quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

divulgação: I - TEMPO DOS ANJOS - 2. A NAU DO TEMPO-REI

Escrito de Peter Pál Pelbart, em A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura/ Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993.
I - TEMPO DOS ANJOS - 2. A NAU DO TEMPO-REI
Conta a tradição talmúdica que 26 tentativas malogradas precederam a criação deste mundo. O Génesis não teria sido aquele milagroso instante inaugural tão celebrado, nem a eclosão repentina de uma totalidade redonda saída do Nada através do Verbo, mas tentativa e erro, experimentação, fracasso, remontagens, recolagens. Saído do seio caótico dos destroços anteriores, nosso mundo não possuía (e não possui ainda) nenhuma garantia; também ele estava (e continua) exposto ao risco do fracasso e do retorno ao nada: a qualquer momento o sucesso da empreitada pode desfazer-se e a obra vir abaixo. Foi e é sempre por um triz, graças a um misto de engenhosidade e acaso que esse mundo se sustenta, levando a marca inapagável daquela incerteza originária, de um início que poderia não ter vingado. Mas que vingou, entre outras coisas porque houve, por parte de Deus, no momento desta tentativa, uma torcida. "Oxalá se sustente" (Halevay sheyaamod), exclamou Ele naquele instante, e sua obra respondeu afirmativamente a este voto, que não foi uma ordem, mas um desejo1. Deus atípico: bricoleur, desejante, esperançoso — súdito do Tempo. Todo o contrário da representação que Dele se tem habitualmente: onipotente, Dono do Futuro e do Destino, Rei do Tempo.
O mundo da loucura lembra às vezes, por sua precariedade, essa versão de um Génesis sempre inconcluso. Os loucos, na sua fragilidade e inconsistência, com sua origem turva e nebulosa, num processo constante de reconstrução a partir dos destroços anteriores, também precisam, para sustentar-se, de muita engenhosidade, acaso e amiúde uma boa torcida desejante. Não a torcida vinda da voz cavernosa de um Deus mandão, mas aquela que nós podemos oferecer a partir dos dispositivos os mais diversos que conseguimos colocar à sua disposição para favorecer-lhes essa consistência e sobrevivência, ainda que incertas.
Trata-se dos dispositivos institucionais, jurídicos, sociais, clínicos, expressivos, de escuta, até mesmo os medicamentosos, passando todos eles pelas modalidades mais diversificadas de encontro. Mas nunca nada está dado de antemão e o futuro jamais está garantido, 26 tentativas podem ser pouco para um louco, e frequentemente dez vezes isso ainda é insuficiente. Para tanto, uma coisa aí é primordial, tal como nesta versão do Génesis, sem o que nada seria possível: Tempo. É preciso dar tempo a essa gestação com que se confronta a loucura, a essas tentativas, a essa construção e reconstrução, a esses fracassos, a esses acasos. Um tempo que não é o tempo do relógio, nem o do sol, nem o do campanário, muito menos o do computador. Um tempo sem medida, amplo, generoso.
O curioso é que no trato com a loucura precisamos dar um tempo que nós mesmos não temos. O lema do capitalismo foi outrora o do "tempo é dinheiro": era preciso fazer o máximo no mínimo de tempo, maximizar a produtividade, deslocar-se na maior velocidade possível, em suma, economizar tempo em todos os sentidos2. Mas nas últimas décadas assistimos a uma mutação a esse respeito que mal chegamos a entender. Não se trata mais de ganhar tempo, porém de abolir o tempo. O ideal tecnocientífico contemporâneo consiste em absolutizar a velocidade a ponto de dispensar o próprio movimento no espaço, anulando assim não só a geografia e o tempo de duração desse deslocamento, mas a própria ideia de espaço, de tempo e de duração. É o ideal do tempo zero e da distância zero. Não se trata mais, hoje, de favorecer, através das vias de comunicação e dos veículos automóveis, um nomadismo desenfreado, como na primeira metade desse século. As tecnologias do pós-guerra criaram um novo veículo, estático: a televisão. De propagação instantânea e indiferente à geografia, o audiovisual inaugurou um novo regime de temporalidade: a instantaneidade. O instante sem duração, uma espécie de eterno presente, sem espessura, pura persistência da retina na fonte teleluminosa em meio a uma simultaneidade universal. Não mais nomadismo, mas sedentariedade onipresente. Não mais partir, porém deixar chegar. Fim das distâncias temporais e espaciais. A ordem agora é habitar a velocidade absoluta no instante contínuo da emissão. Instalados nessa instantaneidade, e privados do tempo e do espaço, assistimos à verdadeira desmaterialização tecnológica.
