sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

divulgação: I - TEMPO DOS ANJOS - 3 - ECOLOGIA DO INVISÍVEL

Escrito de Peter Pál Pelbart, em A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura/ Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993.
I - TEMPO DOS ANJOS - 3 - ECOLOGIA DO INVISÍVEL
Vocês hão de compreender o meu constrangimento ao lhes propor, no rastro da comunicação de Félix Guattari, um tema como o invisível. Parece disparatado falar do invisível numa cidade tão bela como o Rio de Janeiro e em meio à violência mais crua, em face da visibilidade a mais concreta, nos seus dois extremos de beleza e horror. O invisível, além disso, é também sempre um pouco indizível, e já terei conseguido muito se puder roçá-lo de leve para indicar a relação fundamental que creio haver entre ele e uma reflexão sobre as ecologias. Gostaria de mostrar em que medida uma politização do invisível está em curso e de que modo ela reverte ou pode infletir uma ou outra perspectiva cultural e ecológica.
Eu diria, um pouco peremptoriamente demais, talvez, que uma certa corrente do pensamento contemporâneo, na qual decerto incluiria de modo eminente Deleuze-Guattari, alterou o estatuto do invisível. Penso que foi em parte mérito seu o ter dado ao invisível uma dimensão propriamente política, isto é, um lugar na polis. Mas antes de explicar em que sentido o entendo, arriscaria uma generalização preliminar, propondo uma tipologia da relação das culturas com o invisível. Embora esquemática e provisória, pode fazer com que esse tema tão invisível e indizível pareça menos inefável.
Trata-se, grosso modo, de quatro tipos de relação cultural com o invisível, ou melhor, de quatro regimes de invisibilidade. Ainda que indissociáveis de configurações sociais e políticas bem determinadas, e por conseguinte inseparáveis de regimes de visibilidade também definidos, esses quatro tipos não devem ser entendidos como fases de uma história evolutiva. O primeiro tipo diz respeito ao invisível imanente, tal como aparece nas culturas primitivas ou arcaicas. É o invisível habitando a Terra, coextensivo a ela e presente no meio dos homens. O segundo tipo de invisível habita o Céu, acima dos homens, tal como se vê nas grandes religiões monoteístas ou nas formações bárbaras despóticas. É o invisível transcendente. O terceiro tipo, mais conhecido de nós, é o invisível enredado na interioridade da alma e, por extensão, constituindo o domínio do psiquismo. É o invisível habitando o Sujeito, e privatizado na forma do fantasma individual. A hipótese um pouco extravagante que assedia este percurso grosseiro, que eu gostaria de postular mas também de contestar, é que estaríamos assistindo agora à passagem desta última configuração, a do invisível subjelivo, para uma outra forma, em que está em jogo o aniquilamento progressivo do invisível. Não mais imanente, não mais transcendente, não mais subjetivo: o invisível estaria entrando num regime novo, com uma figura estranha que mereceria uma análise também estranha. Não mais presente entre os homens, nem planando acima deles, nem encarquilhado dentro deles, mas substituído ou engolido pela visibilidade imaterial da imagem.
Segue uma ilustração do que se trata. Um diário paulista noticiou que uma tribo indígena do baixo Xingu (os araweté) recebeu a visita amigável de uma equipe de cinema, e ali foram rodadas imagens para um filme. Um mês depois, a equipe retornou à tribo e mostrou seu trabalho. A tela de TV exibe aos índios surpresos sua própria imagem, mas no meio aparece íambém a figura de um ancião morto nesse intervalo de um mês. Pela primeira vez a tribo inteira assiste ao reaparecimento de um morto, função reservada exclusivamente ao pajé. A imagem do morto na tela é duplamente inquietante: ver a morte é interditado a quem não de direito, e se isso acontece, só pode significar um castigo. Por quê? Pois a tradição desta comunidade recomenda que ela se desloque a cada vez que morre um índio. Ora, a demarcação de terras tem impedido essa mobilidade, e a tribo se viu obrigada a permanecer no mesmo lugar. Assim, a visão do morto, diz o jornal, para os índios só podia significar uma punição sobrenatural infligida por conta de uma transgressão ritual coletiva.
