DIVULGAÇÃO: Da ofensiva em ofensas

hypomnemata 127
Em: http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=153

Boletim eletrônico mensal

do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária

do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP

no. 127, novembro de 2010.

Da ofensiva em ofensas

Mais de quatro anos após a paralisação da cidade de São Paulo pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), por meio de levante nas prisões e ações localizadas em diversos pontos da cidade, o Rio de Janeiro passa por mais um confronto entre o tráfico de drogas e governos que muitos analistas, afoitamente, tratam como similar.

Deslocamentos surpreendentes pelas favelas acompanhados de tiroteios cinematograficamente registrados pelas televisões são intercalados por registros de incêndios a veículos pelas ruas e avenidas. A população favelada, também chamada de comunidade, zanza entre balas, câmeras, ruelas e posa diante de cartazes pedindo paz, saudando policiais e militares com seus equipamentos de guerra.

Não há notícias de rebeliões nas prisões. Comunica-se que as lideranças do tráfico comandam as ações de dentro das cadeias, e dizem que no Rio de Janeiro o controle do tráfico ainda não está unificado. Sob estas condições, a comparação é irrelevante!

O morro já tem vez...

O Morro do Alemão recebe do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), desde 2008, investimentos em torno de 500 milhões. Em 21 de novembro noticiou-se o início da segunda fase de sua implantação na área, com o lançamento da 1ª Feira do Empreendedorismo, em parceria com a ONG Instituto Dialog, para abertura de iniciativas privadas e públicas nos ramos do comércio e de serviços.

O processo de reforma do espaço entrou em nova fase, na qual o combate aos traficantes pelos agentes estatais se tornou imperativo.

Desta maneira, os episódios da semana não deixam de estar relacionados a uma batalha estratégica para a continuidade do programa. Para se atingir o sucesso na implementação do PAC na região, passou a ser inevitável expulsar da área os traficantes e as milícias.

Por conseguinte, as ações dos traficantes ganharam inteligibilidade. Suas organizações viram-se obrigadas a reagir e estão forçadas a redefinir suas estratégias e atuações.

Para onde os traficantes irão, como se reorganizarão, como continuará fluindo o tráfico? Estas questões demandam tempo para situar respostas. Entretanto, sabe-se que o tráfico não cessará! Sabe-se, também, que o PAC no Complexo do Alemão precisa prosseguir, e que as batalhas tendem a continuar pelas favelas do Rio de Janeiro.

Da guerra por outros meios...

As atuais manobras de guerra nos morros revelam bem a importância dos combates regulares vencedores na formação da conduta da população favelada, renovada com o título de comunidade. Como numa operação de guerra de libertação, as forças armadas esperam pela adesão, consentimento e gratidão da população.

Esse tipo de ação libertadora possibilita às polícias e demais forças armadas exercitarem seus contingentes de maneira solidária, incluindo táticas de combates à guerrilha, testes com equipamentos, tecnologias de informações e exibição de seu aparato de combate.

Suas manobras dirigidas a alvo específico — os traficantes —, fortalecem na população a crença na corporação limpa de corruptos e que luta por ela e com ela. Não a vê mais como inimiga, mas como simpática parceira, na voluntária proximidade endogâmica que as torna tão familiares.

A polícia urbana de combate passa a ser um meio de ascensão social e de disposição de cada um para atender ao seu recrutamento.

O combate, enfim, fortalece os sentimentos corporativos dos seus integrantes, recruta jovens para compor as forças da ordem e pretende solidificar na comunidade o sentimento de segurança na área.

A atual operação de combate ao tráfico, portanto, ultrapassa a manobra de intervenção policial local, como pronunciam autoridades e analistas decorados pelas mídias, para difundir efeitos de consenso do PAC.

O sonho desejado...

Anuncia-se para a área, em breve, a instalação de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), depois de consolidada a ocupação policial, em continuidade às reformas coordenadas pelo PAC. É preciso que o exercício de domínio da região de Vila Cruzeiro esteja sob controle para que a população alcance seu sonho atual de paz chamado UPP, e para que a política governamental se concretize por meio do “Programa Território da Paz”.

O Secretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro, coerente com o programa, comunica que tudo estará resolvido até 2014, quando ocorrerá na cidade a planejada e segura Copa do Mundo.

Programas de renovação de desigualdades como o PAC, incluindo ações de segurança policial de controle do tráfico, exigem a participação da população com uma conduta reformada. Trata-se de um programa político de educação das comunidades pelo qual seus habitantes aprendem a sobreviver em espaços fechados de maneira pacífica e colaborativa, sob o preço de variados deveres.

Ocupados e imantados em programas de segurança e de renovação das desigualdades estas pessoas, esgotadas em suas forças, não têm tempo para pensar outras maneiras de dar rumo às suas vidas.

Tornam-se clientes do Estado, das forças repressivas, de ONGs e das mídias, como felizes miseráveis, pobres e eufóricos, sob uma agradecida maneira de sobreviver que lhes é obrigada como dádiva.

Seja pela sua incapacidade de inovar, pela sua subserviência, que oscila entre obedecer ao tráfico e participar de programas de parcerias público-privadas, ou pela impossibilidade de sublevar-se diante de tanta filantropia, eles permanecem prostrados. Os programas de participação investem na infantilização dos pauperizados e estes, por sua vez, reiteram, esperançosos, sua mórbida condição de vida a alguém que lhes dê algo.

Hoje, quando as forças de esquerda estão cada vez mais alinhadas às políticas governamentais, não lhes resta sequer a esperança da presença de uma vanguarda a apresentar-lhes uma consciência mais radical ou alternativa.

Hoje, quando as forças de esquerda estão cada vez mais similares e próximas às práticas de ONGs e empresas, não resta senão se prestar ao papel que vêm desempenhando com desenvoltura: o de colaborar, em nome da crítica, com a melhoria nas misérias que pretendem combater.

Estado e forças de contestação acomodaram práticas moderadoras em função da melhoria das condições de vida e, com isso, reafirmam em uníssono a eficiência empreendedora dos programas de renovação das desigualdades.

Quanto ao tráfico, resta-lhe aprender modulações eficientes de atuações com o PCC.

palavras insurgentes

Começar a pensar é começar a ser atormentado. A sociedade não tem muito a ver com esses começos (albert camus).

Não me interessa saber se o homem é livre. Só posso pôr à prova a minha própria liberdade. (albert camus).