quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

divulgação: DOSSIER DELEUZE - LEIBNIZ: UM MUNDO ÚNICO E RELATIVO

DOSSIER DELEUZE
Organização: CARLOS ENRIQUE DE ESCOBAR - Um exame rigorosamente completo da obra do filósofo Gilles Deleuze - numa seleção de textos e análise do prof. Carlos Henrique de Escobar - HÓLON EDITORIAL
LEIBNIZ: UM MUNDO ÚNICO E RELATIVO
Por Bruno Paradis *
«Permanecemos leibnizianos já que se trata sempre de preguear, despreguear, repreguear»(1). A referêhcia a Leibniz sempre teve um lugar de destaque no trabalho filosófico de Gilles Deleuze, fundado, na realidade, sobre um profundo anticartesianismo, mas ligado sobretudo a três parâmetros filosóficos fundamentais: a possibilidade de desenvolver uma lógica do acontecimento, como pensamento rigoroso e anexato; a investigação do horizonte do virtual, como preocupação transcendental dos processos de individuação; o jogo das séries na sua relação com a «extraordinária compossibilidade»(2), como paixão das singularidades no seu devir. Mas é por uma outra linha que Deleuze aborda Leibniz na sua última obra, intitulada Le pli. E como uma nova passagem, umaredescoberta.Jáque, desta vez, seguindo o movimento que vai do mundo à sua inclusão na mônada, da mônada e seus predicados à percepção, da percepção à relação de semelhança, trata-se de se confrontar com a bem difícil questão das relações da alma e do corpo, ou seja, com as modalidades de bloqueamento e de passagem que se estabelecem entre estes dois registros distintos, registros que são igualmente tanto o do legível como o do visível. Esta confrontação terá o seu ponto culminante na análise do Vinculum substantiale, uma noção extremamente delicada de delimitar, misteriosa mesmo na opinião de Leibniz já que reenvia a Deus e ao Mistério da criação, mas uma questão que responde perfeitamente à definição do conceito: um puro indivíduo ou uma singularidade absoluta. O vinculum, ou laço substancial, é a prega da alma e do corpo, a prega que faz passar através dela todas as pregas.
Foi no texto consagrado a Michel Eoucault que Deleuze introduziu e desenvolveu o conceito de prega para descrever os processos de subjetivação como um interior do pensamento, «um interior que seria somente a prega do exterior»(3): engendrar pensar no pensamento. Mas esta introdução somente se pôde fazer na condição de mostrar que, para além do encontro efetivo com Heidegger, Foucault desenvolvia uma concepção de prega original, e que a prega do exterior ou do interior não era uma simples retomada ou variante da prega ontológica, mas que ao contrário ela trazia em si mesma uma crítica do caráter restrito, mesmo precipitado, desta última. Uma preocupação evidente está na base desta análise: subtrair Foucault a uma eventual influência de Heidegger para restabelecer a verdadeira filiação, a linha genealógica, que passa por Nietzsche(4). Um problema continuava no entanto em suspenso: determinar as condições do aparecimento do conceito de prega na cena filosófica. É aí que reencontramos a filosofia de Leibniz: um mundo em dois níveis, ou a prega da alma e do corpo. A prega é uma invenção filosófica de Leibniz.
Mas a originalidade do caminho de Gilles Deleuze em Le pli não consiste somente em seguir os ziguezagues e os vaivéns na definição que ele propõe do Barroco: «a prega que vai ao infinito». Daí o subtítulo da obra: «Leibniz e o Barroco».
O conjunto dos traços operatórios que dão ao Barroco a sua especificidade são em número de seis. São eles: a prega levada ao infinito numa espécie de emancipação sem limites, a autonomia do interior e a independência do exterior, a distinção dos dois níveis com a aspiração da alma em direção à altura e a atração da matéria para o baixo, o despreguear como extensão do ato da prega (sempre uma prega entre duas pregas), as texturas que fazem com que a matéria se torne matéria de expressão, o paradigma do tecido com suas pregas, simples ou compostas, suas bainhas, seus drapeados, mas também suas texturas e seus feltros. Se reparará que cada um destes traços não constitui menos de um dos componentes específicos do leib-nizianismo. Assim, o paradigma do tecido separa alguns estratos entre o alto e o baixo e constitui uma dedução formal susceptível de se articular com estes diferentes tipos de noção que são: os Idênticos ou as Formas absolutas, os Definíveis, os Requisitos, as Mônadas, mas também os Aglomerados(5). E, portanto, uma relação singular que se dá entre Leibniz e o Barroco e que permite a Deleuze dizer: «dá no mesmo se perguntar se Leibniz é o filósofo barroco por excelência, ou se ele forma um conceito capaz de fazer existir o Barroco nele mesmo»(6). «Mas é também um procedimento original que não engaja menos uma certa idéia da filosofia. Encontraríamos um exemplo na forma de correlacionar o conceito de harmonia preestabelecida em Leibniz e o nascimento da harmonia na época barroca» (7). Um tal procedimento define o estilo filosófico de Gilles Deleuze e o conceito que lhe permite exprimir é: a diagonal.