Até aqui o noticiário veiculado pelo jornal. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que tem um trabalho volumoso sobre os araweté1, e que presenciou o episódio, tem uma interpretação mais complexa. Segundo ele, ali estavam em jogo vários elementos, como a relação de perigo que envolve a evocação dos mortos para os araweté, a importância do trabalho de luto para se evitar a doença mortal melancolia, a teoria dos araweté sobre o duplo do morto, espécie de espectro a rondar a tribo pelo tempo suposto de descomposição do corpo, e daí a prescrição de deslocamento, o tipo de visão que o pajé tem da morte, muito mais ligada ao canto que à visão, espécie de peifoimance mediúnica etc. Contudo, o mais interessante é o seguinte: em araweté há um termo, o in, que designa ao mesmo tempo sombra, alma, qualquer tipo de representação ou reprodução visível ou vocal, e também imagem. Viveiros conta que no momento da apresentação do filme, houve toda uma discussão na tribo para esclarecer se isso que viam na tela era ou não um in, se o in do morto visível no meio deles poderia causar-lhes algum mal, se essas imagens teriam ou não o poder de capturar suas almas matando a todos (isso foi levantado em tom jocoso, tratava-se de uma brincadeira), ou se essas imagens, segundo a expressão de um deles, seriam apenas "nós mesmos", isto é, o
corpo deles, e não a alma. Enfim, havia humor na discussão, e certa inquietação, o começo de uma reorganização do vocabulário psicológico, segundo o antropólogo, mas também, é de se supor, a tentativa de atribuição de algum estatuto no interior da cultura araweté para essa imaterialidade visível que de algum modo poderia se confundir, "representar", ou até mesmo substituir o invisível.
Essa historinha condensa muitos aspectos dramáticos da ecologia, na sua acepção mais vulgar de proteção aos índios, sobretudo no que diz respeito ao embate agônico entre as culturas primitivas e o Ocidente Tecnológico. No entanto, eu preferiria usá-la apenas para ilustrar de modo quase caricato o contraste entre esses dois regimes, o da invisibilidade imanente da ordem mítica, em que a comunidade coabita com o invisível apesar do sistema de atualizações ritualísticas ou de mediações xamânicas, e esse outro regime, o da visibilidade total, plena, sem mediação alguma, em que a imagem mostra tudo. Imagem obscena, dizem alguns, isto é, oô-cena, sem cena, sem a cena que todo espetáculo pressupõe, em que há um jogo entre um revelado e um oculto presenciado pelo olhar de um espectador situado a uma certa distância da imagem. Aqui, na visibilidade total, também chamada de pornográfica, estaríamos mais próximos de uma promiscuidade tátil com as coisas, como frisa Otília Arantes ao comentar um texto de Baudrillard e aproximá-lo de Walter Benjamin2.
No nosso regime da visibilidade total, da profusão infinita de imagens, dessa promiscuidade tátil com elas, o que teria acontecido ao nosso invisível, supondo-se que ele exista? Se colocamos por um instante entre parênteses essa tipologia simplória do invisível como imanente, transcendente, subjetivo ou imagético, do que se trata para nós?