Mas talvez a informática seja ainda mais exemplar para pensar o que está em jogo neste ideal de abolição do tempo. Seu anseio é a informação total, a memória absoluta que pudesse não só prever um acontecimento, mas reagir a ele antecipando-se a seu advento, neutralizando-o. É evidente: o que já é conhecido de antemão não pode ser experimentado como acontecimento. O futuro aí está completamente predeterminado. A tal ponto que, no limite, o que vem depois do ponto de vista de uma cronologia linear, já vem antes, antes mesmo do presente, do ponto de vista tecnológico. O futuro antecede o próprio presente, na medida em que está estocado na memória do computador. O futuro está presente e já não se apresenta como um desconhecido, uma abertura. Todas as companhias de seguro, as garantias, as previsões são modos de prevenir-se contra o devir, contra o advir. Até mesmo o capital é um futuro estocado em forma de dinheiro, que pode diluir pela sua força o advento do adverso. O sentido disso tudo, conforme Jean François Lyotard3, de quem extraio essas observações, é sempre, na medida do possível, neutralizar o acontecimento abolindo a dimensão imprevista do futuro, presentificando-o como um já dado. A obsessão contemporânea, mais do que controlar o tempo, consiste em abolir o tempo. Paul Virilio analisou magistralmente essa questão4 e concluiu: se ontem o sonho da onipotência do homem era o controle do espaço, da extensão física da matéria, hoje o homem realiza um sonho ainda mais demiúrgico, um regime de temporalidade que tende a abolir a própria duração. Uma cronopolítica está em curso cujos desdobramentos ainda são desconhecidos, mas que implica necessariamente no declínio de uma profundidade de campo nas nossas atividades as mais cotidianas. Um achatamento temporal que proporciona um presente eterno, sem história para trás nem para frente, sem passado nem futuro. Presente sem espessura, ilusão da imortalidade que ignora o começo e o fim, a morte e o imprevisto, que só integra o desconhecido enquanto probabilidade calculável. O paradoxo é que a desmaterialização provocada pela velocidade absoluta equivale a uma inércia absoluta. Estranha equação em que coincidem velocidade máxima e imobilidade total.
Por outro lado, em nossas instituições de saúde mental assistimos a um outro regime de temporalidade. São guetos lentificados. Seja um paciente que levanta os braços e de repente os imobiliza, suspensos no ar, seja um outro fazendo um gesto brusco para depois mergulhar numa lerdeza sonolenta, ou ainda aquelas falas entrecortadas por silêncios longos, ou os trajetos vagarosos em percursos cuja lógica nos escapa. Às vezes lembra um aquário onde cada um desliza a seu modo, no seu ritmo, a seu tempo. Agora em câmara lenta, desacelerada, dali a pouco numa rapidez inusitada. Uns estão estacionados num passado longínquo, outros jamais saberemos onde estão, em qual tempo; outros ainda, numa instantaneidade aflita, como se nada lhes garantisse a continuidade temporal. Mas talvez essa descrição externa seja enganosa e insuficiente para dar conta do que realmente está em jogo para os psicóticos na questão do tempo. Num belo artigo sobre o tempo e a psicose5, Jean Oury diz que estamos em contato com certas subestruturas do tempo nos psicóticos, como o tédio, a fadiga, a usura, a paciência. Mas, mais profundamente, o psicótico situa-se numa espécie de ponto de horror, anterior mesmo a uma temporalidade, um ponto de parada, de suspensão, em que ainda não está configurada uma imagem do corpo, num estado de inacabamento radical, onde não há contorno nem mesmo para o vazio, onde não há esquecimento nem surgimento. A ideia de Oury é que deveríamos poder sustentar para os psicóticos um ponto que é ao mesmo tempo de um esquecimento e de uma espera. É um ponto que corresponde ao jorrar do tempo. Deveríamos poder estar ali onde começa o tempo, e com ele a possibilidade de alguma forma, de alguma decisão, deixar jorrar o tempo para que possa surgir o bom momento de se fazer alguma coisa. Oury usa para explicá-lo dois tipos de tempo existentes no grego antigo, o aion, que é esse presente que faz jorrar de dentro de si o tempo, e o kairos, que é o momento adequado, o bom momento para decidir e fazer. Como se devêssemos sustentar para o psicótico esse ponto de coincidência entre o aion e o kairos, numa espécie de cronogênese primordial, de onde pode surgir uma forma, até um projeto. Onde coincidissem esquecimento e espera. Curiosamente, é um ponto de paciência, de tédio, insípido, num certo sentido, e caótico.