Já em A Imagem-Movimento e em A Imagem-Tempo, Deleuze, quando se propunha fazer uma classificação das imagens, tinha sistematicamente confrontado o cinema com Bergson e com os conceitos que ele inventou. O problema não estava em fazer do cinema um simples exemplo da filosofia bergsoniana, da mesma forma que não está em questão, no presente caso, fazer do Barroco o produto de uma simples aplicação do leibnizianismo. A lógica deste caminho parece mais ser a seguinte. Existem domínios distintos, por exemplo, a ciência, a arte, o cinema, mas também a filosofia, que se definem, cada um deles, pela produção de objetos singulares. Estes objetos são função da natureza dos materiais e das forças em ação nos respectivos domínios, e a sua produção constitui tanto investigações como experimentações no pensamento. O conceito é o produto de uma semelhante investigação ou experiência própria à filosofia: um indivíduo. Mas estes domínios ou estes campos não estão simplesmente justapostos uns aos outros, tomados em relações de exterioridade. É necessário, pelo contrário, ter em vista as diferentes formas a partir das quais o que foi elaborado num campo pode se encontrar num outro. Se distinguiriam, então, as passagens tornadas possíveis devido à própria natureza porosa das paredes que separam dois domínios distintos (as matemáticas e a física quântica); os fenômenos de captura onde o que foi elaborado num campo se encontra anexado, retomado e relançado num outro campo; as analogias (mas isto pressupõe que se produza um conceito rigoroso da analogia, isto que só é susceptível de fazer uma lógica do acontecimento, a qual não se pode desenvolver a não ser no encontro de toda a lógica da identidade ou da atribuição)(8) como declinação de esquemas (é o exemplo da harmonia que indicamos mais acima). Sobre este último ponto, pode-se considerar como essenciais as análises do «objec-tile»(9) feitas com relação à geometria projetiva de Désargues, análises tanto mais importantes já que elas esboçam os contornos de um pensamento apto a conceptualizar os propósitos das técnicas contemporâneas.
Sem deixar lugar a dúvidas, já está este conjunto de passagens e de traduções que Leibniz propõe e que colocam em questão o Barroco. «Haveria portanto uma linha barroca que passaria exatamente no caminho desta prega, e que poderia reunir arquitetos, pintores, músicos, poetas, filósofos»(10). Traçar a diagonal. Ou seguir a linha barroca através da descrição que ela nos propõe da mônada. Com efeito, esta está definida na Monadologia como sendo «sem porta nem janela». Fórmula enigmática mas que se torna singularmente expressiva se a relacionarmos com os traços dominantes da arquitetura barroca. Assim, a mônada poderá ser comparada a um gabinete de leitura, ou ainda à abadia de La Tourette de Le Corbusier, com o seu fundo obscuro, suas decorações interiores e a sua luz que não «penetra senão por orifícios tão bem pregueados que não deixam ver nada do exterior, mas iluminam ou coloram as decorações de um puro interior» (11). Nestas condições compreenderemos que se trata de dar ao Barroco o conceito que lhe permite existir; não é, portanto, questão de o limitar a um simples período histórico. É assim que, sem perder o seu rigor, o conceito de Barroco dispersa e permite pensar as obras contemporâneas em domínios tão diferentes como os da pintura, da arquitetura, da literatura e da música, de obras tais como as de Hantai, Michaux, Borges, Boulez, mas também a arte minimalista na sua forma de se mover nos intervalos, entre pintura e escultura. E se a linha parte precisamente do Barroco, é porque este se define pelo seu estilo, mesmo por sua ética. A afirmação de um mundo único e infinitamente diversificado, produto de um jogo divino, e que não cessa de jogar com as séries que o constituem , um mundo inteiro edificado à glória do pensamento que grita a sua alegria, o self-enjoyment(NT), mas também sua inquietude, mesmo a sua lassidão.
