domingo, 3 de março de 2013

"filas na madrugada não acabaram"

amanhecemos o dia 01 de março de 2013 com esse enunciado feito na página 07 do jornal diário serrano (midiático diário cá em nossas plagas)... vejamos: "filas na madrugada não acabaram"... de onde sai essa enunciação? para quê serve? Para que serve uma série de denúncias vazias desconectadas da realidade que cotidianamente flui na vida e a vida das gentes?
o jornal pinçou (como sempre costuma fazer) algumas situações pontuais e isoladas, transformando essa bricolagem numa verdade ampla e abrangente, perdendo a oportunidade de fazer uma abordagem no mínimo responsável,  no que se refere à situação da política de saúde em nossa comunidade. tomar o depoimento desconectado de um ou outro usuário para tentar mostrar uma cartografia do campo da saúde pública, equivale a brincar com a opinião pública e com a capacidade mental e intelectual das pessoas.
vimos, em períodos de campanha eleitoral, candidatos despreparados e desconhecedores das searas da administração pública, enunciando que eles resolveriam "os problemas da saúde no município" (e isso saiu tanto da cabeça de candidatos a prefeito, como a vereador), como se isso fosse, racional e politicamente, possível... quem faz uma enunciação desse tipo, desconhece que a política, as ações e os serviços de saúde são feitos por gente, com gente, para gente e entre gentes, portanto, não é um ou dois sujeitos iluminados que vão "resolver" as coisas... quem transita no campo da saúde é sabedor do quanto a sociedade brasileira já teve que andar e quanto ainda terá que andar para fazer acontecer um sistema único de saúde emancipatório, focado na promoção da saúde e não da doença, guiado pela perspectiva humana e não pelo lucro ou ideal de mercado, e, implicado na promoção do protagonismo e na autonomia das gentes.
se olharmos para a questão das "filas na madrugada" ou na "distribuição de fichas", já podemos ver que há questões que vem de todos os lados... se ainda há filas para "pegar fichas" para atendimento nas ESF's, é porque essas unidades de saúde ainda estão longe de funcionar como deveriam... se ainda há comércio de aluguel de vagas nas filas que se formam para "tirar ficha" é porque ainda há muita coisa para se pensar, conversar e modificar... ou será que ninguém fica sabendo que há pessoas ganhando dinheiro para marcar lugar nas filas das madrugadas e "tirar fichas"? se isso ainda acontece é porque tanto usuários, quanto gestores e trabalhadores ainda tem muito por ralar. e cabe dizer que essa é uma situação que não é de agora.
é óbvio que as ESF's devem ter um mínimo de articulação para organizar a distribuição do atendimento às pessoas, mas não podemos esquecer que se deve garantir o atendimento à demanda espontânea, priorizando, é claro, as crianças, os adolescentes, os idosos e as situações que, em função da gravidade, exigem atendimento imediato. o alinhavo da atenção em saúde não pode mais ser feito por pessoas e cabeças guiadas pelos velhos modos de fazer saúde, em que gestores e trabalhadores autoritários falavam de cima pra baixo com usuários submissos e assujeitados. é comum vermos trabalhadores em saúde com uma postura autoritária, mandando os usuários embora das unidades de saúde, sem terem sequer orientado, escutado ou acolhido as pessoas. sabemos de tudo isso, mas não podemos esquecer que não trabalhamos  mais com fichas... não atendemos fichas... atendemos gente e gente tem existência real, com necessidades reais e problemas reais... gente não é um mero número que pode ser encaixado ou deixado de ser encaixado num número xis de fichas! não podemos esquecer, também, que os trabalhadores são gentes e que, para modificar seus pensares e seus fazeres, necessitam de investimento em educação permanente no trabalho, pois suas práticas e seus processos de trabalho não vão se modificar a partir de um raio que lhes caia na cabeça, vindo de um memorando, de um ofício circular ou da mera determinação saída da cabeça do gestor.