Isso, no entanto, é muito difícil de fazer, porque em geral temos muita pressa. Nós não temos tempo nem paciência para sustentar este ponto, o ponto do surgimento do tempo, pois somos amantes das formas, das ordens, dos projetos, do futuro já embutido no presente. Daí nossa impaciência, nosso voluntarismo, nossa hipervalorização do trabalho, do acabamento.
Nosso sofrimento e angústia nesses momentos iniciais de um grupo expressivo com psicóticos, por exemplo, quando há uma espécie de suspensão caótica, que se soubermos sustentar não passa de um caos-germe, de uma gestação a partir do informe, do indecidido. Não é inútil lembrar que o tempo da criação artística ou do pensamento também exige algo dessa ordem. Do dar tempo e paciência para que o tempo e a forma brotem a partir do informe e do indecidido. O desafio é propiciar as condições para um tempo não controlável, não programável, que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em neutralizar. Pois importa, tanto no caso do pensamento como da criação, mas também no da loucura, guardadas as diferenças, de poder acolher o que não estamos preparados para acolher, porque este novo não pôde ser previsto nem programado, pois é da ordem do tempo em sua vinda, e não em sua antecipação.
É quase o esforço inimaginável, não da abolição do tempo, mas de sua doação. Não libertar-se do tempo, como quer a tecnociência, mas libertar o tempo, devolver-lhe a potência do começo, a possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente. Trata-se aí de um tempo que escaparia à presença, à presentificação, à continuidade, dando lugar a outras aventuras temporais.
Num artigo intitulado "O tempo, hoje"6 Lyotard diz que para se pensar ou escrever hoje, é-se atirado a um gueto, um gueto temporal. Como o Gueto de Varsóvia, onde os alemães confinaram os judeus, e como todo gueto, é ambíguo: por um lado representa uma violência, por outro, retarda a morte, embora não evite a solução final. Esta é a situação dos pensadores e escritores: confinados a um gueto temporal, estão ameaçados pelo reinado do tempo controlado, mas ao menos tiveram a morte diferida. Uma inferência apressada poderia concluir: também os manicômios, guetos de tempo lentificado, embora violentos, retardam a morte dos reclusos e os protegem. Ora, ainda que lentificados, nós sabemos que os manicômios não passam de uma versão do tempo controlado em câmara lenta.
Para articular a questão dos manicômios com a politização do tempo conviria relacionar e confrontar certas teses de Paul Virilio com análises já conhecidas de Michel Foucault. Uma observação meio lateral de Virilio a respeito dos estudos de Foucault poderia fazer-nos avançar. Virilio diz que Foucault, em seus estudos, debruçou-se erroneamente sobre espaços fechados (como a prisão, o hospital, o manicômio) quando hoje em dia a mecânica do poder incide não sobre espaços fechados, mas abertos. Esta crítica é de deixar perplexo. Foucault teria perdido o bonde da história? Teria errado de alvo? E acaso não estaríamos nós embarcando no mesmo erro, ao fazer pela milionésima vez a crítica de um modelo (o asilar) que, afinal, está fadado de qualquer modo à extinção? É bem verdade que se este modelo já estivesse completamente extinto não estaríamos sequer discutindo o assunto. Mas nada garante que nossa atenção não esteja dirigida a um monstro pré-histórico condenado pela modernidade, em vista de seu gigantismo, de seu custo, de seu caráter ostensivo, de sua inoperância. Pois parece provável que as tecnologias políticas que se anunciam no horizonte dispensem totalmente a reclusão. E nós, que crescemos respirando um certo furor libertário e antiautoritário, e que víamos na reclusão a quintessência da brutalidade institucional (cujo apogeu paradigmático é o campo de concentração nazista) talvez estejamos teoricamente desarmados em face das tecnologias emergentes.