Certas experiências clínicas, estéticas, políticas, poderiam tornar este tema bem mais palpável. É o caso, por exemplo, de uma delas, comum a todos os trabalhadores "psi" que têm alguma intimidade com os espaços de confinamento da loucura, onde aparecem de forma privilegiada, por razões históricas complexas, resíduos de uma relação relevante com o invisível. Na convivência com comunidades de loucos sente-se de fato uma espécie de densa invisibilidade entrelaçada nos objetos, nas pessoas, nos lugares, nas palavras, nos silêncios, e não é precisamente o que está na cabeça de cada paciente, mas entre eles, entre um e outro, entre um olhar e um objeto, entre as palavras e as coisas, entre um som e um retalho, como se esse invisível fosse outra coisa que um oculto, outra coisa que um segredo, outra coisa que um mistério acessível a um sujeito privilegiado, seja ele médico ou louco. Como se esse invisível fosse essa camada que envolve e permeia as coisas, ou as duplica, ou que lhes dá espessura, ou leveza, ou peso, ou as torna relevantes, miraculosas, fantásticas, inéditas, mágicas, brutas, inertes... Sim, uma camada intensiva, que tem a ver com as imagens mas não deriva delas, que tem a ver com a linguagem mas não deriva dela. Como quando vemos um morto, paira sobre ele uma camada de invisível que não é o morto, e sim a morte, esse acontecimento imemorial que sobrevoa todos os mortos e os vivos, e os incrédulos e os estarrecidos da Terra. Assim como o relógio configura uma imagem do tempo mas não é o tempo, e mesmo a pintura de um relógio derretido, escoando, ainda é insuficiente para roçar esse invisível maior que é o Tempo, e que às vezes um anjo de Wenders ou um fragmento de Blanchot ou uma sonata em Proust evocam mais de perto. Voltando ao exemplo do hospital psiquiátrico, eu diria que é nessa esfera do invisível que se passa o essencial, que está aí a matéria-prima da clínica, onde as virtualidades estão presentes num estado de oferecimento, à espera de enganches, atualizações, proliferações, de onde cada um, indivíduo ou parte de um indivíduo em conexão com parte de um outro extrai e constrói sua terra natal, por mais imaterial que ela seja, a partir da qual certos processos de subjetivação podem desdobrar-se e ganhar consistência. Cuidar desse "meio ambiente" num hospital psiquiátrico, por exemplo, deixando-o desobstruído, é um trabalho imenso; tem a ver com as esferas políticas, institucionais, as transferências, o dinheiro, a arquitetura, os animais e os sons que o habitam, murmúrios, risos, ritmos, gestos, todas as forças e afetos e elementos em jogo, mas é no meio de tudo isso que essa massa invisível se oferece como um magma grávido de expressões, singularizações, autopoieses etc. É esse invisível, esse entre, esse fora, esse meio, que pode ser promessa ou, pelo contrário, apenas fardo insustentável, massa pesada e inerte.
Talvez essas poucas divagações bastem para tentar concluir alguma coisa sobre o estatuto do invisível que a imagem, malgrado a tentação pós-moderna, jamais será capaz de substituir, assim como outrora a linguagem, malgrado a tentação estruturalista, tampouco foi capaz de coagular. O invisível, a rigor, não é da ordem da linguagem, nem da imagem, e muito menos do imaginário. Por isso é tão falaciosa sua redução a uma interioridade psíquica, ou a um imaginário social que se sobreporia à realidade. O invisível é parte da realidade, ele é da ordem da Cidade, ou, para sermos mais espinosistas, da ordem da Natureza. Uma ecologia que pretendesse preservar o ar relativamente despoluído, isto é, invisível, deveria preocupar-se em manter arejado o invisível. Pois se o regime da visibilidade total é incapaz de substituir o invisível, ele é bem capaz de o poluir.
O que experimentamos num nível mais imediato, apesar de todas as possibilidades alentadoras que as tecnologias inventam sem cessar, é justamente isso: uma espécie de poluição do invisível. Como diz Deleuze, estamos cercados por todos os lados de uma quantidade demente de palavras e imagens, e seria preciso formar como que vacúolos (a expressão é de Guattari, se não me engano), vacúolos de silêncio para que algo merecesse enfim ser dito; ou, por extensão, vacúolos de imagens, como de fato alguns cineastas e videomakers souberam cavar no interior de suas próprias criações, para que algo merecesse enfim ser visto. Técnicas de despoluição do invisível, não num sentido asséptico de preservação, mas de possibilitação. Como quando Deleuze mesmo conta que não se desloca muito para não espantar os devires: não é assepsia, mas possibilitação.