ainda vemos gestores de unidades de saúde (aqui estou generalizando e não estou falando de situações específicas de cruz alta) que têm dificuldades para lidar com a dimensão humana de sua existência e nas relações de trabalho, fazendo-se autoritários, individualistas, hierarquistas, traiçoeiros, perigosos e sem capacidade alguma para gestão das pessoas e do serviço. e não posso deixar de dizer que tenho visto muitos trabalhadores em sofrimento em função dessas situações, pois acabam não tendo a quem recorrer, sofrendo perseguições, retaliações e armações traiçoeiras.
ainda vemos legisladores que, sem a mais básica noção sobre a política de saúde, se acham no direito de invadir unidades de saúde com suas arrogâncias, prepotências e manias de superioridade, querendo priorizar o atendimento aos seus eleitores, achincalhando com a dignidade dos demais usuários e dos trabalhadores... são legisladores que não orientam os usuários para buscarem o atendimento nas unidades de saúde, mas que os levam embaixo do braço, ligam para deputados, para diretores de hospitais e para outros quetais, buscando garantir "vagas para internação" ou atendimentos privilegiados, sem terem sequer ouvido o trabalhador da área da saúde que seria responsável pela avaliação e atendimento ao usuário... já cansamos dessas patacoadas de vereadores... já não há mais espaço para essas práticas em que os vereadores ligavam para os trabalhadores ou para os gestores em saúde e lhes diziam o que necessitavam de atendimento para os seus apoiadores eleitorais... já não cabem mais os bilhetinhos com pedidos de favores... já não cabe mais o terrorismo que alguns vereadores fazem com os trabalhadores em saúde (principalmente no pronto atendimento - PA), invadindo a unidade de saúde com suas ameaças de chamar a cobertura da televisão, de rádio e jornal... já não cabe mais essa prática em que trabalhadores dos meios de comunicação acompanham vereadores em suas investidas, para colocar medo nos trabalhadores em saúde.
sabemos que ainda há trabalhadores em saúde que não encontram força e potência suficientes para fazer o enfrentamento à essas situações, e acabam se curvando ao medo, atendendo essas demandas estapafúrdias que lhes são dirigidas... mas a maioria dos trabalhadores em saúde se faz guiar pela força e pela clareza dos princípios e diretrizes presentes na política do sistema único de saúde e na política de humanização da saúde.
ainda temos muito a fazer para alcançar: a superação do modelo médico-centrado em saúde; a superação das ações da política de saúde dirigidas eminentemente para a atenção à doença, distante da promoção da saúde; a superação da lógica da medicamentalização que entope os usuários de medicamentos, em vez de promover suas condições de produção de saúde; a superação da lógica hospitalocêntrica, que prima pela atenção hospitalar, em vez da promoção da atenção básica/primária; a superação da lógica de relações hierarquizadas no trabalho, em que alguns trabalhadores são considerados superiores aos demais ou em que o saber de alguns trabalhadores é considerado mais importante que o dos demais.
enfim, somos, de uma forma geral, reféns históricos de uma concepção e prática em saúde pública voltada para a cronificação da cultura da doença, para a “medicina curativa”, para a medicalização, a medicamentalização e para o assujeitamento dos usuários a um sistema centralizador e verticalizado da política de saúde.
os movimentos produzidos a partir da Constituição Cidadã, de 1988, no campo da política de saúde pública a partir da regulamentação e implantação do SUS, vem, aos poucos, evidenciando os novos desenhos com que se produz a atenção à saúde e com que se pensa e faz não somente a ação do cuidado em saúde coletiva, mas saúde de forma geral. afora os movimentos de humanização no campo da saúde, é de se considerar o dimensionamento prático e formal das ações de saúde, e, para isso, me ancoro nas palavras de Campos, para rabiscar o matiz do meu entendimento sobre isso, quando diz: 
"Identificam-se quatro modos básicos para se produzir saúde: a) transformações econômicas, sociais e políticas resultando em padrões saudáveis de existência, dificultando o surgimento de enfermidades. Cidades saudáveis tem denominado este modo de produção referente à promoção à saúde (WHO,1991); b) vigilância à saúde voltada para a promoção e prevenção de enfermidades e morte; c) clínica e reabilitação em que se realizam práticas de assistência e de cuidados individuais de saúde e d) atendimento de urgência e de emergência, em que práticas de intervenção imediatas, em situações limites, evitam morte e sofrimento" (Gastão Wagner de Sousa Campos. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência & Saúde Coletiva, 5(2): 2000).