Não cabe discutir aqui a justeza ou não desta crítica de Virilio a Foucault, pois interessa o seu pressuposto. Antes de comentá-lo, convém lembrar que Foucault passou sua vida limando ferramentas teóricas que lhe permitissem identificar as novas formas de poder vigentes, e denunciou incansavelmente a inadequação entre nossa representação já caduca do poder e as estratégias políticas efetivamente em exercício. Para ficar no exemplo mais célebre, Foucault insistiu em que o poder é produtivo, isto é, ele cria, incita, instiga, embora nós continuemos a vê-lo exclusivamente como aquele que coíbe, impede, castra. Enquanto nós usamos o modelo da lei, modelo jurídico por excelência, ele funciona segundo um outro regime, o da produção. Nesse sentido, Foucault foi um dos primeiros a entender que o modelo concentracionário, o das instituições totais, dos espaços fechados, no seu desaparecimento progressivo, estavam dando lugar a outro dispositivo muito mais sutil, invisível, ágil e poderoso, cuja genealogia ele próprio traçou em sua História da sexualidade.
O que está por trás do comentário de Virilio sobre Foucault parece ser uma divergência mais geral. Para Virilio, o campo de incidência do poder já não é prioritariamente o controle dos corpos no espaço (com seus dispositivos, por exemplo, de exclusão e reclusão), mas o do controle do tempo. E aí tanto faz onde se está, num espaço aberto ou fechado, numa instituição tal ou qual, desde que se esteja submetido a um certo regime de temporalidade hegemónico. A hipótese-questão que caberia testar, a partir desta afirmação, é a seguinte: Caso o fim dos manicômios represente uma estratégia de homogeneização do social, num regime que funciona não mais por exclusão e reclusão, mas por inclusão, e não mais por manipulação prioritária do espaço, porém do tempo, o que pode representar hoje uma política de resistência, tanto no campo da saúde mental como fora dele? Não basta, evidentemente, trocar uma instituição fechada por uma semiaberta, com o que estaríamos vivendo um logro, driblados por um poder mais manhoso do que supõe nossa vã politologia.
Caso a hipótese de Virilio aponte para uma tendência real, não bastaria uma política do espaço, mas seria preciso forjar uma política do tempo, uma cronopolítica que desafiasse o modelo dominante de controle do tempo, de neutralização do tempo, do ideal de abolição do tempo. Claro, este é um tema de conceitualização difícil, por ser também de difícil visualização contrariamente à questão do espaço; (por exemplo, basta entrar num hospital psiquiátrico tradicional para se entender facilmente o quanto a própria arquitetura encarna uma certa concepção de loucura, com as celas fortes, as canaletas de banho, a visibilidade panóptica, e todos os detalhes que uma leitura semiótica nos revela em estado bruto). Mas para além dessa dificuldade, importa o seguinte: se queremos acabar com o manicômio e a reclusão, não deveríamos abrir mão daquilo que no trato com a loucura existe de específico em relação à temporalidade, e nós deveríamos poder bancá-la, mesmo que isso signifique — e necessariamente significa — um desafio à cronopolítica da tecnociência. A cronopolítica hegemónica visa à aceleração máxima, absoluta, ao passo que a loucura não só encarna uma desaceleração (ou uma velocidade de outra ordem) mas também solicita uma desaceleração.