Para tomar dois exemplos pictóricos, na mesma ordem de ideias, de como isso se dá: um filme recente de Jacques Rivette (A bela intrigante) mostra um pintor maltratando uma bela modelo, forçando-a a posições esdrúxulas, deformando-a por inteiro, e em meio a uma discussão com ela diz que não a está retratando, já que busca nela o invisível, seu sangue, seu fogo, seu gelo. Para isso ele precisa virá-la do avesso, deformá-la, desmembrá-la. Ou ainda um outro exemplo pictórico, quase contrário, do recém-falecido pintor Francis Bacon, que reivindicava, antes de pintar uma tela, limpá-la de todos os clichés da história da pintura que pairavam acima dela, assim como se desafia um destino. Um busca o invisível pela violência, através do desmembramento do corpo, extraindo dessa operação forças invisíveis que comporão outra visibilidade. O outro opera por rarefação ou esvaziamento, a fim de desobstruir as virtualidades presentes, absolutamente reais, embora à espera de uma atualização, aí sim visível^ expressiva, existencial. Então, não bastaria dizer que o invisível plana sobre as coisas como uma espécie de incorporai, tal como o acontecimento, mas que ele atravessa as coisas como essa textura ou nervadura virtual que, uma vez atualizada, as redistribui, provocando nelas desmembramentos, decomposições, recomposições, bifurcações, novas processualidades, derivações, universos, inéditos.
Esta é uma operação estética, filosófica, clínica, mas também eminentemente política, pela simples razão de que esse invisível é imanente às grandes máquinas técnicas e sociais. Claro, é sempre uma política concreta que altera situações concretas, mas há como que um trabalho paralelo, simultâneo, eu não diria prévio, pois é entrelaçado a esse, que é de desobstrução, de espaçamento, por rarefação como Bacon ou Becket, ou de violência, estiramento e esgarçamento como o pintor de Rivette, ou de produção, depende do caso, mas envolvendo sempre alguma reconexão com essa ordem do invisível virtual. É bem difícil, em meio às guerras mais cruentas, falar daquilo que não é propriamente da ordem do Ser, mas do Entre. Tanto pior ou tanto melhor se isso pressupõe uma outra ontologia em que não está em jogo o Ser do ente, mas o Entre do ser. O tema aqui é justamente este: o invisível, parte integrante.e constitutiva de realidade, de subjetividade, de sentido, atrelado que está às máquinas tecnológicas e sociais e seus agenciamentos, deve ser pensado politicamente. Para tanto, é preciso desprivatizá-lo, desimaginarizá-lo, mas ao mesmo tempo restituir-lhe sua densidade de acontecimento e de virtualidade, sua distribuição esparsa, singular, processual, de engendramento de realidade e de subjetivações.
Mas o que significa um invisível que não fosse restrito aos alucinados, videntes, drogados, artistas, psicanalisados, profetas, embora todos esses possam desenvolver uma relação privilegiada, momentaneamente, com o invisível1? Um invisível que não se limitasse a essas figuras de "iluminações profanas", segundo a expressão de Benjamin? Sabemos que para ele estas experiências representavam uma espécie de prefiguração solitária de uma revolucionária experiência histórica coletiva3.
Afinal, do que se trata quando falamos de um invisível que não é da ordem de um visível oculto, ou de uma imagem interna, ou de um imaginário coletivo, mas que tem a ver com o coletivo e o singular, que diz respeito ao subjetivo, que tem a ver com as palavras e as coisas e as máquinas sociais, que está entre elas, e que deveria ser desobstruído, arejado, por esgarçamento, rarefação, ou outros procedimentos?