É à investigação de um tal mundo que se dedica a filosofia de Leibniz. E, segundo uma fórmula bem conhecida, este mundo é o melhor, mesmo se ele inclui o pecado de Adão ou a traição de Judas: «Resta somente esta questão, por que um tal Judas, o traidor, que não é senão possível na idéia de Deus, existe atualmente. Mas sobre esta questão não há nenhuma resposta a esperar aqui em baixo, senão que em geral se deve dizer que, uma vez que Deus achou bom que ele existisse, não obstante o pecado que ele previa, é preciso que este mal se recompense com a usura no universo, que Deus daí tirará um bem maior, e que ele achará, em suma, que este encadeamento das coisas, nas quais a existência deste pecador está compreendida, é o mais perfeito entre todos os outros possíveis»(12). Todavia, como Deleuze toma o cuidado de sublinhar, o Melhor não é o Bem, ele não é senão a conseqüência da derrota do bem (13); ele não supõe um modelo, mas implica uma seleção. Neste sentido o princípio do melhor é um grito da razão, como todos estes princípios que Leibniz não cessa de multiplicar, um grito que significa que nós assistimos a uma mutação na forma de filosofar: devemos partir do mundo, do conjunto dos acontecimentos que fazem este mundo, e em função de cada caso encontrar o princípio susceptível de lhe dar razão. É uma casuística, ao mesmo tempo que uma jurisprudência, já que a razão teológica está em crise (prenúncios de outras crises). Nestas condições, o princípio do Melhor pode ser compreendido como uma justificação da ação divina: o homem se faz advogado de Deus, e Deus criou o mundo num jogo. Rejeitando as séries divergentes em mundo incompossíveis, selecionando entre uma infinidade de mundos possíveis, Deus retém somente um, em função da sua liberdade. O melhor mundo é um mundo único e relativo, mas um mundo em dois níveis.
No nível alto temos as almas, todas diferentes; cada uma exprime o mundo de um ponto de vista singular devido a um vetor interno de concavidade; sem ação umas sobre as outras, elas tiram tudo do seu próprio fundo, um fundo feito de uma infinidade de percepções das quais somente uma parte franqueia o limiar da consciência; é o plano das mônadas como conjunto de forças primitivas. E é preciso notar com que cuidado Deleuze descreve este mundo da intimidade, com seus interiores, decorações e tapeçarias; é preciso seguir a análise da percepção, revirada pelas poeiras das micro-percepções e suspensa no caráter alucinatório das macropercepções, até ao momento em que se impõe uma dedução moral dos corpos. Obrigado à regra de convergência das séries, este plano não é menos infinitamente diversificado, espelhado, feito de pregas ao infinito. No nível baixo, nós temos a matéria orgânica e inorgânica, submetida às forças derivativas, elásticas e plásticas, que lhe dão o seu movimento curvilíneo; regido pelas leis do mecanicismo, o movimento se comunica aí de proximidade em proximidade até ao infinito e em todas as direções; é um plano feito de massas e agregados onde vetores extrínsecos de gravidade definem a posição de equilíbrio de um corpo; devemos então falar de singularidades de extremum que reenviam a eixos de coordenadas. Este plano não é menos original que o precedente uma vez que somos tomados em movimentos de fluxos perpétuos, e que as pregas da matéria são como outros tantos recursos ou máquinas. Universo do pleno.
A descrição dos regimes que caracterizam cada um destes dois níveis é de grande importância, uma vez que ela permite colocar a sua distinção real, mas ela permanece insuficiente, uma vez que deixa na sombra o que lhes permite relacionar-se um com o outro, ou seja, o que permite colocar a sua inseparabilidade. É por isso que entre as pregas da alma e o repreguear da matéria devemos fazer passar a prega do mundo. E preciso então distinguir entre a linha de inflexão de curvatura infinita, feita de pontespregas, que define o mundo como pura virtualidade, a mônada no interior da qual o mundo se atualiza, e a matéria onde ele se realiza. É sempre por relação a este terceiro, que é o mundo, que se definem o atual e o real, a alma e o corpo, e que se determina a natureza da sua relação. A estas categorias do virtual, do atual e do real devemos, contudo, juntar a do possível, uma vez que é sob esta forma que o mundo existe no entendimento de Deus antes que a sua escolha seja feita. «O mundo é uma virtualidade que se atualiza nas mônadas ou nas almas, mas também uma possibilidade que se deve realizar na matéria»(14). Duplicada pelo possível, a aproximação leibniziana do virtual se revela particularmente complexa. Complexidade que se arrisca fortemente a se transformar num verdadeiro problema se nos lembrarmos que a concepção de objectile traça as linhas gerais de um pensamento da técnica, e se nós colocarmos que esta não terá maneira de se desenvolver senão a partir de uma problemática do virtual. Sobre este ponto impõe-se uma confrontação de Leibniz e Bergson. Seja isso o que for, devemos dizer que a prega é o que se distribui em cada um dos níveis e que assegura assim,o seu relacionamento. Ou, para retomar o vocabulário de Diferença e Repetição, a prega é o diferenciante da diferença que relaciona imediatamente entre si o que ela diferencia.