Nesse sentido, não é inútil lembrar que antigamente o poder produzia freios: muralhas, fortalezas, sistemas fortificados, obstáculos, trincheiras, mas também normas, interdições etc. Ora, no século XIX passou-se da Idade do Freio à Idade do Acelerador. O poder passou a investir na velocidade, a criar velocidade. A tal ponto que a grande arma inventada na Revolução Industrial para combater o império da velocidade foi a greve; e o que é a greve senão a parada, a interrupção, a barricada no Tempo, como diz Virilio? Aliás, nesse particular é perfeitamente plausível relacionar a Idade do Acelerador com o caráter produtivo do poder tal como Foucault o postulou, do mesmo modo que a revogada Idade do Freio corresponderia à ultrapassada (?) mecânica repressiva do poder. Aqui se reencontrariam Foucault e Virilio.
Voltando à barricada no Tempo, acontece que há diversos modos de contrapor-se ao despotismo da máxima velocidade. A loucura tal como ela se apresenta hoje certamente é também isso: a recusa de determinado regime de temporalidade, o protesto em forma de colapso frente ao império da velocidade, e a reivindicação de um outro tempo. Essa hipótese pode parecer meio fantasiosa, mas não é absurda. A primeira coisa que chama a atenção de um visitante num hospital psiquiátrico é essa lentifícação, esse ritmo específico, esse regime temporal diferenciado. Sim, às vezes isto se deve aos efeitos dos psicofármacos, às vezes à lentidão burocrática das grandes instituições, mas para além disso está a própria velocidade da .loucura e o outro regime temporal que os loucos vivem, suscitam e solicitam.
Para aprofundar um tema tão complexo, seria preciso voltar àquilo que a versão talmúdica do Génesis apresentada no início deste trabalho aponta como essencial: a doação do tempo, a possibilidade de uma cronogênese. Aquilo, justamente, que as grandes instituições não permitem porque repousam sobre a imobilidade paquidérmica. Mas que tampouco a tecnociência hegemónica permite, na medida em que ela, através da absolutização da velocidade, tende a extirpar. Nisso os manicômios tradicionais e a televisão, por exemplo, reverberam numa aliança indireta, embora um funcione por congelamento e a outra por velocidade máxima. Frente a isto, a possibilidade de resgatar o jorrar do tempo é uma necessidade para o pensamento, para as artes, mas principalmente para a loucura. O fim dos manicômios não deveria representar a vitória devastadora da cronopolítica vigente, assim como a derrubada do Muro de Berlim não deveria representar a vitória devastadora do capitalismo vigente, embora em ambos os casos este risco seja mais do que uma mera probabilidade. Os manicômios, ainda que da forma mais torpe e cruel, em certa medida constituíram uma espécie de freio frente à velocidade crescente. Também porque, num primeiro momento, eles abrigaram muitos daqueles que não se submeteram ao ritmo e às exigências da produção. Mas igualmente porque eram um instrumento de controle proveniente da Idade do Freio, que sobreviveu um pouco na Idade do Acelerador, ainda que deslocado (daí também seu aspecto tão anacrónico hoje em dia, mesmo do ponto de vista do poder).
A questão seria saber como as propostas alternativas em saúde mental pensam preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a lentidão não seja impotência, onde a diferença de ritmos não seja disritmia, onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho. Pense-se nos balineses, por exemplo, para quem as discussões começam e bruscamente se esfumam7. Os assuntos não são levados a uma decisão final. Espetáculos artísticos começam, continuam, param e recomeçam. Os rituais às vezes consistem mais na preparação e limpeza do que no ato propriamente dito. Uma espécie de anticlímax cotidiano, que nós também sentimos no contato com os psicóticos. Do mesmo modo, pode-se evocar este tempo muito distante do tempo do relógio, um tempo não espacializado, mais próximo da duração bergsoniana, com instantes que não são pontos numa sequência de pontos formando uma linha reta do tempo, porém instantes intensivos, gordos. Como no conto de Cortázar, em que o saxofonista Johnny Cárter, personagem baseado em Charlie Parker, diz: "Isto do tempo é complicado, agarra-me por todos os lados. Começo a perceber pouco a pouco que o tempo não é como um saco que nós enchemos. Quero dizer que, mesmo que o recheio mude, na bolsa só cabe uma certa quantidade, e acabou-se. Vês a minha mala, Bruno? Cabem dois fatos e dois pares de sapato. Bom, agora imagina que a despejas e depois vais pôr de novo os dois fatos e os dois pares de sapatos, e então percebes que só cabe um fato e um par de sapatos. Mas o melhor não é isso. O melhor é quando percebes que podes meter uma loja inteira na mala, centos e centos de fatos, como eu meto a música no tempo, como às vezes quando estou a tocar"8. Eis aí um instante intenso, intensivo, inflado, um bolsão de tempo, que nada tem a ver com o tempo do relógio, nem com o instante vazio e contínuo da televisão, nem com o tempo imóvel do manicômio.