Isto posto, destaco algumas das noções básicas que tem guiado nossos pensares e nossos fazeres em saúde. vejamos:
"Humanização/Política Nacional de Humanização (PNH): No campo da Saúde, humanização diz respeito a uma aposta ético-estético-política: ética porque implica a atitude de usuários, gestores e trabalhadores de saúde comprometidos e co-responsáveis; estética porque acarreta um pro-cesso criativo e sensível de produção da saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas; política porque se refere à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do SUS. O compromisso ético-estético-político da humanização do SUS se assenta nos valores de autonomia e protagonismo dos sujeitos, de co-responsabilidade entre eles, de solidariedade dos vínculos estabelecidos, dos direitos dos usuários e da participação coletiva no processo de gestão".
"Educação permanente: Aprendizagem no trabalho, onde o aprender e ensinar se incorporam ao quotidi-ano das organizações e ao trabalho". Soe dizer que para podermos modificar os pensares e os fazeres dos usuários, trabalhadores e gestores em saúde, devemos, no mínimo, intensificar e ampliar as ações de educação permanente em saúde.
"Equidade: No vocabulário do SUS, diz respeito aos meios necessários para se alcançar a igualdade, estando relacionada com a ideia de justiça social. Condições para que todas as pessoas tenham acesso aos direitos que lhe são garantidos. Para que se possa exercer a equidade  é preciso que existam ambientes favoráveis, acesso à informação, acesso a experiências e habilidades na vida, assim como oportunidades que permitam fazer escolhas por uma vida mais sadia. O contrário de equidade é iniquidade  e as iniquidades no campo da saúde têm raízes nas desigualdades existentes na sociedade".
"Igualdade: Segundo os preceitos do SUS e conforme o texto da Constituição brasileira, o acesso às ações e aos serviços, para promoção, proteção e recuperação da saúde, além de universal, deve basear-se na igualdade de resultados fim e diante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos".
"Protagonismo: É a ideia de que a ação, a interlocução e a atitude dos sujeitos ocupam lugar central nos acontecimentos. No processo de produção da saúde, diz respeito ao papel de sujeitos autônomos, protagonistas e implicados no processo de produção de sua própria saúde".
dou fecho a este escrito dizendo que talvez os veículos de comunicação (e seus operadores) poderiam colaborar muito mais para a modificação e qualificação da política de saúde se passassem a abordar e problematizar seu panorama de forma séria e esclarecedora, e não a partir de informações ou propósitos desconectados e claramente parciais... digo ainda que, se nossos vereadores atuassem de forma a fazer acontecer efetivamente as funções para as quais foram eleitos, poderiam, inclusive, estar fiscalizando as ações e serviços de saúde, ao invés de agirem de forma autoritária e equivocada, tentando atropelar os trabalhadores em saúde e o fluxo dos serviços.

3 comentários:

  1. Texto muito bom, com muita propriedade e com muitas verdades. Parabéns!

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  2. palavras certeiras, como a mira do negro D'jango, do cérebro do Tarantino. texto vomitado por conta dessa mídia pobre/podre, que de quase nada sabe e sobre tudo opina, numa superficialidade esdrúxula. e o processo de produção da saúde fica enredado e amarrado num entremeio letal, cartesiano. um sistema que tem vida própria, que tem nome, que tem cheiro, mas que não existe. um sistema que ninguém sabe quem detém o verdadeiro poder (como se esse poder existisse na forma concreta), mas todos sabem aqueles que não o detém. e no meio disso tudo vamos produzindo e desproduzindo, seja lá o que for.

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  3. Eu não acredito que alguém possa mudar outra pessoa. Político que promete mudar tudo quando for pro poder, não sabe do que tá falando.

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