napoleão, de Cromwell. Quando se diz que as revoluções têm um mau futuro, ainda nada se disse sobre o devir revolucionário das pessoas. Se os nômades nos interessaram tanto foi porque eles são um devir, e não fazem parte da história: eles estão excluídos dela, mas se metamorfoseiam para reaparecer em qualquer lugar sob formas inesperadas nas linhas de fuga do campo social. Esta é mesmo uma de nossas diferenças com Foucault: para ele o campo social era atravessado por estratégias, para nós ele foge por todo lado. Maio de 68 foi um devir fazendo uma irrupção na história, e é por isto que a história o compreendeu tão mal, e a sociedade histórica tão mal o assimilou.
Falam-nos do futuro da Europa, da necessidade de colocar de acordo os bancos, as seguradoras, as empresas, as polícias, consenso, consenso, mas, os devires das pessoas, a Europa prepara-nos estranhos devires como novos 68? O que é que as pessoas vão se tornar? E uma questão cheia de surpresas, que não é a do futuro, mas a do atual ou intempestivo. Os palestinos são o intempestivo do Oriente Médio, que levam ao ponto mais alto a questão do território. Nos Estados de não-direito, o que conta é a natureza dos processos de libertação, forçosamente nômades. E nos Estados de direito, não são os direitos adquiridos e codificados, mas tudo o que causa atualmente problema para o direito e pelos quais o adquirido se arrisca sempre a ser colocado em questão. Não nos faltam tais problemas, atualmente o código civil tende a rebentar por todos os lados e o código penal conhece uma crise igual à das prisões. O que é criador de direito não são os códigos ou as declarações, mas a jurisprudência. A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, prolongamento de singularidades. Certamente que tudo isto pode levar a tomadas de posição caso tenha-se algo a dizer. Mas hoje não é suficiente «tomar posição», mesmo concretamente. Seria preciso um mínimo de controle sobre os meios de expressão. Senão, voltamos rapidamente a encontrar-nos na televisão respondendo a questões idiotas, ou num face a face, num costa a costa, «discutindo um pouco». Participar então na produção da emissão? É difícil, é um ofício, nós não somos mesmo mais os clientes da televisão, os seus verdadeiros clientes são os anunciantes, os famosos liberais. Não seria divertido se os filósofos fossem financiadores, que eles estivessem cheios de máscaras sobre suas roupas, mas talvez isto já esteja feito. Fala-se de uma demissão dos intelectuais, mas como se exprimiriam eles com meios universais que são uma ofensa a todo o Pensamento? Eu creio que a filosofia não tem falta de público nem de propagação, mas é como um estado clandestino do pensamento, um estado nômade. A única comunicação que poderíamos desejar, como perfeitamente adaptada ao mundo moderno, é o modelo de Adorno, a garrafa lançada ao mar, ou o modelo nietzschiano, a flecha lançada por um pensador e apanhada por outro.
R.B e F.E - Le pli, consagrado a Leibniz (mesmo se o seu nome só vem em subtítulo e com um tema: «Leibniz e o barroco»), parece reatar com uma longa série dos seus livros consagrados às figuras de filósofos: Kant, Bergson, Nietzsche, Espinoza. E, no entanto, sente-se bem que é muito mais um livro de que um livro sobre. Ou antes que é, de uma forma espantosa, os dois ao mesmo tempo, sobre Leibniz e o todo do seu pensamento, mais do que nunca inteiramente presente. Como você sente esta coincidência? Dir-se-ia que este livro reintegra, por cumplicidade com os conceitos de Leibniz, séries de conceitos vindos de outros livros seus, reunindo um pouco todos os dados de uma forma muito leve, para produzir um novo dado de caráter mais global.
G.D - Leibniz é fascinante porque talvez nenhum outro filósofo tenha criado mais do que ele. São noções extremamente bizarras aparentemente, quase loucas. A sua unidade parece abstrata, do tipo «o predicado está no sujeito», somente o predicado não é um atributo, é um acontecimento, e o sujeito não é um sujeito, é um invólucro. Há aí, no entanto, uma unidade concreta do conceito, uma operação ou uma construção que se reproduz neste plano, a Prega, as pregas da terra, as pregas do organismo, as pregas na alma. Tudo se pregueia, se despregueia, se repregueia em Leibniz,apercebemo-nos das pregas, e o mundo é pregueado em cada alma que despregueia tal ou tal região conforme a ordem do espaço e do tempo (harmonia). Rapidamente, pode-se pensar a situação não-filosófica a que Leibniz nos remete como uma capela barroca «sem porta nem janela» onde tudo é interior, ou como uma música barroca que extrai a harmonia da melodia. É o Barroco que eleva a prega ao infinito, vemo-lo nos quadros de Greco, nas esculturas de Bernin, e que nos abre uma compreensão não-filosófica por perceptos e afetos.
Este livro e para mim ao mesmo tempo uma recapitulação e um seguimento. E necessário seguir Leibniz ao mesmo tempo nos seus grandes discípulos filósofos (é sem dúvida o filósofo que teve mais discípulos criadores), mas também nos artistas que dele razem eco mesmo sem saberem, Mallarmé, Proust, Michaux, Hantaí, Boulez, todos os que elaboram um mundo de pregas e despregueados. Tudo isto é um cruzamento, uma conexão múltipla. A prega está longe de ter hoje esgotado todas as suas potências, é um bom conceito filosófico. Eu fiz este livro nesse sentido, e ele me deixou livre para o que eu queria naquele momento. Queria fazer um livro sobre o que é filosofia? com a condição que fosse breve. E também Guattari e eu queríamos retomar o nosso trabalho comum, uma espécie de filosofia da Natureza, no momento em que toda a diferença se atenua entre a natureza e o artifício.Tais projetos bastam a uma velhice feliz.
* Escritor e jornalista francês
** Professor e escritor francês, jornalista de «Magazine Litteraire»
Artigo extraído da revista “Magazine Littéraire”, no 257, set./1988.
Tradução do francês por Ana Sacchetti
NOTAS DO TRADUTOR
(1) Em inglês no texto original: «um sistema incerto»
(2) G.I.P. -Groupe d'ê Information sur les Prisons (Grupo de Informação sobre as Prisões)
cooperação.sem.mando

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