Ainda não sabemos qual o melhor meio de resistir à violência da cronopolítica em que coincidem velocidade e inércia, instantaneidade e imobilidade, abolição do tempo e espaço em favor de um vetor velocidade desmaterializante. Pois isso tudo não é um fato, mas uma tendência, e Virílio cita Churchill para dizer que ao contrário das guerras antigas, onde importavam os fatos, não as tendências, nas guerras modernas importam as tendências, mais do que os fatos. É preciso guerrear ondas, tendências, vetores, criando outras ondas, tendências, vetores.
Para elaborar uma estratégia deste tipo no campo da saúde mental, deveríamos poder articular pelo menos os quatro seguintes aspectos: 1) a priorização do vetor temporal do poder, em detrimento do espacial; 2) o significado disso no discurso "espacializante" da luta antimanicomial; 3) a especificidade da temporalidade da loucura; 4) a relação entre essa temporalidade e outras temporalidades em campos diversos. É impossível realizar tal articulação neste espaço e no estágio embrionário em que se encontram essas questões. Assim mesmo é legítimo sugerir algumas linhas de pesquisa que indiquem em que direção esta articulação seria viável. A começar por essa constatação banal de que assistimos a uma contração em todos os níveis: a velocidade reduz o tempo e o espaço ao mínimo, ao nada. Contração da Terra e do Futuro, contração telúrica e histórica, tirania do movimento mas fim da moção.
Neste regime de temporalidade, com o qual o homem pensou que iria ganhar o Tudo, ficou com Nada: é difícil ter um espaço, uma história, um tempo vivido, um território, expandir-se etc. Sim, diz Virilio, seria preciso um outro regime de temporalidade que restituísse ao homem sua condição de habitante do tempo. Onde coubessem, acrescente-se, os bolsões de tempo intensivo, com suas diferentes durações, com a morte, o nascimento, os lençóis de passado (Deleuze) que conservariam suas virtudes de começo e de recomeço etc. Mas que sentido pode ter esta multiplicidade para os loucos? Eles já não vivem isso tudo, e com maior intensidade, nos seus ritmos, bolsões, devires, paradas, passados, sobreposições? Se eles já experimentam essas temporalidades, com que objetivo sustentar para eles este ponto tão difícil de uma cronogênese, de um jorrar do tempo? Não há resposta clara para esta pergunta apressada e malformulada, mas é possível que na loucura esses modos de temporalização diversos sejam vividos a partir de um ponto de horror, como horror, e isto por serem vivenciados como que por detrás de uma barricada erguida contra o tempo. Uma cronogênese, ao desmontar esta barricada, pode permitir que esses modos de temporalização diversos não sejam mais vividos no horror. Pode também abrir o acesso a um tempo onde haja começo, novo, isto é, a partir do qual as possibilidades possam tomar um perfil temporal.
O problema é que isso só é realizável se conseguimos dilatar a contração do tempo que nos é imposta, deixando de lado tanto o tempo congelado do manicômio quanto o tempo inerte da tecnociência. Só assim, movendo-nos mas desacelerando, podemos nos aproximar dessa barricada no tempo levantada pela loucura, e permitir-lhe desconstruir-se, não para aceitar a velocidade dominante, porém para desdobrar-se com mais desenvoltura em suas virtualidades temporais. A fim de poder ver no devir não só uma fonte de ameaças e terror. Claro que há aqui inúmeras dificuldades, clínicas, ideológicas, filosóficas, algumas incontornáveis até o presente momento, outras inexploradas, outras alheias aos limites deste trabalho. Ficam aqui como questões.