A força do conceito de prega é de colocar ao mesmo tempo a distinção real e a inseparabilidade. Já que entre a alma e o corpo, uma vez colocada a distinção, não há somente convergência, ou harmonia universal, há também o conjunto destes fenômenos de movimentos de rotação do alto sobre o baixo. Daí resulta que não se pode dizer onde começa o inteligível e onde termina o sensível e que a este título não há contradição entre o princípio dos indiscerníveis e o princípio de continuidade. Este é um ponto extremamente importante do qual o vinculum substantiale nos pode dar uma idéia. Reteremos principalmente quatro aspectos: 1- o vinculum funda uma teoria do duplo pertencimento que faz com que um corpo pertença a uma alma e que almas pertençam a este corpo; 2- ele dá ao corpo a sua unidade, de forma que através do fluxo da matéria qualquer coisa permanece, idêntica; 3- ele é uma ligação primária não-localizável entre uma constante e variáveis: «a relação é exterior às variáveis, de forma que ela está fora da constante» (15); 4- ele define uma zona intermediária. A prega é o exterior; ele é esta linha infinitamente móvel, puro virtual, que, em virtude das suas torções, constitui domínios distintos, cada um com seu regime próprio (alma e corpo, legível e visível, isto é, forma de expressão e forma de conteúdo); mas ele é também o que desenha o mapa das passagens entre as regiões assim distinguidas. Com este conceito de prega, reencontramos a intuição profunda da filosofia deleuziana: descartar as vir-tualidades, descrever agenciamentos, assinalar as linhas de fratura, e traçar a diagonal que é a força da invenção, experiência do futuro como tempo do pensamento.
O mundo leibniziano é um mundo de dois níveis com rotações do alto sobre o baixo. Mas podemos facilmente imaginar um mundo ainda mais complexo, um mundo feito de uma infinidade de níveis, cada um com seu regime próprio; um mundo onde as superfícies deslizariam umas sobre as outras, numa redistribuição constante dos níveis do edifício de forma que nenhuma atribuição seria possível; um mundo onde as dependências e as rotações seriam múltiplas uma vez que os pontos de conjunção seriam sempre vetores de vetores; um mundo onde os vetores seriam elevados à potência n. Não seriam mais simplesmente os dois labirintos, o da liberdade e o do contínuo, dos quais falava Leibniz, mas antes um labirinto em camadas. Os estratos do incompossível. Habitar este mundo significa: desenvolver uma arte dos intervalos.
* Diretor de programas do Collège International de Philosophie.
Artigo extraído da revista «Magazine Littéraire» no 257, set./1988. Tradução do francês por Ana Sacchetti.
NOTA DO TRADUTOR — Em inglês no original: «Auto-deleite»
NOTAS
1. Lepli, Ed. de Minuit, p. 189.
2. Logique du sens, Ed. de Minuit, p. 135.
3. Foucault, Ed. de Minuit, p. 104.
4. Para a discussão da relação entre Michel Foucault e Heidegger, cf. Foucault, p. 115-121 e p. 137: «Se aprega e o repreguear animam não somente as concepções de Foucault, mas mesmo o seu estilo, é porque elas constituem uma arqueologia do pensamento. Talvez não nos espantemos muito que Foucault encontre Heidegger precisamente neste campo. Trata-se mais de um encontro que de uma influência, na medida em que a prega e o repreguear têm em Foucault uma origem, um uso, um destino muito diferente do que em Heidegger (...). E mais uma história nietzschiana do que heideggeriana, uma história devida a Nietzsche».
5. Le pli, p. 66.
6. Le pli, p. 47.
7: Le pli, p. 175-187: «Parece difícil permanecer insensível ao conjunto das analogias precisas entre a harmonia leibniziana e a harmonia que se tunda na mes -ma altura na música barroca», p. 186.
8. Para uma crítica da analogia nas suas relações com uma lógica da identidade, cf. Différence et Rêpêtition, p. 45- 52.
9. Le pli, p. 26.
10. Le pli, p. 48.
11. Le pli, p. 39.
12. Discours de mêtaphysique, p. 30.
13. Le pli, p. 91: «O melhor não é senão uma conseqüência. E, mesmo como conseqüência, ele decorre diretamente da derrota do Bem (salvar do Bem tudo o que possa ser salvo...)».
14. Le pli, p. 140.
15. Le pli, p. 150.
cooperação.sem.mando

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