Seria precipitado arriscar uma resposta. Mas penso que esse invisível, se fosse possível defini-lo em poucas palavras, tem a ver com o espaço reservado ao intempestivo. Bacon precisa liberar a tela da história da pintura, para fazer brotar seu desvio intempestivo. O pintor de Rivette precisa livrar-se de uma história do corpo para extrair dele uma derivação imprevista. É preciso conseguir não ruminar incessantemente a própria historinha pessoal para poder inventar um novo devir. Um hospital psiquiátrico precisa livrar-se do despotismo de um tempo homogéneo para deixar surgirem temporalizações e universos existenciais diferenciados. Nós precisamos constantemente nos desgarrar desse presente sem espessura que a mídia nos oferece, imagem móvel de uma eternulidade, para introduzir em nossas vidas o inédito. Na linha dos pensadores que me inspiram, é preciso dizer também que não se trata de descobrir nossa identidade através desse visível que é a nossa história, já que a história não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir. Diferir dela não para descobrir o que se é, mas para experimentar o que se pode ser (desprender-se de si, dizia Foucault). Tarefa ética por excelência, subjetiva, ontológica, analítica, e que não repousa sobre o visível da história, nem sobre um segredo invisível que ela ocultaria, nem mesmo sobre uma prefiguração desse visível futuro na forma de um projeto acabado. É uma operação que exige a desobstrução de um invisível como campo virtual para um devir-intempestivo. Que me seja perdoado o pleonasmo: é claro que o devir já pertence à ordem do intempestivo, do contra-tempo, do inatual, do desvio na história, da contra-efetuação, mas por inflação de uso o termo devir acabou sendo facilmente identificado com a simples mudança ou progresso ou evolução, mesmo dialética, o que oblitera sua relação essencial com esse intempestivo.
De qualquer modo, convém assinalar que a relação com o invisível sempre coloca em jogo o tempo e sua ordenação. Por exemplo, Détienne e Vernant mostraram como a relação com o invisível na Grécia arcaica, privilégio de alguns visionários, expressava uma relação especial com o tempo: no caso do poeta, com a memória e o passado, no caso do adivinho, com o futuro5. Mircea Eliade, por sua vez, mostrou como para as culturas primitivas a relação mítica não é evocação de uma origem remota, mas revivência dela sempre co-presente: a ritualização não é lembrança, mas efetiva reatualização6. Numa outra ordem de ideias, todas as "iluminações profanas", drogaditas, místicas, ou mesmo as revolucionárias, exercitam uma sabotagem na ordem do tempo, uma cnmoilógica. Não é acidental o fato oposto, o de que a onipresença da imagem televisiva e o regime da simultaneidade e da instantaneidade contínua que ela e a mídia em geral instauram, conforme mostrou Paul Virilio, impliquem não nessa esqui/ofrenização temporal, mas, ao contrário, numa espécie de crànoddio.
A relação com o invisível, com esse invisível desatrelado da visão ou do visionarismo, é também, para usar uma imagem confusa, d espaço em que surge o tempo, em que ele brota e jorra e deriva e bifurca, e em que ele se intempestiva a partir de uma espécie de cronogênese. Então, quando a televisão (ou a máquina midiática da qual ela é apenas uma peça) nos oferece essa imagem plena, contínua, temporalmente nula, é óbvio que o que aí fica obstruído é uma temporalização, ou o intempestivo, ou os devires. Não é intrínseco à imagem televisiva, mas é próprio à sua forma atual de controle, que opera por saturação e achatamento temporal. Por outro lado, estudos recentes sobre a computação gráfica e a imagem numérica que ela sintetiza, isto é, imagem como função de equações matemáticas que lhe dão vida, mostram o quanto ela é diferente da televisão na relação que ela implica com o invisível e o tempo. Primeiro, ela pode tornar sensível o formal; com isso, não mostra tudo o que é, substituindo-se ao que pode ser, como faz a TV, mas atualiza visualmente aquilo que não podemos imaginar porque escapa a nossos hábitos sensoriais e perceptivos. A manipulação interativa abre espaço para as diversas poéticas tecnológicas, mas também instaura uma nova relação com o tempo. A realidade virtual criada pela imagem numérica, ou seja, em última instância a partir de fórmulas invisíveis, não nos remete a um "já foi" do referente (como na fotografia, ou em parte na televisão), mas, segundo os estudos de Edmond Couchot7, por exemplo, a um pode ser, a um tempo em potência, a um possível (e não a m futuro), a um possível jamais totalmente chamado a tornar-se presente, um possível em estado de permanente suspensão, numa reversibilidade temporal sempre aberta. Nessa realidade virtual, das simulações do inimaginável, nessas visualizações a partir do invisível, não estaríamos paradoxalmente mais próximos desse espaço desobstruído para um devir-intempestivo? Mais próximos de uma imanência do invisível, apto a fornecer visíveis, mas através de um procedimento essencialmente construtivista, e não mais epifânico?