A primeira delas diz respeito ao privilégio atribuído ao espaço numa certa concepção psicanalítica das psicoses. Gisela Pankow, por exemplo, diz que para um esquizofrênico construir alguma história precisa estruturar minimamente uma imagem do corpo9. "Se conseguirmos relacionar as diversas partes do corpo umas com as outras", diz ela, então o corpo é "habitável", e "a experiência espacial leva à experiência temporal". O homem entra em sua própria história como sujeito apenas através dessa imagem do corpo. O tempo só é acessível via espaço. Isso tudo é muito interessante e na clínica parece fazer sentido, mas seria preciso perguntar-se se esta espacialização não pressupõe uma doação do tempo, aquela cronogênese de que fala Oury.
E mais, perguntar também se o regime de temporalidade baseado na velocidade absoluta desmaterializante não barra o acesso ao espaço, e assim à possibilidade de uma história do sujeito. Claro que não é fácil manejar ao mesmo tempo conceitos provenientes de domínios tão diversos, com escalas de grandeza tão distintas. Como pensar, por exemplo, a incidência dessa temporalidade da tecnociência e sua espacialidade específica na estruturação de uma imagem do corpo, que é um fantasma pertencente exclusivamente à instância do psiquismo? Há aí vários riscos, por exemplo, o de transpor uma teoria regional para fora de seu campo de aplicação, forçando enxertos descabidos. Mas também é preciso poder pensar as intersecções. Um outro problema nesta mesma linha seria verificar a relação entre esta temporalidade da tecnociência, que embutiu o futuro no presente, mas num presente esvaziado e sem espessura, e a estrutura de antecipação temporal, tão fundamental na constituição imaginária do sujeito. A manipulação de futuro que a tecnociência propõe está longe da possibilidade do futuro enquanto abertura temporal. Eis outro risco presente em toda esta reflexão. Michel Foucault disse certa feita que é preferível pensar em termos de espaço, que é a linguagem da guerra, da estratégia, da exterioridade, pois a linguagem do tempo nos tem levado à ideia de evolução, de continuidade, de desenvolvimento orgânico, de progresso da consciência. Como então pensar a questão do tempo sem recair no subjetivismo, no modelo da consciência ou mesmo no culto continuísta e progressivo da História? Como pensar estrategicamente o tempo, no seu vetor de exterioridade?
Evidentemente, extrapola os limites deste trabalho uma reflexão propriamente filosófica sobre o problema do tempo na sua extensão rigorosa e complexidade conceituai. Há um viés heideggeriano em Virilio (e também em Lyotard), um bergsonismo distorcido em Deleuze (muito distante desta visão "continuísta" criticada por Foucault), e muitas outras entradas possíveis que este estudo não poderia abordar de frente. Cabe assinalar, entretanto, que este trabalho não se situa exclusivamente no plano do "tempo vivido".
Outra armadilha ainda seria embarcar numa romântica nostalgia pré-tecnológica. Alguns pensadores da pós-modernidade (como Baudrillard, por exemplo) deixam transparecer, por trás da volúpia apocalíptica que os caracteriza, um tom saudosista, banhado num complacente niilismo kitsch. Seria preciso, junto à lucidez política de que dão testemunho os autores utilizados neste ensaio, conseguir flagrar a multiplicidade dos novos espaços-tempos constantemente criados em nosso universo tecnológico, apesar das tendências hegemónicas da tecnologia apontadas acima. Mas num nível mais imediato, a dificuldade maior talvez ainda seja nossa insistência no fator espacial, nas oposições aberto/fechado, muro/não-muro, reclusão/inserção. É uma luta importante, mas em face das novas tecnologias de poder (em que o lema não é mais "trancar" ou "excluir", mas "acelerar"), parece insuficiente. Para esta tecnologia, a loucura representa um obstáculo, e nós não deveríamos ajudá-la a remover esse obstáculo inserindo-a simplesmente no ritmo generalizado.