Obviamente, não cabe fazer da inteligência artificial a nova terra prometida, nem a nova modalidade de paraíso artificial, artificial no sentido até literal do termo, pois facilmente ela pode tornar-se aquilo que Burroughs concluiu das drogas, após tê-las experimentado todas: sobra delas o hábito, apenas o hábito. Isto é, o não-intempestivo. Mas com essas indicações sumárias e assumidamente superficiais sobre a tecnologia do virtual e a inteligência artificial, que se poderia abrigar sob o subtítulo de "Esquecer Bajudrillard", trata-se apenas de livrar uma política do invisível da sombra apocalíptica de uma Imagem monstruosa e cancerígena devorando o mundo, e substituindo-se niilisticamente à realidade tanto visível quanto invisível.
Como vai ficando claro, não se trata de resgatar uma presença imanente do invisível própria ao mito, nem de recusar as formas subjetivadas de invisível que nos estão coladas na alma, nem de diabolizar o universo tecnológico e sua profusão de signos, muito menos festejá-lo com um voluptuoso catastrofismo pós-moderno. Mas trata-se sempre, nesse trabalho sobre o invisível entendido como o espaço de surgimento do intempestivo, de desbloqueá-lo do tempo homogéneo, nas suas diversas formas de captura, seja a forma eternificada do universal, a forma linear da evolução, a forma achatada da emissão, ou ainda a nova forma modulada, ondulatória de controle. Tudo isso é muito complexo, pois não basta um trabalho epistemo-técnico, como diz Virilio, embora ele seja essencial, não basta um trabalho macro ou micropolítico, porém isso e muito mais, ou muito menos.
Numa entrevista sobre o imaginário, Deleuze diz, usando uma expressão cunhada por seu parceiro, que o que ele fez em seus livros sobre o cinema não foi refletir sobre o imaginário, mas uma operação mais prática, disseminar cristais de tempo. Cristais de tempo é uma noção complexa8, que não cabe desenvolver aqui, embora tenha a ver com o visível e o invisível, o atual e o virtual, o real e o irreal, o falso e a potência do falso, o tempo em estado puro, ou o ritornelo etc. Bastaria indicar o seguinte, mesmo sob pena de deformar esta noção tão rica: disseminar cristais de tempo, nos domínios mais diversos, artes, ciências, práticas institucionais, políticas, parece-me a operação intempestiva por excelência, isto é, aquela que, a partir de um invisível qualquer (ou mesmo de um visível, se formos fiéis à metáfora do cristal, que é um visível invisível) introduz, ou faz intervir, uma certa aberração temporal9, um jorrar do tempo que desequilibra um sistema de trocas, desestabiliza um circuito de equivalências, que mostra um pouco o corte temporal em que sangramos quando diferimos de nós mesmos, quando embarcamos numa diferenciação a partir de uma virtualidade. O que acontece também quando cristalizamos um universo, não no sentido de endurecer, mas de compor uma consistência, absorvendo um meio material ou imaterial, assim como um germe, no caso do cristal, é a imagem virtual que cristaliza um meio anteriormente amorfo.
O problema aqui é que esse meio deve ter uma estrutura virtualmente cristalizável, caso contrário nada acontece. Quantas vezes lançamos um pequeno germe cristalino e o meio não tem a virtualidade correspondente, por poluição, saturação, obstrução, incompossibilidade... E quantas vezes o meio está aí, imenso universo virtualmente cristalizável, e não lançamos o germe... Deveríamos supor o mundo como um reservatório de potencialidades cristalinas infinitas. Mas também ter claro que no cristal do tempo está o tempo como cisão, como desdobramento, como diferenciação na qual estamos metidos, entre o virtual e o atual, espécie de oscilação, de vertigem que nos toma e nos arrasta para longe de nós mesmos.
Isso tudo certamente não é fácil de pensar ou entender, muito menos de explicar, o que não dizer do praticá-lo, ou suscitá-lo. Mas importa o seguinte: disse no início que a meu ver uma politização do invisível estava em curso, e posso acrescentar que o invisível nosso não está no Céu nem na Terra, nem nas nossas cabeças, nem na telinha de TV, mas entre isso tudo, assim no meio, meio no ar, como um campo virtual, o tempo todo em estado de oferecimento às cristalizações que lhe são propostas. Ele está nos grandes e minúsculos espaços de intempestivo. Quer dizer, esse invisível não é uma cópia mental do universo material, nem uma estrutura linguística ou inconsciente transcendente, nem uma superestrutura ideológica ou imaginária, representacional. Ele é o grande Interstício, Interstício do Inimaginável, rigorosamente da ordem da Realidade, da Natureza ou da Cidade. Isto é, o invisível está entrelaçado aos saberes, poderes e modos de subjetivação bem como a seus dispositivos, que nos circundam e nos fundam e também nos afundam. Ele não pode ser programado, mas só explorado; não está reservado aos poetas nem aos videntes nem aos futurólogos, muito menos aos analistas ou estadistas. Requer, digamos assim, uma raça que sempre existiu e sempre há de existir, embora muitíssimas vezes em estado de invisibilidade total e de disseminação coletiva, impessoal, inumana: a raça dos intempestores.
Maio/1989
1 Eduardo Batalha Viveiros de Castro, Araweté: os deuses canibais, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1986.
2 Otília Beatriz Fiori Arantes, "Arquitetura simulada" in O olhar, Adauto Novaes (org.), São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988.
3 José Miguel Wisnik trabalhou algumas destas figuras em seu belo ensaio "Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados)" incluído na coletânea O olhar, op. cit.
4 Walter Benjamin, "O surrealismo — o mais recente instantâneo da inteligência europeia", in Obras escolhidas vol l, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1987.
5 Mareei Déticnne, Os mestres da verdade na Grécia arcaica, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, e Jean Pierre Vernant, "Aspectos míticos da memória e do tempo", in Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica, São Paulo, DIFEL/Edusp, 1973.
6 Mircea Eliade, Mito e realidade, São Paulo, Perspectiva, 1972, cap. II.
7 Edmond Couchot, "Sujei, objet, image", in Cahiers Internationaux de Sociologie, vol LXXXII, 1987. Sobre o mesmo tema, ver também Arlindo Machado, Máquina e imaginário: os desafios das poéticas tecnológicas. São Paulo, Edusp.
8 Sobre esta noção de Deleuze ver o capítulo "Cristais do tempo", em A imagem-tempo, cinema II, São Paulo, Brasiliense, 1990.
9 Eric Alliez desenvolveu esta noção num trabalho filosófico essencial, de grande fôlego e riqueza, Tempos capitais: Relatos da conquista do tempo, Rio de Janeiro, Siciliano, 1991.
cooperação.sem.mando

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