É preciso dar à loucura (sem substancializá-la) espaços de temporalidade diferenciada, lugares onde um outro regime de temporalidade permita outras coisas. Deveriam existir ateliês de tempo, para loucos e não loucos, pouco importa, onde isso fosse possível. Em certa medida eles já existem, não oficialmente e não com este nome, em todos os movimentos ou grupos ou pessoas ou instituições que desafiam a homotemporalidade dominante, com seus devires atípicos, estrambólicos, bizarros, seja com suas barricadas no tempo, picnolepsias, desfalecimentos10, seja nos seus saltos, êxtases abruptos, ou na coexistência com os lençóis de passado, ou ainda, no enfiar centenas de trajes e sapatos numa única bolsa, tal como o saxofonista de Cortázar sopra a música no balão do tempo, inchando-o ao infinito.
Para concluir, cabe acrescentar que apesar de toda a variedade temporal já mencionada, num hospital às vezes é preciso suportar o tempo insípido como se aguenta uma chuvinha triste e interminável, sabendo que lá na frente a água acumulada pode irromper numa nascente. Aí pode jorrar um tempo, que nos casos felizes, e por um certo curso de rio, leva quem sabe a uma cascata de vida. Mas há também, no convívio com os loucos, a multiplicidade temporal que desafia a homogeneidade do relógio, e esse desafio nunca é pacífico, pois nunca é pacífica a insubordinação ao tempo societal. Para nós é difícil não só respeitar essa heterogeneidade temporal, como também fomentá-la (o que seria desejável), através da criação de diferentes temporalidades grupais. Não é simples fazer isso tudo e ainda estar atento para as diferenças de tempo individuais, criando certos ritmos, em que uma modalidade temporal possa conectar-se com outra, compor-se, combinar-se, contrapor-se, ressoar, destoar. Não para fazer bandinha, mas para não deixar que, por solidão, uma temporalidade morra estrangulada, ou que um paciente sufoque no seu ponto de horror.
Nós não precisamos do manicômio para estancar o despotismo da velocidade que mata o tempo, pois o manicômio já é o despotismo do tempo morto. Mas não deveríamos abrir mão de todo s os diques que conseguirmos inventar, para os loucos e os sãos, a fim de viabilizar, mesmo contra a maré cronocida, aquela vagabundagem do espírito que só é possível a bordo da nau do Tempo-rei.
Dezembro/1990
l André Neher, "Visão do tempo e da história na cultura judaica", in As culturas e o tempo, publicação da UNESCO.
2 Para a análise histórica deste processo, ver Jacques Lê Goff, "Na Idade Média: tempo da Igreja e tempo do mercador", in Para um novo conceito de Idade Média: Tempo, trabalho e cultura no Ocidente, Lisboa, Ed. Estampa, 1980, e de Thompson, "Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo industrial", in Tradición, revuelta y consciência de clase, Barcelona, Ed. Crítica, 1989.
3 Jean François Lyotard, L 'inhumain, causeries sur k temps, Paris, Galilée, 1988.
4 Paul Virilio, Vitesse et politique: essai de dromologie, Paris, Galilée, 1977, ou Guerra Pura, a militarização do cotidiano, trad. de Elza Mine e Laymert Garcia dos Santos, São Paulo, Brasiliense, 1984.
5 Jean Ouiy, "La temporalité dans Ia psychose", in La folie dans Ia psychanalyse, Armando Verdiglione (org.), Paris, Payot, 1977.
6 op. cit.
7 Clifford Gcrtz, Antropologia.
8 Júlio Cortázar, "Blow up" in Blow up e outras histórias.
9 Gisela Pankow, O homem e sua psicose, Campinas, S.P. Papirus, 1989, e O homem e seu espaço vivido, Campinas, S.P., Papirus, 1988.
10 Foi ainda Virilio quem melhor analisou essas paradas temporais em seu livro Esthétique de Ia disparítion, Paris, Ed. Bailai d, 1980.
cooperação.sem.mando

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